I
Um livro de contos,
geralmente, é o resultado da reunião de textos literários dispersos e autônomos
que o autor produz ao longo dos anos, quase sempre sem um fio narrativo que os
una. São também textos que escapam a qualquer critério quantitativo, ou seja,
não podem ser definidos com base em sua extensão. Mas, ao contrário da novela e
do romance, o conto exige, antes de tudo, a atenção concentrada do leitor para
produzir nele um “efeito preconcebido, único, intenso, definido”, com observou o
professor, ensaísta e investigador venezuelano Carlos Pacheco (1948-2015) em Del cuento e sus alrededores. Aproximaciones
a una teoria del cuento (Caracas, Monte Ávila Latinoamericana, 1997, p. 20),
com base no que dizia o poeta norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849), para
quem o “conto devia ser lido de uma assentada”.
Atlas
do impossível
(Guaratinguetá-SP, Editora Penalux, 2017), de Edmar Monteiro Filho, quinto
livro de contos do autor, não preenche todos esses critérios. Mas, entre os 15
relatos que o compõem, há dois que provam que a extensão em número de páginas
ou palavras não é mesmo critério seguro para definir um conto. Por exemplo, o
texto de abertura, “Autorretrato em espelho esférico”, tem apenas 18 linhas,
enquanto aquele que encerra o volume, “Galeria”, ocupa 49 páginas, dividido em
dez capítulos ou trechos, aproximando-se do que se poderia chamar de novela.
O livro, porém, vai além. São
relatos caudatários do movimento surrealista da década de 1920, liderado pelo
poeta e crítico francês André Breton (1896-1966), que, tanto na pintura ou na
gravura como na poesia ou na prosa, procurava incorporar elementos desconexos,
formas abstratas e ideias irreais, com o objetivo declarado de escapar da
lógica e da razão. Em outras palavras: levar o poder da subversão à criação.
Muitos destes contos, de
fato, não apresentam um fio condutor, mas, ao contrário do que seria comum em
livros do gênero, foram escritos sob a inspiração de dois mestres. Um deles é o
artista gráfico holandês Maurits Cornelis Escher (1898-1972). O outro se trata
de Jorge Luis Borges (1899-1986), poeta e contista argentino, a quem a Academia
Sueca ficou a dever um Prêmio Nobel de Literatura.
Em Escher, Monteiro Filho
buscou inspiração não só para a narrativa de seus contos, a ponto de o título
de cada uma das 15 peças repetir o de uma gravura do artista. De certo modo, os
relatos buscam provocar no leitor a mesma sensação de estranhamento que as
telas de Escher costumam causar naqueles que as observam, pois sempre exigem
uma nova visão, tal a confusão mental que provocam. Do mesmo modo, os textos do
contista exigem, invariavelmente, uma nova leitura.
É de se lembrar que as gravuras
de Escher procuram representar construções impossíveis, explorações do infinito
e metamorfoses, em que os padrões geométricos entrecruzados transformam-se
gradualmente em formas completamente diferentes. Além das gravuras (xilogravuras,
litografias e meios-tons) de Escher, Monteiro Filho vale-se de alguns de seus
pensamentos, como aquele que funciona como epígrafe para o conto “Ordem e
caos”: “Não consigo parar de brincar com nossas certezas incontestáveis”.
II
Há também nestes contos
referências implícitas e explícitas a Jorge Luis Borges, que, inclusive,
aparece como personagem em “Mãos desenhando”, que conta as peripécias de um
acadêmico tucumano para se tornar íntimo do mestre, visitando-o com certa frequência
em seu apartamento na calle Maipú, no
centro de Buenos Aires, além de segui-lo à distância pelas ruas de uma cidade
que o escritor, à beira da cegueira, começava a deixar de enxergar.
Como se estivesse disposto a
romper todas as classificações estabelecidas pelos críticos para o gênero, o
autor cita neste conto pessoas ainda vivas, como a escritora, tradutora e
professora argentina Maria Kodama, ex-secretária e viúva de Borges, e o
contista, romancista e novelista brasileiro Menalton Braff.
Já no conto “Três mundos”,
Monteiro Filho, igualmente nas pegadas de Borges, repete a metáfora do espelho,
desenvolvendo uma autorreflexão sobre seu próprio processo de escrita, ao
misturar realidade e ficção. E procura reconstituir a história fabulosa da vida
do libanês Ismail, que chegou ao Brasil em 1950 e adquiriu um imóvel na Rua
Treze de Maio, a principal da pequena cidade de Amparo, no interior de São
Paulo, onde montou uma sorveteria, depois de, como soldado da Legião
Estrangeira, ter participado de combates em Camarões e na Europa e, mais tarde,
no Marrocos, depois de realistar-se, voltar à França em 1926.
