A estátua do rei D. José I na
Praça do Comércio de Lisboa é o centro simbólico do plano de reconstrução do
marquês de Pombal para a cidade após o terramoto de 1755. Conforme a conceção
do escultor Machado de Castro, que lhe deu a forma definitiva, partindo da
ideia da escultura como poesia muda, uma representação equestre do rei
correspondia à eloquência do género épico. Da leitura do conjunto escultórico,
com o rei a cavalo no topo como herói de epopeia e os relevos no pedestal com
representações alegóricas da cidade, chamam a atenção os conjuntos laterais,
com esculturas alegóricas das quatro partes do mundo, Europa, Ásia, África e
América, em posição de submissão ao poder do rei português. Um pouco por toda a
parte podem ver-se nesta cidade de Lisboa testemunhos dos esforços dos artistas
por criar ou perpetuar esta linguagem de propaganda do rei como senhor do
mundo.
Estas elaboradas
representações do poder real fazem-me pensar no que pode ou deve um artista.
Mas também me fazem reconsiderar o lugar-comum do galeguismo histórico de
Portugal como prolongamento da Galiza ou de Portugal como Galiza livre e na
necessidade de uma mudança dos porquês deste diálogo, para os que acreditamos
que ele é necessário, sob pena de continuarmos sujeitos a atos comunicativos
falidos. É preciso colocar este entendimento na complexidade histórica e social
do estado português. Começando por reconhecer a heterogeneidade social no
próprio território português, também a singularidade desta cidade de Lisboa, de
escala e população tão diferente ao resto do país, uma cidade que foi capital
duma metrópole imperial com praças em todo o planeta e simultaneamente capital
dum país de camponeses secularmente empobrecidos.
Lembro a ideia de Castelao de
que Portugal realizou com as descobertas a vocação dos Finisterres e coloco-a
numa análise bem mais concreta e menos eurocêntrica da construção dos impérios
atlânticos europeus e a acumulação de capital, bem mais em consonância com o
espírito anticolonialista que, entre outros sentidos, fazem de Sempre em Galiza
uma obra ainda útil e atual. Temos conhecimento histórico e ferramentas de
pensamento para tal. Desde que Castelao viveu e escreveu o mapa político do
mundo mudou muito, especialmente com os movimentos emancipatórios em África.
Também a autoridade académica tem hoje mais centros do que tinha então e isso
tem trazido como consequência um grande esforço no resgate da memória das
vítimas da expansão europeia com que Castelao não contava.
A lusofonia não é só uma
questão linguística, ainda que no caso dos galegos seja a língua a razão de
estarmos. O espaço lusófono em grande medida está definido pela memória do
império. É com esse conhecimento que temos de construir o discurso galego
dentro da lusofonia e complexificar o diálogo luso-galaico num cenário
internacional aberto aos diferentes espaços geopolíticos e processos históricos
dos que fazemos parte, nós e eles. Se alguns somos reintegracionistas não é só
por opção linguística, mas por convicção de que a sociedade galega tem de ter
relações internacionais próprias em todos os âmbitos, não só no domínio
cultural, também nas comunidades de conhecimento e nos movimentos cívicos.
Temos alguns trabalhos de casa
por fazer para lá chegar, mas também ferramentas muito válidas que herdamos da
tradição de pensamento, criação e ação. Definamos: a valorização da pluralidade
cultural como distintiva da humanidade (como exemplificava Castelao na história
do cão que falava na língua universal), a ideologia democrática e
anti-imperialista que tem norteado a ação galeguista, a experiência da tensão
entre a necessidade dos direitos universais e as particularidades da pertença
étnica, a valorização da cultura agrária, a fidelidade ao território… E outro
que não me parece menor quando me vejo nesta praça do Terreiro do Paço: sabemos
e queremos viver sem reis, soberanos de nós. Como trabalhos de casa:
relativizar a centralidade da língua no discurso (a língua dá-nos identidade,
sim, mas para quê?), superar de vez a fase da narrativa histórica como discurso
apologético, que nos leva a ver só uma parte e uns personagens da nossa
história e nos oculta outros, eivando a nossa compreensão dos processos
históricos e, portanto, da nossa ação, ou superar a dificuldade do debate
público na sociedade portuguesa e na espanhola (herança ditatorial, mas não
só).
Por outro lado a colonização
escolar e mediática do estado tem o efeito de limitar a curiosidade pelo outro
e potenciar a preocupação identitária/essencialista que provoca na prática uma
divisão de tarefas (a nós o espaço doméstico, a eles o exterior). E ainda como
trabalhos de casa podemos permitir-nos um outro olhar sobre a Península Ibérica
que também a nós nos cabe e um outro olhar sobre o papel que os galegos tiveram
na América, um olhar social, que ultrapasse com a sua análise o limite do
linguístico e o objetivo do cultural ou do político/galeguista. Depois do
resgate da memória da presença galega na América das últimas décadas, com o
salto entre a perspetiva familiar à de nação, tenho interesse em perceber o que
é que as sociedades americanas deram aos galegos e vice-versa.
O objetivo é criar um discurso
galego no espaço da lusofonia e uma agenda política própria. Para tal
precisamos do conhecimento da pluralidade (e o valor) da lusofonia mais além da
comunidade linguística e cultural, bem relativa. A língua, por ela só, não faz
a comunidade. O que me interessa é o que podemos fazer graças à
comunicabilidade na variante internacional da língua por um mundo mais justo,
construir uma identidade moral que sim faça jus à nossa experiência histórica.
Não preciso da lusofonia como espaço de legitimação, mas de conhecimento e de
ação.
Na dualidade de narrativas
antagónicas sobre a expansão portuguesa o valor do olhar galego sobre Portugal,
a velha imagem de Portugal como prolongamento da Galiza, ganha outro valor: a
memória territorializada da língua, outro eixo identitário português mais além
da mitificação das descobertas como elemento central da identidade. A
literaturização da expansão atlântica continua a ser o cerne da narrativa
histórica institucional e escolar, a transmitida maioritariamente pelos media,
e a imagem que os portugueses têm deles próprios. Mas não é essa a nossa
imagem, afortunadamente.
Desejo uma sociedade galega
que vença a menorização afirmando a sua vocação no mundo, com coragem para ir
além do que nos é conhecido, familiar e habitual. Não começamos de zero. Temos
uma tradição historiográfica democrática. Mas também temos um último trabalho
de casa, aventura, penso eu: ir além da visão de povo essencialista e estática
e criar uma ideia de povo digna do século XXI, digna de alguma ideia não da
evolução, que não gosto do conceito aplicado à história, mas sim da
aprendizagem histórica. Só assim me faz sentido a bela visão de Castelao da
procissão das luzinhas como alegoria do povo galego, como povo no Atlântico que
é, contínuo e em movimento. Maria Dovigo
– Galiza in “Portal Galego da Língua”
Maria
Dovigo - Nasci na Crunha em 1972 e vivo desde 2000 em Portugal. A
minha formação é a Filologia, exerço a docência e sou poeta por vocação. No
labor criativo ligo a minha vontade de intervenção cívica com a convicção de
que a criação é a verdadeira natureza do ser humano. Colaboro com diferentes
associações do espaço lusófono, tecendo redes de afetos e projetos à volta da
vivência da língua portuguesa. Sou académica de número da Academia Galega da
Língua Portuguesa.
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