Em novo livro, o poeta exercita a arte dos limeriques e recupera aforismos e ditados tradicionais
I
Ao contrário do haikai, um tipo de poema de origem japonesa, mas muito popularizado no Brasil e exercitado por grandes nomes como Guilherme de Almeida (1890-1969), Paulo Leminski (1944-1989) e Millor Fernandes (1923-2012), o limerique, poema de forma fixa composto por cinco versos, com a primeira, a segunda e a quinta linhas terminando com a mesma rima, ainda é pouco conhecido entre os leitores de língua portuguesa. Trata-se de uma forma poética que, a rigor, não oferece muita poesia, mas que flerta com o humorismo e a irreverência, sendo utilizado para se contar uma piada ou uma boutade, de maneira criativa e concisa, ou seja, uma tirada espirituosa. Ou repetir um aforismo, explicitando uma regra ou princípio de alcance moral.
Historicamente, o limerique tem sua origem na literatura inglesa e popularizou-se por lá no século XIX, tendo ganhado adeptos em outras partes do mundo. Supõe-se que tenha sido inspirado na cidade de Limerick, na Irlanda, onde esse estilo de poesia era frequentemente utilizado e foi desenvolvido pelo poeta inglês Edward Lear (1812-1888). No Brasil, entre os seus mais conhecidos cultores estão Sousândrade (1833-1902), Clarice Lispector (1920-1977), Tatiana Belinski (1919-2013) e alguns poetas neoconcretistas.
II
Um bom exemplo do que se lê acima é o poemeto “Solidão sem fio”:
Era tão solitária, mas tão solitária, coitada / Que ligava para si mesma no número do celular / Só para ter alguma esperança ao escutar / A mensagem de sua própria voz gravada / E assim pelo menos se sentir acompanhada.
Outro legítimo limerique é este que leva como o título a sua primeira frase:
Era um menino sisudo / Sem eira nem beira, sem lar /Queira ser poeta, ser tudo / Tentando sua vida salvar / Alma de lã, coração de veludo.
Mas, poeta experiente, acostumado a refazer poemetos históricos, recorrer a trocadilhos, a ditos populares, o autor, como se disse, optou por abrasileirar o gênero, criando peças diferenciadas, ou seja, textos curtos e sucintos em que faz uma releitura das peças tradicionais, trabalhando as cantilenas, as invencionices, criando pequenos poemas que são quase haikais, trovinhas, quadras, tercetos, sem perder o bom humor tupiniquim.
Entre as quadras, há algumas muito criativas e que repetem comentários que o leitor, com certeza, costuma ouvir no dia a dia. Eis um exemplo:
O médico / Olha para a cara da gente / Como se o doente / Fosse ele.
Segue outro exemplo:
Arrisco saltar / Sem rede de proteção / E o pior risco mesmo assim / É quando eu me caio em mim.
Em poemas mais longos, a criatividade e o lirismo estão igualmente presentes. É o que se vê aqui em “Peter Pan, o poema”:
Metade do que sou é criança / A outra metade é adulto / Quem é meio Peter Pan não cansa / De sonhar máscara e vulto / Eu queria ser um super-herói / Mas ser humano é mesmo assim / Ser um simples mortal dói / Onde está o pó de pirimpimpim? / Metade de mim é menino / A outra metade é vã / Eu queria o meu destino / O mesmo de Peter Pan / Eu brincava com a vida / No ápice da minha infância / Imitando um Pinóquio / Escrevendo com elegância / Mas minto que vou levando / Essa triste vida ruim / Quem não sabe, vivo voando / Para um outro Eu de mim / Metade de mim escorro / A outra sonho ser Tarzan / Já que não posso ser Zorro / Eu queria ser Peter Pan.
Ou ainda em “Livro aberto”, poema em que se define como artesão do verso:
Sou um eterno aprendiz. / Essa é a minha maior e melhor liberdade. / Sou poeta. / Essa é a minha maior rebeldia. / Estou aqui de passagem, / Essa é a minha melhor poesia.
III
Lançou Campo de trigo com corvos (Jaraguá do Sul-SC, Design Editora, 2007); Gute-Gute, barriga experimental de repertório (Rio de Janeiro, Editora Autografia, 2015); Goto, a lenda do reino encantado do barqueiro noturno do rio Itararé (Florianópolis, Clube de Autores Editora, 2013); Tibete, de quando você não quiser ser gente (Rio de Janeiro, Editora Jaguatirica, 2017); Ele está no meio de nós (Curitiba, Kotter Editorial, 2018); O Marceneiro – a última tentativa de Cristo (Maringá-PR, Editora Viseu, 2019), O lixeiro e o presidente (Curitiba, Kotter Editorial, 2019); e Desjardim – muito além do farol do final do mundo (Belo Horizonte, Editora Caravana, 2023), entre outros.
Nos últimos tempos, lançou Transpenumbra do Armagedon (São Paulo, Desconcertos Editora, 2021); Cavalos selvagens, romance imaginativo (Curitiba/Taubaté, Kotter Editorial/Letra Selvagem, 2021); A Coisa: muito além do coração selvagem da vida (Cotia-SP, Editora Cajuína, 2021); Lampejos (Belo Horizonte, Sangre Editorial, 2019); Leitmotiv: a longa estrada de fogueiras da cor de laranja: diário da paixão secreta de Anne Frank (Curitiba, Kotter Editorial, 2023), Vaca profana: microcontos (Cotia-SP, Editora Cajuína, 2023); e Alucilâminas (São Paulo, Editora Cajuína, 2023).
É autor ainda de Porta-lapsos, poemas (São Paulo, Editora All-Print, 2005); O Homem que virou cerveja, crônicas (São Paulo, Giz Editorial, 2009); Favela stories, contos (Cotia-SP, Editora Cajuína, 2022), e Rua Frida Kahlo, crônicas (São Paulo, Editora Calêndula, 2024). Seus trabalhos constam de mais de cem antologias, inclusive no exterior, como na Antologia Multilingue de Letteratura Contemporanea, de Treton, Itália, e Christmas Anthology, de Ohio/EUA.
É autor do primeiro livro interativo da Internet, o e-book O rinoceronte de Clarice, que virou tema de dissertação de mestrado na Universidade de Brasília (UnB) e de tese de doutoramento na Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e foi recomendado como leitura obrigatória no mestrado de Ciência da Linguagem na Universidade Cruzeiro do Sul (Unicsul), de São Paulo-SP. É criador do Estatuto do Poeta, traduzido para o inglês, francês, espanhol e russo. Adelto Gonçalves - Brasil
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Limeriques brasileirinhos, de Silas Corrêa Leite. São Paulo, Editora Calêndula, 128 páginas, R$ 68,00, 2024. Site: www.editoracalendula.com.br E-mail: editora@editoracalendula.com.br E-mail do autor: poesilas@terra.com.br Site do autor: www.poetasilascorrealeite.com.br
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Adelto Gonçalves, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Fernando Pessoa: a Voz de Deus (Santos, Editora da Unisanta, 1997); Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo – 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Escreveu prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global Trends (Londres, Robbin Lard, editor, 2024), lançado na Inglaterra. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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