A
sedução totalitária (*)
I
Por que o século XX foi um período
tão propício a experiências totalitárias? Sabe-se que Hitler, Mussolini,
Stalin, Franco, Salazar, Vargas e outros ditadores menos cotados ou conhecidos
não chegaram ao poder e muito menos governaram sozinhos, contando com o apoio
não só de grandes homens de negócios, que sustentaram as maiores ignomínias
praticadas contra seres humanos, em troca de interesses pessoais e, muitas
vezes, mesquinhos, como do homem comum, o das ruas, o homem-massa, conforme o definiu
o pensador espanhol Ortega y Gasset (1883-1955).
Examinar a gênese do pensamento totalitário e as razões que o levaram a encantar multidões foi o que motivou a
XIII Semana de Filosofia, realizada em 2010 na Universidade Federal de São João
del Rei (UFSJ), em Minas Gerais. São os 12 estudos apresentados durante esse
seminário que estão reunidos em Poder e
Moralidade: o totalitarismo e outras experiências antiliberais na modernidade
(São Paulo, Annablume/UFSJ, 2012), com apresentação e organização do filósofo e
psicólogo José Maurício de Carvalho, professor titular de Filosofia
Contemporânea do Departamento de Filosofia da UFSJ, doutor em Filosofia pela
Universidade Gama Filho, do Rio de Janeiro.
Em poucas palavras, os estudos
revelam que o totalitarismo é adversário do homem livre, ou seja, daquele que
se percebe responsável por seu destino histórico, que escolhe e é capaz de
sustentar responsavelmente suas opções, como assinala o professor José Maurício
de Carvalho na apresentação que escreveu para este volume. Isso não significa
que nos regimes ditos liberais não existam focos de totalitarismo, como sabe
muito bem quem já trabalhou em redações de jornais e revistas e viu de perto grandes
empresas e autoridades públicas procurarem asfixiar a liberdade de pensamento à
custa de pressões econômicas. Sem contar que a chamada liberdade de imprensa
quase sempre é a liberdade do dono do jornal de publicar o que quiser, mas não a
do empregado jornalista.
II
Para o professor Selvino Antonio
Malfatti, da Universidade Federal de Santa Maria, do Rio Grande do Sul, o
fenômeno totalitário é uma experiência relativamente recente na história
política do Ocidente e constitui um desvio de rota da moralidade ocidental. Em
seu estudo “Moralidade e Política no Totalitarismo”, Malfatti diz que o
fenômeno é resultado da falência dos valores humanos e da descrença na
capacidade do homem de se organizar sozinho.
Essa é uma ideia muito antiga e que,
ao final de 1797, por exemplo, serviu para o intendente-geral de Polícia, Diogo
Inácio de Pina Manique, organizar uma sessão da Nova Arcádia na grande sala da
Real Casa Pia, no Castelo de São Jorge, em Lisboa, em homenagem ao aniversário
de D. Maria, em que o acadêmico Manuel Bernardo de Sousa e Melo, presidente do
encontro, defendeu “a solidez interna das monarquias reais” e condenou “a
fraqueza das fórmulas republicanas”. Dirigindo-se ao príncipe regente D. João,
o acadêmico dizia que “os homens não nascem bons e, por isso, onde quer que vão
levam consigo a depravação de origem”.
Dizia mais: “Portanto, os homens levarão consigo a depravação, a ambição, o ódio, a sensualidade, o ciúme, a vingança;
enfim, levarão as paixões, estes ímpetos precipitados do nosso ânimo, estes
monstros domésticos do nosso coração, mais indomáveis que feras exteriores,
pois, desenfreados e livres, não respeitam outro direito que o da força nem
conhecem outras virtudes mais que as suas mesmas satisfações”. Era o que o
intendente queria que o príncipe regente ouvisse para justificar mais
repressão, como se lê em Bocage: o Perfil
Perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003, p. 241), deste articulista.
