Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Macau - Multiculturalidade dos macaenses “tem de ser melhor explorada”

O papel da comunidade macaense no passado, presente e futuro de Macau, é tema para uma análise de alguns macaenses residentes no território. Falando sobre o período de 25 anos desde que foi estabelecida a RAEM, Leonel Alves entende que a “multiculturalidade” dos macaenses é algo que “tem de ser melhor explorado”. As vantagens específicas dos macaenses, e da RAEM em geral, também são salientadas por António Monteiro, Paula Carion, José Basto da Silva e Manuel Silvério



Numa altura em que a RAEM celebra 25 anos de existência, “é já altura de reflectirmos e vermos qual é o posicionamento da comunidade macaense no contexto do desenvolvimento de Macau e da China”, considera Leonel Alves. “Não houve uma clarificação muito forte sobre aquilo que os jovens macaenses do futuro poderão vir a desempenhar neste território”, disse ao Jornal Tribuna de Macau o antigo deputado que integra actualmente o Conselho Executivo da RAEM.

Leonel Alves, um dos exemplos de “figuras da terra” que têm desempenhado cargos de relevância no panorama político, relembra o contributo dos macaenses em duas vertentes, funcionalismo público e extra-funcionalismo público, considerando que a comunidade está muito ligada à administração.

“Os lugares mantiveram-se, obviamente que muitos tiveram de aprender o chinês. Sendo uma administração chinesa, o bilinguismo é fundamental e é precisamente esse o segmento em que a comunidade macaense pode, poderia e poderá futuramente desempenhar uma função muito específica”.

Para o advogado de profissão, “o macaense, na essência, tem essa vocação linguística, multiculturalidade, é um ser multifacetado”. “É isso que tem de ser melhor explorado, porque penso que não está muito bem explorado até hoje e terá de o ser futuramente para desempenhar a sua função na sociedade”.

Recordando diversos macaenses que exerceram altos cargos políticos, ou foram directores de serviços em várias áreas, Leonel Alves acredita que “tudo isso indica que no aspecto macro político o macaense é considerado parte integrante da população de Macau e as posições que desempenhe dependem da valia e das oportunidades que surgirem”.

O presidente do Conselho Geral do Conselho Permanente das Comunidades Macaenses, que ainda recentemente participou no Encontro de 2024, dá grande ênfase ao futuro, sublinhando a necessidade do macaense “enfatizar a sua vocação natural, que é a multiculturalidade”. “Se isso for muito vincado, poderá contribuir enormemente” para a RAEM, sustenta.

“O território é especial, atento às suas características, às suas singularidades, e uma delas é efectivamente a existência de uma comunidade própria, que é a comunidade macaense, a qual poderá, enfim, fazer as pontes com o exterior”, acrescenta.

Por outro lado, recorda que “Macau tem um desígnio nacional de ser plataforma com os países de língua portuguesa e esta aproximação poderá proporcionar à comunidade macaense um posicionamento muito especial”. Actualmente, prossegue, com muitos chineses a dominarem a língua de Camões, a comunidade macaense “não pode ficar-se atrás” nessa área, porque “o Português é importante também acompanhar o futuro de Macau”.

Com Hengqin, o futuro “não tem limites”

Atualmente, “com a maior integração económica, com o maior espaço geográfico com Hengqin, o futuro não tem limites”, afirma Leonel Alves, frisando que a comunidade macaense também tem outra vertente, que é a sua vocação para o aspecto profissional. “O uso das novas tecnologias aprendidas no estrangeiro pode ser uma mais-valia, um valor acrescentado muito importante para Macau”, defende, vincando que “as portas estão abertas e o macaense terá, obviamente, o seu lugar próprio em Macau”.

Com a entrada de um novo Chefe do Executivo, fluente na Língua Portuguesa, “o diálogo com a comunidade lusa, com a comunidade macaense, que não se expressa bem em Chinês, vai ser muito mais facilitado”, realça, prevendo uma interacção diferente. “Já não é preciso puxar muito pela cabeça para encontrar a palavra chinesa correcta para expressar o que está a pensar, tudo facilitando um diálogo que será certamente profícuo e para o benefício de Macau”, assevera.

