Nova
obra do escritor reúne 33 crônicas que reconstituem o cotidiano dos mais
humildes
I
Escritor
profícuo e multifacetado, Silas Corrêa Leite tem se destacado também como
cronista, com vários livros publicados nesse gênero que, embora de origem
gaulesa, adquiriu naturalização brasileira, mais especificamente carioca, ao
ser desenvolvido especialmente por João do Rio (1881-1921), Rubem Braga
(1913-1990), Raquel de Queiroz (1910-2003), Fernando Sabino (1923-2004), Carlos
Drummond de Andrade (1902-1987), Henrique Pongetti (1898-1979), Paulo Mendes
Campos (1922-1991), Sérgio Porto (1923-1968), Carlos Heitor Cony (1926-2018) e
tantos outros, como assinalou o professor Massaud Moisés (1928-2018) em A
Criação Literária – prosa II (São Paulo, Editora
Cultrix, 2015, pp. 102/103).
Se a crônica hoje, tal qual as resenhas ou recensões de livros, sobrevive, já desvinculada da publicação em jornais impressos diários que estão com morte decretada, é graças à veiculação em sites literários cultuados por alguns poucos mais letrados que escaparam da massificação dos últimos tempos que, praticamente, só tem produzido trogloditas capazes apenas de gritar, agredir e depredar bens culturais. Silas Corrêa Leite é ainda um desses poucos que exercitam o gênero, publicando suas crônicas em veículos digitais.
Rua
Frida Kahlo (São Paulo, Editora Calêndula, 2024), seu último
livro, reúne 33 desses textos, nos quais ele mantém a recriação do cotidiano
por meio da fantasia, destacando flagrantes da vida real, sem deixar de lado o
tom de reportagem, em que recupera a voz que vem das ruas, reproduzindo muitas
das frases que são ouvidas no convívio diário ou até exercitadas, ainda que de
maneira tosca, nas chamadas redes sociais.
Como
bem destacou no prefácio para esta obra o escritor Luiz Eduardo de Carvalho, se
o professor, sociólogo e crítico Antônio Candido (1928-2017) talvez tenha sido
um tanto excessivo ao qualificar a crônica como um gênero literário “ao rés do
chão”, o eclético Silas Corrêa Leite aqui trata de reverter essa pecha, pois
brinda o leitor com textos perpassados por reflexão e ironia que, “se efêmeros
nas redes socais, lançam-se à durabilidade da qual nem eles próprios
suspeitavam”.
II
Na
crônica que abre o livro, “Beladona e seus vários maridos”, com bastante humor,
o autor traça o perfil de uma professora que sofria de libido acentuada e,
depois de se casar e se descasar quatro vezes, não mais “quis alguém pra
envelhecer ao seu lado” e saiu “jogando em todas as posições de ataque no time
do amor”, o que equivalia a prevaricar com “os seis ex e alguns possíveis
retornos de quase futuros”.
Na
crônica seguinte, continua com o tema dos relacionamentos extraconjugais para,
mais adiante, no texto “Curandeirismo do João Mulher”, recuperar algumas de
suas lembranças de Itararé, cidade onde cresceu, na divisa entre os estados de
São Paulo e Paraná, para traçar o perfil de um tipo popularesco, meio homem,
meio mulher, que passa a atuar como curandeiro, sem deixar de ajudar alguns
necessitados. Trata-se de uma crônica que avança no terreno do conto, ocupando
dez páginas, e que mostra o preconceito de uma sociedade conservadora diante de
alguém que foge aos padrões estabelecidos.
Na
crônica “A voz da filha que não há”, lê-se a história de um professor de uma
escola da periferia de São Paulo que, sem filhos, vive a fugaz experiência de
uma paternidade que nunca teve, ao receber o telefonema de uma aluna que o
chama de pai. “Eu poderia ter desligado, claro. Xingado a voz pela falta de
educação, pelo erro, por não saber o número direito, estar gastando ficha, por
ter discado errado. Mas adorei aquele momento”, diz o que seria uma espécie de alter
ego do autor, reconhecendo que haveria de carregar para sempre em seu
íntimo aquele momento: “(...) lembrarei aquela voz da filha que não tive me
chamando maravilhosamente de PAI”.
Outra
crônica que se avizinha de uma confissão do autor é aquela que leva o título
“Milagres acontecem (não dá para explicar)” em que o cronista rememora os seus
primeiros anos na grande cidade de São Paulo, à época recém-chegado de Itararé
para viver numa pensão, sem emprego, sem dinheiro para estudar, sem futuro,
passando necessidade, até que encontra na rua uma alma caridosa que lhe mataria
a fome. E que o marcaria para sempre, pois, tempos depois, quando já estava
empregado e estudava à noite, ao decidir procurá-la para ao menos conhecer o
seu nome, saberia por meio do filho dela que já morrera. E fazia pouco tempo. Chamava-se
Dona Maria.
III
Já
a última crônica, que dá título ao livro, é uma singela homenagem à Frida Kahlo
(1907-1954), pintora mexicana, que foi casada com o pintor mexicano Diego
Rivera (1886-1957) e teve um caso amoroso com Leon Trotsky (1879-1940),
escritor e um dos líderes da Revolução Russa de 1917, mas que passou para a
História por sua genialidade como artista e por seus autorretratos e obras
inspiradas na natureza.