Muitos anos mais tarde, do outro
lado da Europa, em São Petersburgo, um morador de um prédio que fica no
cruzamento da rua Koppuznetchny com a rua Dostoevskaia, antiga Iamskaïa, não
muito distante da igreja do Ícone de Nossa Senhora de Vladimir, escreveria que
“nada de grandioso se pode esperar do homem”, seguindo na mesma linha do
acadêmico Sousa e Melo. Esse morador
chamava-se Fiodor Dostoievski (1821-1881) e ninguém como ele retratou com tanta
fidelidade a humanidade em toda a sua miséria e degradação.
Esse pensamento deve ter ficado na
alma das gerações que os sucederam. Se o Portugal joanino e o Portugal
salazarista como a Rússia czarista e a Rússia soviética eram países atrasados e
com altos índices de analfabetismo, a conclusão a que se poderia chegar é que
constituíam terreno fértil para a sedução do totalitarismo. Mas como explicar
que a Alemanha, já desenvolvida à época e com altos índices de alfabetização, também
se tenha deixado atrair pela insânia nazista?
III
Diz o professor Malfatti que, em
troca da adesão, o totalitarismo oferece uma ideologia que se propõe a explicar
toda a vida da sociedade. “Todos devem professar a ideologia como se fosse uma
fé religiosa”, diz o professor. “O ditador, rodeado de uma pequena parcela da
população, submete o resto. Para tanto”, diz, “cria um partido, único
evidentemente, dirigido por ele à frente de fanáticos seguidores. O passo
seguinte é instaurar um sistema de terrorismo policial que invade e vasculha
toda vida pública e privada dos indivíduos. O outro passo é o controle dos
meios de comunicação para que só a ideologia oficial seja ouvida. Tudo isso
permeado por ideais salvacionistas”. E acrescenta: “Os líderes soviéticos no
período stalinista e os chefes do nazismo estavam imbuídos de que estavam cumprindo
uma missão para a humanidade”.
De fato, durante a ditadura militar
(1964-1985) no Brasil, uma parte dos torturadores e de seus financiadores
imaginava que estava colocando o País a salvo da ameaça comunista, mas a maior
parte fazia o serviço sujo não só por sadismo e mau-caratismo como para se
aproveitar de vantagens pessoais e oportunidades que se ofereciam com o saque
dos despojos das vítimas.
IV
Já José Maurício de Carvalho e
Vanessa da Costa Bessa, da UFSJ, em “Totalitarismo e ética em Ortega y Gasset”,
defendem que a recusa do homem-massa em assumir a sua vida é o sangue que
impulsiona os governos totalitários que a Europa produziu no século passado.
Para os autores, as ideias de Ortega y Gasset ainda permitem entender o
fenômeno, embora o mundo de hoje seja outro e pior, pois assolado por violência
urbana, pelo crime organizado associado ao tráfico de drogas, fanatismo religioso
convertido em terrorismo e ameaças de desequilíbrio ecológico.
Seja como for, para os autores,
continuamos a viver um tempo de massas, tal como definiu Ortega y Gasset. Por
isso, dizem, os riscos de nos depararmos com novas propostas totalitárias não
estão afastadas de todo enquanto a responsabilidade com a construção do futuro
não for retomada e o medo da liberdade não for vencido. “O risco é real porque
poucas vezes na história humana os Estados Nacionais possuíram informações e
controles tão completos da vida de seus cidadãos”, acrescentam.
Pior ainda no Brasil de hoje em que
se vive uma época de desmoralização da representação parlamentar, tal qual na
Espanha pré-franquista. E essa desmoralização se dá pelos muitos parlamentares,
que, em troca de vantagens pessoais e de grupos, acabam virando despachantes de
contraventores, facilitadores de grandes negócios à custa do erário público –
aliás, desde os tempos coloniais, o caminho mais fácil para o enriquecimento
rápido. Desmoralizado o Parlamento, o caminho fica aberto à tentação
totalitária. Eis aqui bem depositado o ovo da serpente. Adelto Gonçalves - Brasil
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PODER
E MORALIDADE: O TOTALITARISMO E OUTRAS EXPERIÊNCIAS ANTILIBERAIS NA MODERNIDADE,
de José Maurício de Carvalho (organizador).
São Paulo: Annablume/Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ), 232
págs., 2012, R$ 40,00. E-mail: dfime@ufsj.edu.br Site: annablume.com.br
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