Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Macau - Prevenção do covid-19 foi “célere” porque já existia quadro legal

O facto de Macau já ter tido a experiência da SARS e de dispor de um quadro legal que regula a acção aquando de um cenário marcado por uma doença infecto-contagiosa levou a que tivessem sido implementadas medidas preventivas de forma mais rápida quando comparado com outros pontos no mundo, como é o caso de Portugal. A conclusão é de Vera Lúcia Raposo, docente da Faculdade de Direito da Universidade de Macau, que num artigo intitulado “Macau, a luta contra a Covid-19 no olho do furacão” alerta ainda para o perigo de alguns governos restringirem liberdades mesmo depois de a pandemia estar controlada

Foi recentemente publicado nos Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário um artigo da autoria de Vera Lúcia Raposo intitulado “Macau, a luta contra a COVID-19 no olho do furacão”, que foca vários aspectos importantes do combate à pandemia no território. Uma das questões levantadas tem a ver com o facto de já existir uma Lei de prevenção, controlo e tratamento de doenças transmissíveis, desde 2004.

“Macau foi tão célere a adoptar medidas porque já tinha um quadro legal que o permitia fazê-lo. Por exemplo, por aquilo que vi aqui de longe, as grandes questões que havia em Portugal passavam por saber se era possível pedir às pessoas para ficarem em casa, se havia quadro legal para isso”, começou por referir a professora associada da Faculdade de Direito da Universidade de Macau em declarações ao Jornal Tribuna de Macau.

“Até porque a Constituição em Portugal também é diferente da Lei Básica de Macau, com particularidade no que diz respeito aos direitos, mas não havia um quadro legal que permitisse impor essas medidas eventualmente restritivas de direitos em determinados quadros que podem ser uma pandemia ou outro tipo de desastres”, acrescentou.

Isso levou a questões que foram debatidas por constitucionalistas em Portugal. “Houve quem entendesse que não [podiam obrigar ao confinamento]. Nomeadamente, o que estava em causa era a liberdade de circulação. Se vamos pedir às pessoas para ficar em casa, não vão poder decidir ir à praia ou sair à rua só porque sim. Isso é uma restrição à liberdade de circulação e na Constituição portuguesa não está estritamente previsto que esta liberdade possa ser limitada no caso de uma pandemia”.

Porém, há também quem considere que “a Constituição não é para ser lida como se fosse uma lista telefónica”. “Na Constituição temos de olhar para as entrelinhas, para o que não está dito, portanto, estando também o direito à saúde e à vida considerados, esses direitos permitem, dentro de alguns limites, tomar algumas medidas restritivas da liberdade”.

Se em Portugal houvesse uma lei específica como em Macau, “toda esta discussão era desnecessária, a questão estava em saber quais eram as medidas adequadas em cada momento”. “Em Macau já tínhamos meio caminho andado porque tínhamos uma lei que permitia actuar, não havia tempo a perder, até porque, independentemente do quadro legal, temos de perceber que Macau beneficiou da experiência adquirida com outras crises sanitárias anteriores, como a SARS”, frisou Vera Raposo.

“Solo fértil” para restrições às liberdades

No mesmo artigo, a académica destaca algo que denomina de “princípio da necessidade” e defende que “as epidemias e as pandemias são solo fértil para decretar medidas restritivas de direitos”.

“Numa pandemia, quando está em causa a saúde, aparece logo um argumento que é muito fácil de usar e que é sedutor e aceite por todos para poder colocar limitações aos direitos e liberdades e todos compreendemos que assim é, porque é um bem comum e um bem maior: a saúde pública”, sublinhou em declarações a este jornal.

Por este motivo, “toda a gente percebeu a adopção de algumas medidas mais drásticas”. “Podem ser medidas justificadas quando os níveis de infecção e as características da doença assim o justificam, agora, qual é a tentação? Imagine-se que começam a adoptar certas medidas, como a atribuição de códigos por cores que limitam o grau de liberdade de um indivíduo, há uma grande tentação por parte de certos governos de manter essas medidas mesmo quando elas já não são necessárias”, apontou Vera Lúcia Raposo.

Outro aspecto a ter em conta relativamente à forma como Macau lidou com o COVID-19 passa pela mentalidade da população. “No geral, noto que na comunidade chinesa, talvez por força do confucionismo, existe uma ideia do bem comum acima do bem individual. Em Portugal, como a maior parte das sociedades ocidentais, a sociedade é individualista e a ideia de liberdade individual é muito forte na comunidade e no ordenamento jurídico”.

No artigo, a académica frisa que “Macau nunca precisou de decretar quarentenas obrigatórias para manter a população em casa e assim quebrar a cadeia de contágio. A obrigatoriedade da medida só se colocou em relação às pessoas que chegavam do exterior e mesmo essa com a duração limitada de 14 dias”.

Nas conclusões deste trabalho, Vera Lúcia Raposo defende que “as epidemias/pandemias parecem evidenciar um conflito entre o bem comum – no caso, a saúde pública – e os direitos individuais, dando lugar a decisões que resultam de uma tensão entre esses dois pólos”.

“Porém, esse conflito pode, na verdade, nem existir. Pode suceder, e acredito que assim suceda, que a satisfação do bem comum passe pelo respeito dos direitos individuais e vice-versa”.

Ainda assim, “há, certamente, casos em que a realização do bem comum é conseguida com grande sacrifício dos direitos e liberdades individuais, e os eventos reportados na China durante o surto de COVID-19 parecem indiciar uma situação dessas”.

Seja como for, “os casos mais bem-sucedidos serão aqueles em que ambos se realizam ao mesmo tempo e em que a concretização de um deles passa pela concretização do outro”.

“Este delicado equilíbrio é bem visível na forma como Macau – o seu Governo e as suas gentes – lidou com a COVID-19. Não foi preciso impor medidas porque a população acatou voluntariamente o que foi pedido pelas autoridades com base na ideia de que o bem comum é o bem de todos”, defende Vera Lúcia Raposo. Inês Almeida – Macau in “Jornal Tribuna de Macau”

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