Leonel Alves salienta também que a próxima etapa do desenvolvimento da RAEM “é fundamental para se pensar naquilo que poderá vir a ser depois de 2049”. Essa data significa “uma garantia de que ‘Um País, Dois Sistemas’ vigorará durante 50 anos, mas não quer dizer que seja um beco sem saída”. Macau, tal como Hong Kong, “terá um desenvolvimento natural”, que “tem a ver com a utilidade que a região venha a ter, nessa altura, para o país”, destaca.

Uma das especificidades de Macau assenta no sistema jurídico, distinto dos vigentes em Hong Kong e na China continental. “É um ordenamento jurídico que urge, neste momento, ser modernizado, adaptado às circunstâncias de desenvolvimento de Macau e desta região do mundo, para poder ser escolhido o direito de Macau nos negócios que venham a ser estabelecidos na zona da Grande Baía, havendo ligação com Macau ou com os países de língua portuguesa”, adverte.

Reforçando a sua análise, o advogado considera que, “com o desenvolvimento e a modernização, a adaptação às exigências da modernidade do direito, captando os melhores exemplos provenientes do continente europeu, e também colhendo as boas experiências arrecadadas no interior da China nestes últimos 30 anos, Macau poderá ser um laboratório e fazer uma síntese destas duas evoluções, ou seja, arranjar um quadro legal propício para o seu desenvolvimento e desta região do sul da China”.

Leonel Alves diz que esta é uma vertente que pode ser aprofundada e que beneficiará a característica de Macau como região distinta de Zhuhai, Foshan, de toda esta zona, e também de Hong Kong. “A RAEHK está extremamente ligada à ‘Common Law’, o que quer dizer com o mundo de negócios, e tem a sua vocação, que é o hemisfério norte”. Já Macau poderá servir-se “do direito que existe, melhorando-o, captando os interesses económicos do hemisfério sul, portanto os países lusófonos, Portugal, servindo de ponte de ligação depois à Europa continental”.

É isto que o causídico antecipa como uma evolução natural de Macau. Para isso, conclui, “é preciso que tenhamos políticas próprias e, mais do que políticas públicas, o próprio incentivo da sociedade civil, o próprio direccionamento daquilo que se deve fazer junto dos jovens, os pais a deverem transmitir aos seus filhos mais novos aquilo que eles poderão vir a ser em Macau e desempenhar o seu papel no futuro”.

Factor identitário tornou Macau “única e especial”

Apesar de nessa altura se encontrar em Portugal a concluir os estudos, António Monteiro lembra-se dos 10 anos que antecederam a transferência de soberania, um período de muitas mudanças, com a construção da Ponte da Amizade, Aeroporto, Zona de Aterros do Porto Exterior, Novos Aterros do Porto Exterior, redes rodoviárias, viadutos, estátuas de Kun Iam no NAPE e da Deusa A-Má em Coloane, do Centro Cultural e do pavilhão provisório para a Cerimónia de Transferência.

“Em 2006, ano do meu regresso ao território, assisti a uma Macau em constante desenvolvimento”, que “apresenta um legado cultural singular onde as festividades não são somente as chinesas tradicionais, mas também reúnem características ocidentais, mais propriamente as portuguesas, e onde se inclui a mais especial, que é a macaense”, salienta.

Este factor identitário “tornou Macau única e especial, algo que se manifesta na língua, religião, gastronomia, artes e música das suas comunidades, lado a lado com os monumentos tangíveis”, destaca o presidente da Associação dos Jovens Macaenses (AJM) e secretário-geral do Instituto Internacional de Macau.

António Monteiro observa que “com uma sociedade civil bem presente, Macau reúne comunidades e pessoas de diferentes rostos e etnias, sendo a verdadeira base da continuidade de um segundo sistema saudável, um sistema que congrega os valores de diferentes gerações e que considera importante o entendimento das culturas, nomeadamente quando conta com uma história de 500 anos”.

Compreender Macau e promover a sua marca “entre quem não é de cá implica criar condições favoráveis que permitam às novas gerações compreender o seu passado e o seu legado e, a partir daí, levar Macau para novos patamares, onde o desenvolvimento económico pode e deve incluir valores e características culturais únicas”, defende, dando como exemplos o Festival da Lusofonia, o Grande Prémio, o Arraial de São João, o mês de Portugal (Junho) em Macau e os Encontros das Comunidades Macaenses.

