«Denantes mortos que
escravos». Por cá, serão poucas as pessoas a conhecer esta frase. Mas do outro
lado da fronteira que inventaram para separar Portugal da Galiza a frase não é
de todo desconhecida. Remete-nos para Castelão, artista galego do século XX, que
a escreveu num escudo alternativo para a Galiza. O lema remonta ao episódio
histórico no Monte Medúlio, em que, numa batalha contra os invasores romanos,
os galaicos se deram a própria morte antes de serem vencidos em batalha, que os
levaria à escravatura. Hoje, a frase impõe-se na sociedade galega e ecoa como
se de um canto se tratasse, ou não fosse guardada por uma sereia, cuja missão é
lembrar-nos qual a verdadeira condição dos povos: a liberdade.
No passado mês de Julho, a
Academia Galega da Língua Portuguesa (AGLP), entidade da sociedade civil
galega, foi admitida na CPLP na categoria de Observador Consultivo. A decisão é
histórica, e muito me orgulha enquanto falante de português. Não que eu seja um
defensor acérrimo da institucionalidade e dos Estados — não sou –, mas
compreendo o valor simbólico da adesão, especialmente por a Galiza poder vir a
despolarizar a visão linguística da CPLP e, de alguma forma, poder sanar o
discurso onde ainda se sentem as feridas entre países colonizadores e países
colonizados. Contudo, é uma adesão tardia, e muito devido à posição de Portugal
nos últimos anos: lembro que, em 2011, o processo de entrada da AGLP na CPLP
foi travado graças à acção de Paulo Portas, então Ministro dos Negócios
Estrangeiros. Desde então, a Galiza teve de percorrer um longo percurso para
conseguir estar, finalmente, com a devida representação junto de outros países
e regiões lusófonas, alargando e aprofundando o diálogo. Para este desfecho, que
nos anima a todos, defensores do reintegracionismo (o reintegracionismo é o
movimento que considera o galego, também denominado “galego-português”, “galego
internacional” ou “português da Galiza”, como mais uma variante do português e,
por isso, defende o uso de uma norma ortográfica comum), foi determinante o
patrocínio de Angola, que, juntamente com outros países, tem defendido a
presença da Galiza na CPLP, mas também o crescente apoio por parte de outras
entidades institucionais, como a Academia Brasileira de Letras, a Academia de
Ciências de Lisboa ou a União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa
(UCCLA) — com a entrada da cidade de Santiago de Compostela como membro
observador, em Abril de 2017.
Apesar de todo o
reconhecimento da Galiza como parte fundamental — e genética — da Língua
Portuguesa, não é a legitimação estatal e institucional a definir a importância
daquele território no seio da história e do futuro da nossa Língua, até porque
tais reconhecimentos são, frequentemente, motivados por movimentos
estratégicos, que facilmente podem conduzir à instrumentalização em função de
agendas de interesses. A Galiza já era indispensável para a consciência
linguística do português antes de todo o reconhecimento institucional dos
últimos anos, reconhecimento esse que considero importante, mas jamais um
substituto das relações vivas que sempre existiram entre galegos e outros
falantes da Língua, nomeadamente com os portugueses. Sabemos como os Estados
tendem a apropriar-se da memória, e a CPLP é, antes de mais, uma representação
dos Estados, por isso lembro que os Estados e as instituições só se viram na
inevitabilidade de reconhecer o valor da Galiza para o português porque, antes
de nós, homens e mulheres, durante séculos de História, resistiram para que a
memória da Língua não se perdesse — e continuarão a fazê-lo. A adesão da AGLP à
CPLP é apenas mais um ponto na longa cronologia da resistência da Galiza dentro
do Estado Espanhol. Sim, porque é disso que se trata, de resistência.
Começou com Castela a dominar
o Reino da Galiza. O franquismo deu continuidade à opressão, proibindo o ensino
do galego nas escolas, em benefício do castelhano. Hoje, ainda há uma política
violenta por parte de Espanha para eliminar qualquer brecha que ponha em causa
a ideia de “hispanidade”: além da forte orientação do Estado para uma política
linguística na Galiza, em que o galego ainda é menorizado, somam-se os
episódios de repressão policial à sociedade civil, com revistas policiais a
algumas casas pela noite dentro e sem mandato; detenções pela posse de certos
livros; acusações de terrorismo com base no uso do lema que Castelão inscreveu
no escudo que criou para a Galiza, e com o qual iniciei este texto;
intimidações a quem defende a terra da avidez das corporações; e as agressões
policiais em manifestações, como as que ocorreram em Compostela, em Maio deste
ano, quando vários cidadãos da cidade decidiram protestar contra a ordem de
despejo da associação Escárnio e Maldizer. Convém, ainda, apontar a exclusão de
que são alvo os escritores galegos que escrevem em galego internacional — ou
português –, tanto por parte de instituições públicas, como a Real Academia
Galega e o Conselho da Cultura Galega, como por parte de editoras e
organizações de prémios literários, subservientes que são ao poder.
