I
A uma época em que das
mulheres da burguesia só se esperava que fossem boas donas de casa e cuidassem
bem dos filhos, Lucia Miguel Pereira (1901-1959) foi uma personagem incomum.
Ensaísta, romancista, crítica literária e tradutora, ela cumpriu uma trajetória
singular, ao se tornar biógrafa dos dois maiores expoentes da Literatura
Brasileira no século XIX: Machado de Assis (1839-1908) e Gonçalves Dias (1823-1864).
Para recuperar essa história de vida, o poeta, ensaísta e cronista Fabio de
Sousa Coutinho escreveu Lucia: uma
biografia de Lucia Miguel Pereira (Brasília, Outubro Edições, 2017).
Filha de um médico de muito
prestígio – hoje nome de uma cidade do Estado do Rio de Janeiro – e formada no
Colégio Sion, da antiga capital da República, tradicional escola católica de
ensino básico privado para moças, Lucia foi, acima de tudo, uma mulher de
coragem e de personalidade invulgar, que enfrentou “as amarras da sociedade de
seu tempo”, como assinalou a escritora Ana Miranda no texto de apresentação que
escreveu para este livro.
A um tempo em que mulheres só
entravam na Academia Brasileira de Letras (ABL) se fossem acompanhar seus
maridos acadêmicos, Lucia, desde cedo, procurou cumprir uma carreira literária,
colaborando em jornais e revistas, a partir da Elo, publicação fundada por antigas alunas do Colégio Sion, que
durou de 1927 a 1929, com continuidade no famoso Boletim de Ariel, onde exerceu crítica literária até 1937, e na Revista do Brasil, de 1938 a 1943 e,
mais tarde, nas páginas dos tradicionais diários Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, e O Estado de S. Paulo, em cujas páginas do seu famoso Suplemento Literário pontificou com
textos profundos que mais se assemelhavam a estudos literários.
A erupção de Lucia no
panorama literário brasileiro, porém, deu-se com aquela que é considerada a sua
obra-prima, Machado de Assis (estudo
crítico e biográfico), cuja primeira edição é de 1936 pela Companhia Editora
Nacional. Com um estilo elegante e preciso, Coutinho faz uma análise
irretocável desse trabalho da então jovem Lucia Miguel Pereira:
“Lucia fixou, para
a eternidade, a vida de um mestiço de origem humilde – filho de um mulato
carioca, pintor de paredes e dourador, e de uma lavadeira lusitana da ilha
açoriana de São Miguel – que, tendo frequentado apenas a escola primária e sido
obrigado a trabalhar desde a infância, alcançou alta posição na burocracia e
obteve a consideração social numa época em que o Brasil era ainda uma monarquia
escravocrata. É certo frisar que, graças às tendências literárias do imperador
Pedro II, o valor intelectual era então mais acatado, em comparação com o
econômico e, até mesmo, com os valores hereditários”.
Igualmente importante foi a
biografia que fez de Gonçalves Dias, o maior dos poetas brasileiros na segunda
metade do século XIX, “perfeitamente caracterizado como romântico e indianista,
ao lado de José de Alencar (1829-1877), o fundador do romance brasileiro”, na
definição de Coutinho. O livro foi publicado em 1943 pela Livraria José Olympio
Editora, 37º volume da Coleção Documentos Brasileiros, com excepcional acolhida
pela crítica. Só agora, em 2016, saiu a sua segunda edição pela Edições do
Senado Federal.
II
Se tivesse ficado resumida a
essas duas biografias, a carreira literária de Lucia já seria importante, mas
de sua obra constam ainda livros clássicos como Ensaio de interpretação da literatura norte-americana (Rio de
Janeiro, Sociedade Felipe d´Oliveira, 1943), Prosa e ficção de 1870 a 1920 (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio
Editora, 1950), e Cinquenta anos de
literatura (Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa Nacional, 1952), além
da tradução que fez de O Tempo
Redescoberto, de Marcel Proust (1871-1922), e de sua co-autoria (organização)
com Câmara Reys em Livro do centenário de
Eça de Queiroz, publicado em 1945 pela Edições Dois Mundos:
Portugal-Brasil.
Sem contar os livros em
edição-póstuma com artigos selecionados por Luciana Viégas, como A leitora e seus personagens (1992), que
abrange textos saídos entre 1931 e 1943, Escritos
da maturidade (2005), seleta de textos publicados em periódicos de 1944 a
1959, e O século de Camus (2015), que
reúne quase duas centenas de estudos que apareceram de 1947 a 1955 no Correio da Manhã e mais de uma dezena no
Suplemento Literário de O Estado de S.
Paulo em 1957, todos publicados pela Graphia Editorial, do Rio de Janeiro,
além de Ficção reunida (Curitiba,
Editora UFPR, 2006). É de se notar que Luciana Viégas é autora da tese de
doutoramento Escrever para compreender,
apresentada à Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) em 2012, em que faz uma leitura atenta dos escritos da maturidade de
Lucia Miguel Pereira.
Em sua incomum capacidade de
trabalho, Lucia ainda teve tempo de dedicar-se à literatura infantil,
escrevendo quatro romances: A fada menina,
que marca sua estréia em 1939, obra reeditada em 1944, e A floresta mágica, Maria e
seus bonecos e A filha do Rio Verde,
todos publicados em 1943 e sem reedição até hoje.