Até que, em 1939, já com
família constituída e uma sorveteria herdada do tio para cuidar, ao atender a
um obscuro chamado interior, abandonou tudo e partiu para o Norte da África,
realistando-se na Legião, para participar de novos combates. É a vida desse
personagem que o narrador recupera com o auxílio de seu filho brasileiro,
Kalil, agora um empresário bem sucedido. Para se ter uma ideia do estilo
sóbrio, mas instigante, de Monteiro Filho, segue um excerto:
“O
narrador está sentado diante de Kalil. O filho brasileiro de Ismail tem as
unhas cuidadas e se veste bem. Por telefone, declarou trecho de seu arsenal:
longas conversas com o pai, um legado inestimável de episódios de uma vida
prodigiosa. Se teria tomado notas? Desnecessário, já que possui memória
prodigiosa – o mesmo adjetivo talvez desmentindo esse prodígio. Kalil não vê
problemas em contar o que sabe sobre Ismail. Suas frases calculadas traduzem as
intenções: “Não se pode permitir que uma trajetória de vida tão rica caia no
esquecimento”; “Ismail é um personagem riquíssimo”: “toda essa riqueza renderá
um livro”: “O pai legou-lhe um tesouro”. Mas o narrador se agarra aos fios
possíveis de sua história” (pag.
51).
III
Como observa o experiente professor,
romancista e pintor Aércio Flávio Consolin, no texto de apresentação que
escreveu para as “orelhas” deste livro, os contos de Monteiro Filho “foram
criados sob a égide de artistas que apuseram ao real uma reinterpretação
subversiva pela própria natureza, derivando para uma suprarrealidade que atiça
a compreensão e alarga-a por ampliar a perplexidade a cada aproximação, tanto
das gravuras de Escher como da literatura por Borges”.
Nas pegadas do que diz
Consolin, as imagens insólitas de Monteiro Filho têm atraído também a atenção
de estudiosos jovens, como Alexandra Vieira de Almeida, doutora em Literatura
Comparada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), para quem “o
contista mostra seu pleno domínio sobre esta arte difícil do conto que para
muitos é o texto em prosa da literatura mais complexo de se elaborar, pois é
necessária a medida certa, o ponto essencial”.
Já para o romancista e
pesquisador Krishnamurti Góes dos Anjos, autor de O Touro do rebanho (Lisboa, Editora Chiado, 2014), que obteve o
primeiro lugar no Concurso Internacional de Literatura da União Brasileira de
Escritores (UBE), do Rio de Janeiro, quem vier a ler esta obra de Monteiro
Filho estará “diante de um escritor com pleno domínio dos aspectos que envolvem
a estruturação de suas histórias (onde ecoa um lirismo cativante)”. Para ele, o
contista “articula e combina múltiplas linguagens, verbais e não verbais para
criar sistemas autorrepresentativos onde a fusão interativa de elementos
propicia uma maior consistência e eficiência de um fazer literário que o coloca
entre os mais expressivos prosadores brasileiros da atualidade”.
Aliás, os textos de Alexandra
Vieira de Almeida e Krishnamurti Góes dos Anjos, que podem ser localizados na
Internet, merecem desde já ficar reservados como prefácio e posfácio para uma
possível segunda edição de Atlas do
impossível, tal a maneira percuciente como interpretaram a originalidade dos
contos de um escritor tão seguro de seu ofício.
IV
Edmar Monteiro Filho (1959) escreve
e publica desde 1980. Possui graduação em Ciências Biológicas Modalidade Médica
pela Universidade Federal de São Paulo (1980) e em História pela Fundação
Municipal de Ensino Superior de Bragança Paulista (2007), com especialização em
História Cultural pela mesma instituição (2010). É mestre em Teoria e História
Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), título obtido com a
dissertação “O major esquecido: Histórias
de Alexandre, de Graciliano Ramos” (2013). Faz doutoramento em Teoria e
História Literária na Unicamp.
Recebeu os prêmios literários
Guimarães Rosa (1997), promovido pela Rádio França Internacional, com o conto
“Primeiro de janeiro é o dia dos mortos”, e Cruz e Souza de Literatura, com o
livro Aquários (contos, Fundação
Catarinense de Cultura, 2000). Fita azul
(São Paulo, Editora Babel, 2011), seu primeiro romance, foi um dos finalistas
do Prêmio São Paulo de Literatura de 2012.
Publicou ainda Este lado para cima (poesia, edição de
autor, 1993), Halma húmida (poesia,
edição do autor, 1997), Às vésperas do
incêndio (contos, edição do autor, 2000), com o qual conquistou o Prêmio
Cidade de Belo Horizonte, Que fim levou
Rick Jones? (contos, edição de autor, 2010) e Azande (novela,
edição de autor, 2004). É autor também de O
Rei condenado à morte & outras histórias (Guaratinguetá-SP, Editora
Penalux, 2015).
Nascido na cidade de São
Paulo, mora em Amparo desde a infância, mas, como funcionário do Banco do
Brasil, viajou por quase todo o País recolhendo relatos e experiências que
depois utilizaria em seus contos. Foi em jornais de Amparo que começou a
publicar seus textos em 1981, ano em que ganhou seu primeiro prêmio literário
com o conto “Maré vermelha”, na cidade de Araguari-MG. Desde 1997, ministra
oficinas literárias de contos em várias cidades. Assina uma coluna em que faz
resenhas de livros no semanário A Tribuna,
de Amparo. Adelto Gonçalves – Brasil
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Atlas do Impossível, de Edmar
Monteiro Filho. Guaratinguetá-SP: Editora Penalux, 246 págs., R$ 45,00, 2017.
E-mail: penalux@editorapenalux.com.br Site: www.editorapenalux.com.br
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo (USP), é autor de Os Vira-latas da
Madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra
Selvagem, 2015), Gonzaga, um Poeta do
Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo,
Publisher Brasil, 2002), Bocage – o
Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás
Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado
de São Paulo, 2012) e Direito e Justiça
em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2015).
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