Terceira
campanha na fragata Mercedes, afundada há 200 anos por uma armada inglesa ao
largo de Faro, foi "tecnicamente muito complexa", mas recompensadora.
Espanha mostrou ter tecnologia para enfrentar as grandes empresas
especializadas
Os dois canhões dos séculos
XVI/ XVII, pesando entre duas e três toneladas e com vários elementos
decorativos, são os mais espectaculares, mas a terceira campanha arqueológica
na fragata Nuestra Señora de Las Mercedes, afundada em 1804 perto do Cabo de Santa
Maria, no Algarve, resgatou ainda uma prancha de cobre perfurada e uma torneira
e três roldanas de bronze.
Além dos artefactos, a equipa
de arqueólogos espanhola, que contou com a colaboração de técnicos portugueses
e mexicanos, reuniu também muita informação valiosa sobre esta embarcação que
cumpria a rota entre Espanha e as suas colónias na América e que não resistiu
ao ataque da armada inglesa ao largo de Faro (a área de incidência dos
trabalhos da missão espanhola está na Zona Económica Exclusiva portuguesa).
Os objectos resgatados dos
destroços que repousam no fundo do mar, a mais de mil metros de profundidade,
foram expostos esta quarta-feira no Museu Nacional de Arqueologia Subaquática
(Arqua) espanhol, em Cartagena, onde estão guardados os artefactos que
resultaram das duas campanhas anteriores (em 2015 e 2016) e dos trabalhos
não-científicos da Odyssey Marine Explorations, uma empresa norte-americana de
caçadores de tesouros que, após uma batalha nos tribunais que durou cinco anos,
foi obrigada a devolver todo o material que retirara ilegalmente da Mercedes.
Segundo as autoridades locais,
todas as peças resgatadas nas campanhas científicas promovidas pelo Estado
espanhol deverão agora juntar-se às que a Odyssey espoliara, e restituiu em
2012, numa grande exposição permanente a inaugurar dentro de dois anos no Arqua,
escreve o jornal digital La Verdad, da região de Cartagena, Múrcia. Antes, o
espólio deverá ser limpo, restaurado e devidamente documentado.
"Uma das coisas mais
interessantes neste projecto científico é que ele não se limita a prever a
escavação em si, mas foi concebido a vários níveis", diz ao PÚBLICO o
arqueólogo Pedro Barros, um dos três técnicos da Direcção-Geral de Património
Cultural (DGPC) que acompanharam parte dos trabalhos na Mercedes. "Fez-se
uma recolha precisa, muito cuidada, mas também se planificou a conservação e a
divulgação dos objectos recolhidos. Nada ficou por definir."
A intervenção da equipa
científica - que “desceu” aos destroços graças a um ROV (Veículo Operado
Remotamente, na sigla em inglês) cedido pelo Instituto Espanhol de
Oceanografia, já que a profundidade a que se encontram, precisamente 1137
metros, não permite que os técnicos mergulhem - mostra que Espanha está na
linha da frente no que toca à arqueologia subaquática. Até agora, garantiram os
responsáveis científicos à imprensa espanhola, nenhum outro país europeu
trabalhara a tamanha profundidade.
"Foi uma operação
tecnicamente muito exigente", reconhece Pedro Barros, especialista em
arqueologia náutica e subaquática. "O trabalho a grande profundidade é
muito raro e muito difícil, sobretudo quando envolve mover objectos com um peso
na ordem das toneladas, como no caso dos canhões: é que não basta contar só com
o seu peso, é preciso pensar nos cabos e contra-pesos que fazem com que estes
sejam içados com maior segurança."
Os
canhões dos vice-reis
Para resgatar dos destroços os
dois canhões, que são de uma tipologia usada no final do século XVI e no começo
do XVII, foi necessário montar uma complexa operação que contou com a
experiência dos pilotos do Sarmiento de Gamboa, o navio do Conselho Superior de
Investigações Científicas (CSIC) que serviu de base aos trabalhos, e dos
técnicos que manobraram o veículo não-tripulado do Instituto de Oceanografia.