Na
verdade, o texto recupera a história de vida de um solteirão, bem estudado,
bancário, cinquentão, nascido em Itararé, morador à rua Pica-pau, no bairro do
Morumbi, na zona oeste de São Paulo, em meio a ricas vivendas cercadas por
cinturões de miséria, que, certa vez, perdeu a fleugma e saiu, madrugada
adentro, raspando as placas das ruas, mudando-as para rua Frida Kahlo, rua
Sylvia Plath, rua Clarice Lispector, rua Elza Soares, rua Elis Regina e outras,
“todas com nomes de femininas mentes brilhantes que ele amava loucamente como
fã e admirador”.
Até
que foi detido e levado para uma delegacia de polícia e teve de pagar fiança
para ser solto e sumir das redondezas. O cronista acrescenta que todas as
placas foram repintadas e recuperaram seus nomes originais, exceto aquela que
recebera o nome de Frida Kahlo, que restou numa “pracinha abandonada pelos
podres poderes públicos”.
Como
se pode perceber, as crônicas de Silas Corrêa Leite oscilam entre a poesia e o
conto, constituindo uma poetização do cotidiano, sem a pretensão de se tornarem
obras literárias, porque fugazes, efêmeras. Nem por isso perderá tempo quem
tiver a ventura de lê-las. Pelo contrário.
IV
Nascido
em Monte Alegre, hoje Telêmaco Borba, no Paraná, morador em São Paulo-SP desde
1970, Silas Corrêa Leite (1952), além de contista e romancista, é poeta,
letrista, professor, bibliotecário, desenhista, jornalista, ensaísta, blogueiro
e membro da União Brasileira de Escritores (UBE). Venceu alguns concursos com
seus romances, artigos, poemas e letras de blues. Foi premiado no
Concurso Lygia Fagundes Telles para Professor Escritor, da Secretaria de
Educação do Estado de São Paulo.
Lançou
Campo de trigo com corvos (Jaraguá do Sul-SC, Design Editora, 2007); Gute-Gute, barriga experimental de
repertório (Rio de Janeiro, Editora Autografia, 2015); Goto, a lenda do reino encantado do barqueiro noturno do rio Itararé
(Florianópolis, Clube de Autores Editora, 2013); Tibete, de quando você não
quiser ser gente (Rio de Janeiro, Editora Jaguatirica, 2017); Ele está
no meio de nós (Curitiba, Kotter Editorial, 2018); O Marceneiro – a
última tentativa de Cristo (Maringá-PR, Editora Viseu, 2019), O lixeiro e o presidente (Curitiba,
Kotter Editorial, 2019); e Desjardim –
muito além do farol do final do mundo (Belo Horizonte, Editora
Caravana, 2023).
Nos
últimos tempos, lançou Transpenumbra do Armagedon (São Paulo,
Desconcertos Editora, 2021); Cavalos selvagens, romance imaginativo
(Curitiba/Taubaté, Kotter Editorial/Letra Selvagem, 2021); A Coisa: muito
além do coração selvagem da vida (Cotia-SP, Editora Cajuína, 2021); Lampejos
(Belo Horizonte, Sangre Editorial, 2019); Leitmotiv: a longa estrada de fogueiras
da cor de laranja: diário da paixão secreta de Anne Frank (Curitiba, Kotter
Editorial, 2023), Vaca profana: microcontos (Cotia-SP, Editora Cajuína,
2023); H2Opus (Cotia-SP, Editora Cajuína, 2023), Bendito Filho
– romance sobre a infância do Menino Jesus
(Araraquara-SP, Opera Editorial, 2023); Alucilâminas (Cotia-SP, Editora
Cajuína, 2023); Ensaios gerais:
compêndio de críticas lítero-culturais
(Belo Horizonte, Editora Caravana, 2024); e Alfa & Beto
– da poética das palavras – historial poético
das letras (São Paulo, Editora Cajuína, 2024).
É
autor ainda de Porta-lapsos, poemas (São Paulo, Editora All-Print, 2005);
O Homem que virou cerveja, crônicas (São Paulo, Giz Editorial, 2009); e Favela
stories, contos (Cotia-SP, Editora Cajuína, 2022). Seus trabalhos constam de
mais de cem antologias, inclusive no exterior, como na Antologia Multilingue
de Letteratura Contemporanea, de Treton, Itália, e Christmas Anthology,
de Ohio/EUA. Adelto Gonçalves - Brasil
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Rua Frida Kahlo, crônicas, de Silas Corrêa Leite, com prefácio
de Luiz Eduardo de Carvalho. São Paulo, Editora Calêndula, 154 págs., R$ 90,00,
2024. Site:
www.editoracalendula.com.br E-mail
do autor: poesilas@terra.com.br Site do autor: www.poetasilascorrealeite.com.br
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Adelto Gonçalves, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Letras na
área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga,
um Poeta do Iluminismo (Rio
de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002), Fernando Pessoa: a Voz de Deus (Santos,
Editora da Unisanta, 1997); Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003, São Paulo,
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras,
2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp,
2015), Os Vira-latas da Madrugada
(Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra
Selvagem, 2015), O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania
de São Paulo – 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Escreveu prefácio
para o livro Kenneth Maxwell on Global Trends
(Londres, Robbin Laird, editor, 2024), publicado na Inglaterra. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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