Em 2016, tive oportunidade de
passar o mês de Outubro na Galiza, onde me confrontei com muitos destes casos.
Mais do que o choque pelo que me foi relatado, surpreendeu-me o silêncio, tanto
por parte da União Europeia, que parece ignorar a violência policial do Estado
Espanhol — violência essa legitimada pela chamada “Lei Mordaça” –, como por
parte de Portugal, que tendencialmente vive virado para os países e regiões que
dominou, imerso numa narrativa imperial saudosista que lhe tolda a visão, e
raramente se volta para os povos que vivem do outro lado da fronteira e com
quem partilha um território comum, a Península Ibérica. A minha surpresa — e
tristeza, confesso — não vem tanto pelo silêncio das nossas instituições
estatais ou dos media, que esses só têm vindo a perpetuar uma narrativa em que
a Galiza não tem lugar. Surpreende-me, acima de tudo, o silêncio por parte da
sociedade civil, em especial o dos escritores, que pelo seu ofício deveriam
conhecer o valor da Galiza para a memória e o futuro da nossa Língua. E, mais
do que isso, deveriam questionar as narrativas que o Estado Português e os seus
elementos de propaganda nos impõem há séculos.
Sabemos como são tratados os
povos sem Estado. Facilmente nos levantamos contra a repressão aos curdos, aos
palestinianos, aos tibetanos, assinamos petições, fazemos marchas e apelamos ao
cumprimento dos direitos humanos. Mas temos estado em silêncio durante séculos
de violência imposta à sociedade galega — salvo algumas excepções –, logo esse
povo com quem partilhamos laços de irmandade e de fala. Nos países da União
Europeia, a repressão pode ser mais dissimulada, mas existe. E não apenas do
outro lado da fronteira. Veja-se como o bretão, o flamengo ou o provençal têm
sido combatidos em França, por exemplo.
Michael Metzeltin, em “A
Linguística e o Ensino da Gramática”, uma publicação da Revista da Universidade
de Coimbra (1980), afirma: «Onde quer que um grupo numa sociedade detenha o
poder, tratará de impor a sua ideologia aos demais membros da sociedade. Como a
língua é um dos meios mais poderosos para veicular uma ideologia, mas também
para a combater, o grupo dominante tratará por conseguinte de impor também a
sua língua como um modelo. Para poder combater uma ideologia é preciso ser
linguística e cognitivamente criativo».
Se a Galiza ainda perdura,
deve-o à sua criatividade. Os diálogos mantidos desde sempre com outros povos
falantes de português e o recente reconhecimento por parte das instituições são
escudos que fortalecem os galegos na afirmação da sua identidade. Continuam a
cantar com a sereia do escudo de Castelão, «Denantes mortos que escravos»,
cientes de que um povo que perde a sua Língua, a sua cultura, a sua matriz, é
um povo amputado no exercício da sua liberdade. Com a crescente visibilidade da
Galiza entre os outros falantes de português, espero que, especialmente quem
pensa e cria na nossa Língua, possa olhar para os galegos como portadores da
nossa ancestralidade, sendo que, com eles, será possível construirmos um futuro
mais consciente. Espero que a recente entrada da AGLP na CPLP se traduza não
tanto em leis e protocolos que acabam por cair em terreno estéril, como é
recorrente acontecer, mas num olhar mais fraternal, solidário e cooperante dos
outros falantes de português para com a Galiza. Para os Estados e os
imaginários que pretendem veicular, somos meros actores a cumprir um papel que
tem como fim o cumprimento de uma agenda, mas, na verdade, é da nossa condição
percorrermos os caminhos que escolhemos percorrer, não enquanto pátria, mas
enquanto comunidade, enquanto humanos que se ligam a outros humanos. No caso
dos portugueses, os galegos são parte da nossa ascendência. É natural que nos
queiramos encontrar. E esse encontro só será verdadeiramente livre se se
mantiver orgânico e isento dos jogos de poder. É por e para isso que a sereia
ainda canta. Samuel F. Pimenta –
Portugal in “Revista Caliban”
Sem comentários:
Enviar um comentário