“O papel do romancista
na evolução da literatura nos PALOP”
“Quase me pergunto se ainda há pachorra para
ouvirem esse tal que vem já com o fim da colheita a ver-se, com a lavagem dos
cestos praticamente iniciada. Para agravar o meu destino. Venho falar depois de
o terem feito com a notabilidade que lhes é própria, dois ilustres moçambicanos
chamados de propósito para darem ampla luminosidade à festa da nossa mais
resistente associação amiga da cultura. É um arrojo meu tentar acrescentar seja
lá o que for ao que já disseram sobre José Luís Cabaço e João Paulo Borges
Coelho.
De qualquer maneira “Kanimambo” aos dois, por
se entregarem antes de mim ao “fogo amigo”, esperando vir a beneficiar do seu
trabalho como desbravadores.
Pois cá vamos para as nossas ideias sobre o
papel do romancista na evolução da literatura nos Países Africanos de Língua
Oficial Portuguesa.
Constato
pelas contas das leituras esparsas e das notícias episódicas dos jornalistas
que a produção literária no universo dos PALOP anda de boa saúde, quer o que se
avalie seja a poesia ou o romance, sem menosprezo para outros géneros como o
Conto, a Novela ou a escrita dos dramaturgos.
A começar, já é muito bom que seja essa a
realidade dos factos, perante o impetuoso avanço do desinteresse pela leitura,
um fenómeno pelos vistos transversal e que vai obrigar os nossos Estados, os
nossos sectores da Cultura, os nossos investigadores, a desafios imaginativos
para que as sociedades do futuro não venham a ser uma infeliz e deslustrada
reprodução dos longevos habitantes das cavernas, recolectores de frutos,
caçadores de mamutes, fornicadores inveterados e pouco mais! Como dizem que a
moda e a História andam aos ciclos com vaivéns infalíveis, tenho medo que
venhamos a ser substituídos – se calhar mais cedo do que se pensa – por
gerações grotescas de trogloditas e mentecaptos olimpicamente alheados da festa
da leitura.
Retomando o fio, temos pois como primeira
ideia a existência de uma literatura pujante, sólida, com sinais de uma
produtividade a toda a prova, no conjunto das nossas cinco nações que se comunicam
em português no continente africano.
O bom momento da nossa literatura é resultado
da contribuição efectiva dada por todos os que um dia nas suas vidas
descobriram o secreto e irrecusável apelo que vem de dentro, para que mais do
que os mundanos affairs comuns e
correntes do quotidiano, a passagem pela terra faz mais sentido quando se
pratica o dom da partilha.
Escrever, na verdade, não é outra coisa senão
entregar-se aos outros depois do egoísmo momentâneo e perdoável da produção.
Sinto que há cada vez mais gente a
interessar-se pela escrita. Ou seja, temos romancistas a reproduzirem-se quase
como cogumelos em tempo de chuvas.
Relativamente ao modo copioso como o romance
vem reforçando o património intelectual dos nossos países, talvez valha a pena
trazer à tona um punhado de perguntas que às tantas nos fazemos mas sem grandes
preocupações com o que pode ser o leque de respostas correspondentes. Por
exemplo, os romancistas estão mais motivados a escrever quando as sociedades em
que vivem enfrentam tempos críticos como a guerra que por longo tempo nos
acompanhou em Angola ou, pelo contrário, os tempos de acalmia, de paz, de
sossego, sugerem mais temas, mais ideias, mais trabalho?
A observação que mantenho da nossa realidade
não privilegia nem um nem outro cenário. A ideia na qual acredito é a de que,
basicamente, os romancistas estão activos a tempo inteiro e vão buscar ao
estado da sociedade – qualquer que ele seja – os temas inspiradores que depois
trabalham segundo balizas ideológicas subjectivas e os seus próprios ritmos
produtivos.
A contribuição dos romancistas dos nossos
países para o crescimento das respectivas literaturas é, claramente, muito
presente.
As sociedades africanas, ou seja, as nossas,
têm a grande vantagem de não serem sociedades exauridas, exangues,
recauchutadas nos modelos. Encerram um potencial de matéria virgem que é, na
verdade, uma enormíssima dor de cabeça para os escritores, pois morrem de raiva
pelo facto de os dias terem apenas 24 horas quando eles gostariam de dispor de
mais tempo para trabalhar em tanta coisa que sabem estar à mão de semear.
Escrever em África, como africanos e sobre
questões africanas, é uma infinita bênção.
Qualquer um de nós que sucumbiu à tentação de
seguir as peugadas do romance – quer o histórico quer o ficcionado a partir da
realidade circundante – sente que ao escrever ajuda a mostrar o que somos, como
vivemos, o que sentimos, ao que aspiramos e o que nos atormenta.
Nos nossos países os romancistas agimos como
se, sobre os nossos ombros, repousasse o peso da estruturação da História e do
adensar de outras disciplinas surgidas da necessidade natural de se perceber e
debater a teia complexa das inter-relações humanas.