Agora cabe à equipa do
sofisticado laboratório de conservação e restauro do museu de Cartagena
garantir que os dois canhões permanecem íntegros fora de água. Para já, precisa
o jornal ABC, é preciso travar o processo de oxidação destas duas peças de
artilharia, que aparecem referidas no manifesto de carga da fragata - conservado
no Arquivo Geral das Índias, em Sevilha -, e têm até nome: Santa Bárbara e
Santa Rufina (era prática habitual dedicar as peças de artilharia a santos). O
primeiro é de 1586, tem 4,30 metros de comprimento e pesa quase três toneladas,
de acordo com uma nota informativa do Ministério da Educação, Cultura e
Desporto espanhol; o segundo é mais pequeno (3,80 metros e cerca de duas
toneladas) e data de 1601. Ambos foram encomendados por vice-reis das colónias
espanholas na América, numa época em que o rei de Espanha era também o rei de
Portugal (os Habsburgos reinaram em Portugal entre 1580 e 1640).
Os dois canhões, com vários
elementos decorativos, têm informação sobre os encomendadores, mas também sobre
o artesão que os executou, Bernardino de Tejeda, o que faz deles verdadeiros
documentos históricos capazes de contribuir para o conhecimento dos grandes
fundidores espanhóis do século XVI.
Iván Negueruela Martínez,
director da missão e do Museu Nacional de Arqueologia Subaquática espanhol,
está muito satisfeito com o resultado das campanhas e diz, sem reservas, que
elas demonstram a qualidade do trabalho científico espanhol quando se trata de
resgatar e conservar património subaquático. Esta terceira campanha da missão
espanhola recolheu ainda dados que permitem completar a cartografia daquele
sítio arqueológico.
Segundo o comunicado do
Ministério da Educação, Cultura e Desporto espanhol, que organizou a expedição
em colaboração com o CSIC, o Instituto de Oceanografia (dependente do
Ministério da Economia, Indústria e Competitividade) e a Armada, os objectivos
foram cumpridos: conhecem-se melhor os destroços da Mercedes, “sobretudo o
estado de conservação dos materiais e a sua evolução”, e recolheu-se informação
que permite analisar a dispersão dos vestígios e avançar com a interpretação da
fragata.
Um
aviso
Com esta operação, Espanha
parece querer dar uma lição de colaboração entre instituições – são vários os
ministérios e entidades envolvidas em toda esta operação de resgate de
património e memória – e mandar uma mensagem a todos os caçadores de tesouros
que estejam a pensar espoliar os seus navios de bandeira (assim se chama a uma
embarcação ao serviço de um Estado, neste caso a coroa espanhola) espalhados
pelo mundo.
“O êxito das três expedições
de 2015, 2016 e 2017 é uma boa amostra da capacidade de Espanha a nível
científico e tecnológico no que toca à protecção do património subaquático,
incluindo os ambientes marinhos mais complexos”, pode ler-se no mesmo documento
do Ministério da Educação, Cultura e Desporto. Por outro lado, continua, a
escavação “é um aviso muito sério às grandes companhias de caçadores de
tesouros que até agora tinham acesso em exclusivo aos destroços a grandes
profundidades, apoiando-se na sua capacidade tecnológica”.
Segundo Iván Negueruela
Martínez, esta terá sido a última visita dos cientistas espanhóis aos destroços
da fragata afundada pelos ingleses.
Os trabalhos na Nuestra Señora
de Las Mercedes – com tudo o que exigiu em termos técnicos e ao nível da
cooperação entre instituições – faz-nos facilmente pensar no caso português.
Tal como Espanha, Portugal foi uma potência imperial e naval com muitos navios
dispersos pelo mundo (Namíbia, África do Sul, Omã…), mas a sua participação em
missões como a desta fragata é diminuta. O estado em que se encontra a
arqueologia náutica e subaquática, dependente da DGPC, já levou a protestos
recentes e foi tema discutido entre os deputados.
Dificilmente se poderá pensar
em cooperação interministrial e combate aos caçadores de tesouros, em prol da
defesa do património que está no mar, quando os serviços do antigo Centro de
Arqueologia Náutica e Subaquática estão reduzidos a cinco funcionários e os
seus sete barcos não podem ser usados (por falta de licenças, vistorias,
equipamento ou manutenção). Lucinda
Canelas – Portugal in "Público"
Sem comentários:
Enviar um comentário