III
Sobrinho afim de Lucia Miguel
Pereira, Coutinho, que tinha apenas oito anos de idade quando a historiadora
literária morreu, desde cedo alimentou a ideia de escrever a sua biografia. Na
verdade, sempre foi considerado “a pessoa ideal para levar a efeito essa grande
navegação biográfica”, como disse o poeta Anderson Braga Horta no prefácio que
escreveu para esta obra.
É que o autor é sobrinho do
grande historiador Octavio Tarquínio de Sousa (1889-1959), com quem Lucia se
casou oficialmente em 1939, no Uruguai, já que o noivo à época era desquitado. E
recebeu o apoio de vários parentes e amigos do casal, especialmente de Antonio
Gabriel, neto de Octavio, mas que foi criado como filho pelo casal, além de
personalidades como o embaixador Afonso Arinos, filho, primo de Lucia, que ocupa
uma cadeira na ABL.
O parentesco vem do fato de
que o médico Miguel da Silva Pereira (1871-1918), pai de Lucia, era irmão do desembargador
Cesário Pereira, pai de Anah, mulher do pai de Afonso Arinos, filho, o político
udenista Afonso Arinos de Melo Franco (1905-1990). Também o poeta e acadêmico
Lêdo Ivo (1924-2012), o professor Antonio Candido de Mello e Souza (1918-2017),
cuja mãe era irmã da mãe de Lucia, e o historiador Sérgio Buarque de Holanda
(1902-1982), amigo do casal, entre outros, contribuíram para que fosse traçado
o bem-acabado perfil de Lucia.
Conhecendo profundamente os
laços familiares da biografada, Coutinho valeu-se ainda de pesquisas de arquivo
para estabelecer a trajetória de vida e literária de Lucia, marcada
especialmente por seu trágico desaparecimento a 21 de dezembro de 1959, ao lado
do marido, num acidente de avião próximo ao aeroporto do Galeão, no Rio de
Janeiro, em viagem de retorno de São Paulo, onde o casal havia cumprido um
roteiro cultural ao lado de Antonio Candido e sua esposa, a filósofa, crítica
literária, ensaísta e professora Gilda de Mello e Souza (1919-2005).
Aliás, o biógrafo recorda
ainda que, no dia 3 de dezembro de 1928, Lucia deixara, por insistência da mãe,
de viajar no avião que faria um vôo em homenagem ao retorno ao Brasil do
aeronauta Alberto Santos Dumont (1873-1932), considerado o pai da aviação
brasileira. Esse avião, que iria saudar o navio que trazia o herói brasileiro, entraria
em pane ao fazer uma curva brusca para evitar colisão com outra aeronave, espatifando-se nas águas da Baía da Guanabara.
Morreriam seus cinco tripulantes e nove passageiros.
IV
Fabio de Sousa Coutinho
(1951), nascido no Rio de Janeiro, é diplomado em Direito, com mestrado em
Direito Internacional e Comparado pela Southern
Methodist University (SMU), de Dallas, Texas-EUA. Advogado, já atuou como vogal
da Junta Comercial do Estado do Rio de Janeiro, subsecretário de Justiça e do
Interior do Estado do Rio de Janeiro e advogado do Banco Mundial.
Foi membro da Comissão de
Ética Pública da Presidência da República (2009/2012). É membro titular do Pen
Clube do Brasil, da Academia de Letras do Brasil, do Instituto Histórico e
Geográfico do Distrito Federal e da Academia Brasiliense de Letras, além de sócio-fundador
da Confraria dos Bibliófilos do Brasil. Em 15 de abril de 2015, foi eleito
presidente da Associação Nacional de Escritores (ANE), de Brasília, para o
biênio 2015/2017, tendo sido reeleito para 2017/2019. É colaborador de vários
jornais e revistas do País.
É autor de 30 anos de poesia (Poebras, 2008); Differences between civil law and common law
procedure as illustrated by Brazil and the United States (1977); O princípio da legalidade (em parceria,
1981); Princípios constitucionais
tributários (em parceria, 1993); Leituras
de Direito Político (Brasília, Thesaurus Editora, 2004); Juristas na Academia Brasileira de Letras
(2006); Três irmãos do Recife (2009);
Alfredo Pujol (Rio de Janeiro,
Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, Série
Essencial, 2011); Elogio de Fernando
Mendes Vianna (Brasília, Thesaurus Editora, 2010); Na cadeira de Castro Alves (Brasília, Thesaurus Editora, 2013), Lafayette Rodrigues Pereira (Rio de
Janeiro, Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,
Série Essencial, 2011); Em louvor a
Drummond (em colaboração, 2012); Cadeira
24: dos rios do Pará aos verdes mares do Ceará (em colaboração, 2013); e Crônicas
de um leitor apaixonado (Brasília, Thesaurus Editora, 2015). Participou da
coletânea Espelhos da palavra/Espejos de
la palabra (Brasília, Abrace Editora, 2001). Adelto Gonçalves - Brasil
____________________________________________
Lucia, uma biografia de
Lucia Miguel Pereira, de Fabio de Sousa Coutinho. Brasília: Outubro
Edições, 178 págs., R$ 40,00, 2017. E-mails: fabiodesousacoutinho@terra.com.br outubroedicoes@gmail.com
________________________________________________________
Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo (USP), é autor de Os Vira-latas da
Madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra
Selvagem, 2015), Gonzaga, um Poeta do
Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo,
Publisher Brasil, 2002), Bocage – o
Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás
Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado
de São Paulo, 2012) e Direito e Justiça
em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2015).
Sem comentários:
Enviar um comentário