Quando lemos Pepetela nas suas múltiplas
entregas ficámos logo com um claro entendimento daquilo que estou a tentar
teorizar aqui. O mesmo se dirá da linha de intervenção de Ismael Mateus, Manuel
Rui Monteiro ou Aníbal Simões, valendo a extrapolação para Luís Bernardo
Honwana, o moçambicano de quem a criançada em Angola leu “Nós Matámos o Cão
Tinhoso” nos tempos de ingénua e saudosa lucidez em que se acreditava que os
nossos podiam merecer, afinal, um espaço e um lugar no contexto do ensino que
nos fazia (e faz) falta; ou o incontornável Mia Couto, que carrega às costas,
pode dizer-se, a palpitante história presente e sem esperar pelo amanhã
esquivo, da vida dos moçambicanos; referência também, e pelas mesmas razões, ao
cabo-verdiano Manuel Lopes, que nos legou os Flagelados do Vento Leste, escrito
era ainda o arquipélago uma colónia de Portugal mas insubstituível na
descoberta do Cabo Verde real, com as suas calamidades, as secas, a vida em
condições extremas num lugar agreste.
Admitamos que não é uma mera retórica a
contribuição do romancista na consolidação, fortalecimento e projecção da
literatura nos PALOP. Nem é, muito menos ainda, uma simples pergunta que se
formula para preencher mais um painel que debate e dá trabalho a dois, três ou
quatro teóricos que se esfalfam em explicações: nada disso!
O romance, felizmente, está presente na
realidade dos nossos países com a panóplia de outras conquistas e degenerações
próprias de um percurso de vida imparável. O que há é, de resto, uma
indestrutível relação de causa e efeito: as sociedades produzem as sementes, o
adubo, as mudas; os romancistas tratam de capturar essa atmosfera com o receio
ancestral de se perder na voragem dos dias, e fazem os livros.
Portanto, a hipótese improvável de que os
romancistas deixem de cumprir com o seu papel de alimentadores da literatura
nos nossos países só se daria se, por um qualquer eclipse existencial, as
nossas sociedades se tornassem amorfas, deixassem de produzir eventos nos mais
distintos campos da vida, numa palavra, se extinguissem como factores de
transformação.
Havendo países, havendo vida, havendo acção
humana, os romancistas lá estarão eles sempre de ouvido arrebitado para servir
a sua geração e as que virão, interpretando os fenómenos e fixando-os no papel
dos livros.
Não tenhamos pois o receio de que o que está
a acontecer hoje diante dos nossos narizes (com a nossa contribuição consciente
enquanto cidadãos ou na condição de impotentes observadores apenas) se perca no
lusco-fusco do tempo. A classe dos escritores, ao longo da civilização humana,
nunca se caracterizou pela distracção nem pela preguicite. De tal sorte que, no
caso dos nossos países, temos e continuaremos a ter preservado em livros o
amplo e incrível caleidoscópio de fenómenos próprios da nossa evolução como
comunidades. Os livros que lemos e leremos no futuro vão continuar a falar das
dores da colonização como aqui mesmo neste evento da Chá de Caxinde tivemos
testemunho, com a obra de Alberto de Oliveira Pinto “Angola e as Retóricas
Coloniais”; do parto difícil que foram as nossas independências; da utopia dos
primeiros anos, o sonho do céu e o paraíso depois de vencido o colonizador
estrangeiro; da trapalhada risível que é a tentativa de nos tornarmos
empresários ganhadores e novos-ricos nos países que agora são efectivamente
nossos pela legitimidade das independências; de tudo o que lhe está subjacente,
as “catanadas” entre “iguais”; as ostentações bizarras; o fausto patético das
festas em sociedade, onde desfilam com ar triunfal caricaturas humanas de que
os lúcidos se riem; o cancro da corrupção; dos que vão ficando pelo caminho,
frustrados porque lutaram pela pátria mas a riqueza não os contemplou; das
mulheres e homens astutos que alimentam os mais estranhos submundos, que tão
bem os retracta o nosso Pepetela; dos mercadores que chegam de todo o mundo
para iniciar entre nós os seus mundos, com fahitas
que seduzem até meninos alimentados desde sempre com produtos da Nestlé; das
novas fés e novas rezas que fecham ruas em bairros onde os nativos passaram
quase à clandestinidade; dos doutorismos em voga, porque os diplomas pendurados
na parede são uma mescla irresistível de fetiche e status; da enganosa felicidade dos jovens por cada vez lerem menos
e renderem-se aos subprodutos de uma cultura que não é nenhuma; enfim, um
universo vasto de retractos que só poderá produzir como resultado uma
literatura evoluída porque densa, diversificada nos temas que aborda,
extraordinariamente rica até pelos acasos do Destino!
Saio de cena com um desejo impossível de
reprimir, que é o de voltar a exaltar a capacidade de sofrimento da Chá de
Caxinde, que todos percebemos que há anos faz do deserto o seu lugar de
pregação, mas não atira a toalha ao chão, não desiste, não desfalece, não se
rende à tentativa silenciosa de se secundarizar a alma cultural de uma cidade
como Luanda, que já foi lugar de fervorosas tertúlias e emotivas loas ao
conhecimento e saber. Mantenham-se à tona, pois não há tsunamis que vos varrerão do mapa, enquanto acreditarmos todos que
ler é uma festa.” Luís Fernando – Angola
in “Jornal Cultura”
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