Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Galiza - Espaço lusófono: para além da língua



A estátua do rei D. José I na Praça do Comércio de Lisboa é o centro simbólico do plano de reconstrução do marquês de Pombal para a cidade após o terramoto de 1755. Conforme a conceção do escultor Machado de Castro, que lhe deu a forma definitiva, partindo da ideia da escultura como poesia muda, uma representação equestre do rei correspondia à eloquência do género épico. Da leitura do conjunto escultórico, com o rei a cavalo no topo como herói de epopeia e os relevos no pedestal com representações alegóricas da cidade, chamam a atenção os conjuntos laterais, com esculturas alegóricas das quatro partes do mundo, Europa, Ásia, África e América, em posição de submissão ao poder do rei português. Um pouco por toda a parte podem ver-se nesta cidade de Lisboa testemunhos dos esforços dos artistas por criar ou perpetuar esta linguagem de propaganda do rei como senhor do mundo.



Estas elaboradas representações do poder real fazem-me pensar no que pode ou deve um artista. Mas também me fazem reconsiderar o lugar-comum do galeguismo histórico de Portugal como prolongamento da Galiza ou de Portugal como Galiza livre e na necessidade de uma mudança dos porquês deste diálogo, para os que acreditamos que ele é necessário, sob pena de continuarmos sujeitos a atos comunicativos falidos. É preciso colocar este entendimento na complexidade histórica e social do estado português. Começando por reconhecer a heterogeneidade social no próprio território português, também a singularidade desta cidade de Lisboa, de escala e população tão diferente ao resto do país, uma cidade que foi capital duma metrópole imperial com praças em todo o planeta e simultaneamente capital dum país de camponeses secularmente empobrecidos.

Lembro a ideia de Castelao de que Portugal realizou com as descobertas a vocação dos Finisterres e coloco-a numa análise bem mais concreta e menos eurocêntrica da construção dos impérios atlânticos europeus e a acumulação de capital, bem mais em consonância com o espírito anticolonialista que, entre outros sentidos, fazem de Sempre em Galiza uma obra ainda útil e atual. Temos conhecimento histórico e ferramentas de pensamento para tal. Desde que Castelao viveu e escreveu o mapa político do mundo mudou muito, especialmente com os movimentos emancipatórios em África. Também a autoridade académica tem hoje mais centros do que tinha então e isso tem trazido como consequência um grande esforço no resgate da memória das vítimas da expansão europeia com que Castelao não contava.

A lusofonia não é só uma questão linguística, ainda que no caso dos galegos seja a língua a razão de estarmos. O espaço lusófono em grande medida está definido pela memória do império. É com esse conhecimento que temos de construir o discurso galego dentro da lusofonia e complexificar o diálogo luso-galaico num cenário internacional aberto aos diferentes espaços geopolíticos e processos históricos dos que fazemos parte, nós e eles. Se alguns somos reintegracionistas não é só por opção linguística, mas por convicção de que a sociedade galega tem de ter relações internacionais próprias em todos os âmbitos, não só no domínio cultural, também nas comunidades de conhecimento e nos movimentos cívicos.

Temos alguns trabalhos de casa por fazer para lá chegar, mas também ferramentas muito válidas que herdamos da tradição de pensamento, criação e ação. Definamos: a valorização da pluralidade cultural como distintiva da humanidade (como exemplificava Castelao na história do cão que falava na língua universal), a ideologia democrática e anti-imperialista que tem norteado a ação galeguista, a experiência da tensão entre a necessidade dos direitos universais e as particularidades da pertença étnica, a valorização da cultura agrária, a fidelidade ao território… E outro que não me parece menor quando me vejo nesta praça do Terreiro do Paço: sabemos e queremos viver sem reis, soberanos de nós. Como trabalhos de casa: relativizar a centralidade da língua no discurso (a língua dá-nos identidade, sim, mas para quê?), superar de vez a fase da narrativa histórica como discurso apologético, que nos leva a ver só uma parte e uns personagens da nossa história e nos oculta outros, eivando a nossa compreensão dos processos históricos e, portanto, da nossa ação, ou superar a dificuldade do debate público na sociedade portuguesa e na espanhola (herança ditatorial, mas não só).

Por outro lado a colonização escolar e mediática do estado tem o efeito de limitar a curiosidade pelo outro e potenciar a preocupação identitária/essencialista que provoca na prática uma divisão de tarefas (a nós o espaço doméstico, a eles o exterior). E ainda como trabalhos de casa podemos permitir-nos um outro olhar sobre a Península Ibérica que também a nós nos cabe e um outro olhar sobre o papel que os galegos tiveram na América, um olhar social, que ultrapasse com a sua análise o limite do linguístico e o objetivo do cultural ou do político/galeguista. Depois do resgate da memória da presença galega na América das últimas décadas, com o salto entre a perspetiva familiar à de nação, tenho interesse em perceber o que é que as sociedades americanas deram aos galegos e vice-versa.

O objetivo é criar um discurso galego no espaço da lusofonia e uma agenda política própria. Para tal precisamos do conhecimento da pluralidade (e o valor) da lusofonia mais além da comunidade linguística e cultural, bem relativa. A língua, por ela só, não faz a comunidade. O que me interessa é o que podemos fazer graças à comunicabilidade na variante internacional da língua por um mundo mais justo, construir uma identidade moral que sim faça jus à nossa experiência histórica. Não preciso da lusofonia como espaço de legitimação, mas de conhecimento e de ação.

Na dualidade de narrativas antagónicas sobre a expansão portuguesa o valor do olhar galego sobre Portugal, a velha imagem de Portugal como prolongamento da Galiza, ganha outro valor: a memória territorializada da língua, outro eixo identitário português mais além da mitificação das descobertas como elemento central da identidade. A literaturização da expansão atlântica continua a ser o cerne da narrativa histórica institucional e escolar, a transmitida maioritariamente pelos media, e a imagem que os portugueses têm deles próprios. Mas não é essa a nossa imagem, afortunadamente.

Desejo uma sociedade galega que vença a menorização afirmando a sua vocação no mundo, com coragem para ir além do que nos é conhecido, familiar e habitual. Não começamos de zero. Temos uma tradição historiográfica democrática. Mas também temos um último trabalho de casa, aventura, penso eu: ir além da visão de povo essencialista e estática e criar uma ideia de povo digna do século XXI, digna de alguma ideia não da evolução, que não gosto do conceito aplicado à história, mas sim da aprendizagem histórica. Só assim me faz sentido a bela visão de Castelao da procissão das luzinhas como alegoria do povo galego, como povo no Atlântico que é, contínuo e em movimento. Maria Dovigo – Galiza in “Portal Galego da Língua”


Maria Dovigo - Nasci na Crunha em 1972 e vivo desde 2000 em Portugal. A minha formação é a Filologia, exerço a docência e sou poeta por vocação. No labor criativo ligo a minha vontade de intervenção cívica com a convicção de que a criação é a verdadeira natureza do ser humano. Colaboro com diferentes associações do espaço lusófono, tecendo redes de afetos e projetos à volta da vivência da língua portuguesa. Sou académica de número da Academia Galega da Língua Portuguesa.

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