No que respeita ao futuro, “passa por haver uma melhor promoção de Macau internacionalmente e também na Área da Grande Baía, aproveitando exactamente a essência da sociedade civil, que tem extensas ligações com os países lusófonos e as representações macaenses no mundo, transmitindo os desenvolvimentos e os sucessos de Macau no exterior”.

No entanto, ressalva, “não podemos esquecer a utilidade da plataforma que existe entre a China e os países de língua portuguesa em vários sectores, muitas vezes não só empresariais, mas também culturais, académicos, editoriais, entre outras vertentes”. Por isso, “o meu desejo é que Macau continue a ser uma cidade aberta ao mundo, e o seu passado continue a abraçar o presente e também o futuro”, confessa António Monteiro.

“Falta de interesse” em continuar o legado

Paula Carion é também dirigente da AJM e um dos elementos da “nova geração” que mais tem lutado pela identidade macaense. Recorda 20 de Dezembro de 1999 como tendo sido “o dia mais frio” que viveu em Macau. Tendo feito uma actuação de karaté com o cantor macaense Casimiro Pinto, como parte do sarau cultural para a delegação portuguesa, “desde então, há 25 anos que me cruzo com o karaté, com o Casimiro e com a representação em palco de muitas formas diferentes”.

Paula Carion salienta ser “inegável” que o desenvolvimento social e económico de Macau se processou a uma velocidade extraordinária nas últimas duas décadas e meia. “Os edifícios, a tecnologia, os transportes e até os métodos de pagamento seriam inimagináveis no início dos anos 2000”, indica.

Concretamente sobre a comunidade macaense e a sua cultura, considera estarem a despertar cada vez maior interesse e atenção. “É isso que, na minha opinião, torna Macau único em relação a outras cidades e regiões vizinhas”. Há cada vez mais pessoas “a quererem aprender sobre a cozinha macaense, o patuá e outros aspectos da cultura que fazem de nós o que somos”, destaca, reconhecendo que têm sido “dados mais recursos para preservar estas culturas, o que é, naturalmente, uma vantagem”.

No entanto, Paula Carion alerta para uma “falta de interesse de dentro da comunidade macaense em continuar este ‘legado’, uma vez que há algumas gerações mais jovens (mais jovens do que eu, que nasci no início dos anos 80), que não se vêem como macaenses ou têm dificuldade em reconhecer-se como parte da comunidade”.

Na sua perspectiva, a preservação e a manutenção das culturas “têm de ser feitas pelas pessoas que as vivem”. “É por isso que tento levar o meu filho a tantos eventos e celebrações macaenses quanto possível, para que ele possa crescer com estas tradições, em vez de ter de aprender sobre a sua própria cultura a partir de outras fontes depois de crescer”, conta.

Impacto da comunidade tem sido “excepcional”

José Basto da Silva, por seu turno, entende que “os macaenses têm tido um papel preponderante na política, na preservação cultural, desenvolvimento económico, planeamento e desenvolvimento urbanístico, sustentabilidade do ambiente, educação e desenvolvimento de mão-de- obra, associativismo e saúde”.

Apesar da baixa percentagem da população macaense, José Basto da Silva acha que o impacto tem sido “excepcional se compararmos com os feitos”. Em todas as áreas mencionadas, “é com grande satisfação, e até com alguma vaidade alheia, que olho para estas pessoas e vejo o trabalho desenvolvido em prol não só da própria comunidade, mas do território em si”.

O engenheiro informático não esquece os macaenses da diáspora. “À sua maneira e dentro das limitações, têm ajudado a preservar a cultura tão característica de Macau e a divulgar a imagem do território, promovendo o que de bom temos e de que tanto nos orgulhamos”, aponta.

Ademais, acredita “genuinamente” que, “se não fosse a nossa comunidade, Macau seria uma terra mais ou menos igual a tantas outras, de monumentos silenciosos, sem alma e desinteressantes”. “É graças aos macaenses que a história se mantém viva, os laços com Portugal e os outros países de língua oficial portuguesa se mantêm fortes”, sublinha, acrescentando que “se Macau hoje é uma terra que se destaca na China e até no mundo, é em grande medida devido à comunidade macaense, que mantém vivas as suas raízes, cultura e língua entre outras características”.

A comunidade macaense é “resiliente, vibrante, activa e pujante”, descreve José Basto da Silva, convicto de que “são essas características que fazem com que a RAEM se tenha desenvolvido e criado a imagem que tem hoje”. O macaense afiança que os Governos Central e da RAEM “valorizam esse facto e têm todo o interesse em preservar”. Para tal, “os macaenses são o elo de ligação entre a China e (não só, mas em especial) o mundo lusófono, o factor diferenciador que enriquece o território e que não pode desaparecer, mesmo depois do fim do período de transição”, remata.

Associações e media têm sido “a bengala” da preservação

Manuel Silvério é um macaense de outra geração, que ocupou cargos antes e depois da transição, com destaque na área desportiva. “Todos tivemos e temos a liberdade de escolher”, começou por dizer, recordando que uns optaram por continuar a viver e trabalhar em Macau, enquanto outros preferiram deixar o território.

“Os macaenses estão inseridos nas diversas áreas para o desenvolvimento não só da RAEM como da Grande Baía e do próprio País, e nas áreas mais sensíveis e visíveis são ‘seleccionados’ para integrarem ou participarem nas suas discussões”, observa, aditando que “a importância dessa participação é por vezes mais simbólica e não interventiva, mas é uma predisposição da Lei Básica”. Paralelamente, “os costumes e tradições das diversas comunidades e religiões são respeitados, que vão desde a ópera Cantonense, a crença do Taísmo, a procissão do Nosso Senhor dos Passos que continua a realizar-se pelas ruas de Macau”.

No entanto, “no mercado de trabalho a comunidade tem encontrado uma maior dificuldade na sua integração, principalmente para aqueles que não dominam o Chinês escrito e falado, ou o desconhecimento do ‘Putonghua’, salvo os que possuem uma formação ou especialização”. Em contrapartida, salienta, “a nova geração de portugueses vindos do exterior tem-se adaptado e participado neste processo em permanente evolução”.

Relativamente ao que mudou depois de 1999, constata que “a idade da comunidade está envelhecida e há pouco sangue novo”. Silvério não tem dúvidas de que Macau ganhou visibilidade regional e internacional pela sua prosperidade económica e que as infraestruturas urbanas e as construções emergentes com a liberalização do jogo e o novo modelo de turismo mais diversificado alteraram radicalmente a sua imagem. “Foram os melhores anos na história de 600 anos de Macau”, resume.

Já a “divisão dos macaenses é mais visível e uma das razões prende-se com a falta de uma liderança situacional, mais afirmativa”. Ainda assim, “de uma forma genérica têm recebido maior atenção do governo central e são ouvidos sem intermediários”.

Em termos de participação política e cívica, “comparativamente com os tempos da administração portuguesa, a comunidade macaense ganhou uma posição de destaque nas sucessivas eleições para a Assembleia Legislativa pelo sufrágio directo”, refere Silvério, notando que se quebrou a tradição dos macaenses serem funcionários públicos.

Questionado sobre a preservação da identidade macaense e da Língua Portuguesa, o antigo responsável pela organização dos Jogos da Ásia Oriental (2005) e Jogos da Lusofonia (2007), entre outros eventos que projectaram Macau na cena desportiva internacional, Silvério diz que está “um pouco tremida” por falta de dinâmica e de recursos, motivação, liderança”. Na sua opinião, essa descaracterização é natural e consequente da nova situação política e económica de Macau.

“Não sou competente nem responsável para poder responder a este assunto com rigor, não participo, assim como não sou ouvido por quem de direito”, ressalva, sugerindo, porém, que essa questão estará associada ao resto dos residentes incluindo novos migrantes. “Estamos ainda num período de adolescência da RAEM”.

De qualquer modo, o Português é “usado de um modo geral pelos macaenses, é uma das duas línguas oficiais e até é utilizada nos tribunais”. “As organizações de matriz portuguesa e os media em língua portuguesa têm sido a bengala desta preservação/identidade”, realça, enfatizando que “os discursos oficiais continuam a dar ênfase aos macaenses e à sua importância para o desenvolvimento social e económico de Macau”.

Em conclusão, Silvério salienta que “a comunidade macaense de um modo geral tem tido o senso da convivência na nova sociedade e o governo local, as diversas entidades chinesas e portuguesas têm demonstrado grande vontade desta preservação”. Vítor Rebelo – Macau in “Jornal Tribuna de Macau”


Sem comentários:

Enviar um comentário