Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Macau - O passado, presente e futuro da língua portuguesa

Língua oficial da RAEM a par com o chinês, o português, e mais concretamente a sua utilização no território, tem tido altos e baixos, sendo difícil traçar uma evolução linear. Certo é que hoje ensina-se mais língua portuguesa do que antigamente, e a ideia geral é de que, no ensino, o Governo tem desempenhado o seu papel de preservação do português. Porém, no dia-a-dia há ainda “dificuldades”, sobretudo no acesso a determinados serviços. O uso da língua deveria ser reforçado, por exemplo, em áreas como o Direito e Saúde, consideram as figuras ouvidas pelo Jornal Tribuna de Macau. Quanto ao futuro, há esperanças de que seja dada maior atenção à Língua de Camões



O ensino da língua portuguesa na RAEM “tem tido uma boa evolução” nos últimos 25 anos – desde logo pelo número de escolas que hoje ensinam o português e pelo número de alunos que vem frequentando cursos, quer sejam de ensino superior ou não. Contudo, “o efeito ainda se sente muito pouco” na vida quotidiana. Apesar disso, a ideia geral é de que o Governo tem desempenhado o seu papel de preservação do português, ainda que haja quem considere que podia ser feito mais.

Vincando que em algumas áreas, como a do ensino, “tem havido um trabalho proactivo do Governo da RAEM”, a presidente do Instituto Português do Oriente (IPOR), Patrícia Ribeiro, observa que, “no que respeita à língua portuguesa como veículo de comunicação entre pessoas e organizações, temos vindo a registar um decréscimo que pode estar relacionado com o diminuir da comunidade portuguesa e o aumento do número de cidadãos de outras nacionalidades não falantes da língua”.

Patrícia Ribeiro dá conta de que “cada vez mais escolas do ensino não superior – este ano mais quatro – incluem a língua portuguesa nos seus currículos” e, quanto à formação contínua de funcionários públicos, “registou-se uma maior diversificação das áreas específicas de aprendizagem, envolvendo outros sectores de actividade”. Além disso, “para a população em geral verificou-se um crescente dinamismo, com o Governo da RAEM a promover projectos para incentivo à população no envolvimento em actividades [culturais e lúdicas] em língua portuguesa”.

Dados oficiais cedidos pelo IPOR revelam que, no ano passado, a instituição contou com perto de 3800 formandos, contra cerca de 700 em 1999/2000. Entre 2012 e o ano passado, a média foi de cerca de 4200 alunos por ano.

“Noutras esferas, no entanto, existe um declínio do uso da língua como veículo de comunicação por parte de algumas entidades governamentais que até recentemente procuravam redigir documentação usando as duas línguas oficiais da RAEM”, nota a presidente do IPOR, acrescentando: “Pese embora nem todas as áreas de actuação mostrem o mesmo empenho na preservação da língua, no cômputo geral o Governo da RAEM tem cumprido o seu papel”.

Também a presidente da Casa de Portugal – que há mais de 15 anos premeia anualmente os melhores alunos em Português – refere que “nunca se ensinou tanto Português como actualmente”, segundo os dados que lhe vão chegando. “Depois na vida do dia-a-dia, o resultado disso acho que ainda se sente muito pouco. Quando se vai a um serviço ou quando se interage com alguma entidade, há uma grande dificuldade”, acrescenta Amélia António, dizendo ter a sensação de que as pessoas sabem um bocadinho de português, mas “têm ainda receio” de falar.

“Penso que poderia ser feito um pouco mais [por parte do Governo], porque este esforço do ensino não é suficiente. Se se fizesse um esforço um bocadinho maior por garantir o uso da língua nos serviços, se isso até fosse um factor de valorização dos trabalhadores, eventualmente viam-se mais resultados”, defende Amélia António. Na sua perspectiva, poderá haver duas razões para um “certo retraimento” de alguns funcionários em falar português: “Uma é a falta de confiança no conhecimento e, portanto, há algum receio de falar mal; outro é o receio de serem olhados de forma diferente, ou seja, em vez de serem valorizados serem olhados de forma crítica”.

Miguel de Senna Fernandes, presidente da Associação Promotora da Instrução dos Macaenses (APIM), que detém o Jardim de Infância D. José da Costa Nunes, começou por dizer que “não há uma evolução linear do tratamento da língua ao longo dos anos”, acrescentando que “há muitas vertentes”.

Recordando que no princípio da RAEM havia magistrados que se “recusavam fazer traduções para Português porque o Chinês era língua oficial”, o também vice-presidente da Fundação Escola Portuguesa de Macau (FEPM) refere que “houve um primeiro momento de alguma dúvida sobre o estatuto da língua portuguesa”. “Mas, mais tarde, reafirmou-se que era língua oficial e devia ser respeitada como tal”, prosseguiu.

A evolução da língua portuguesa “teve muito a ver com o ressurgir do interesse pela aprendizagem da língua”, considera o líder associativo, acrescentando que desde o mandato do primeiro Chefe do Executivo, Edmund Ho, se tem reiterado a importância da presença portuguesa em Macau. “Na prática, isso veio fomentar também a defesa da própria língua”, disse. De uma coisa Miguel de Senna Fernandes está certo: “Hoje em dia, há mais gente que, não falando português, está a aprender a língua, do que durante a Administração portuguesa”.

“A RAEM em várias instâncias, vários momentos, vários contextos, valorizou sempre a língua portuguesa, e o ensino da língua. Acho que o Governo tem cumprido o seu papel”, defendeu Senna Fernandes.

Chegado ao território em 2022 para assumir a direcção do Departamento de Português da Universidade de Macau (UM), João Veloso considera que “para qualquer linguista, Macau é um lugar de júbilo, devido à convivência entre um número tão elevado e tão diversificado de línguas num espaço geográfico tão pequeno, mas culturalmente e socialmente tão diverso”. “A evolução do português neste território tão especial resulta da interacção da língua e dos seus falantes dentro de um xadrez linguístico e cultural muito rico em que o português é uma peça que se move em várias direcções num equilíbrio dinâmico”, descreveu.

João Veloso aponta que é “inegável” que o espaço social de circulação do português como língua de interacção quotidiana é hoje menor, “por razões óbvias”. “Mas, os cenários em que actualmente o português se entrecruza com outras línguas nas escolas, na administração pública, nos negócios, na criação cultural e artística, no turismo, na justiça, na economia, extravasando os limites mais tradicionais da comunidade macaense e da comunidade portuguesa, é uma prova de vida desta língua”, observou.

Em linha com o que disseram Patrícia Ribeiro, Amélia António e Miguel de Senna Fernandes, também o docente destaca que, “mesmo que o número de falantes nativos da língua seja hoje mais baixo do que no passado, o aumento estável do número de pessoas que estudam português num número muito grande de instituições é a melhor demonstração da importância do português em Macau”.

O Departamento que dirige oferece cinco cursos próprios em português – uma licenciatura, dois mestrados e dois doutoramentos -, assegurando ainda o ensino da língua aos alunos de Direito, além de disponibilizar duas disciplinas opcionais de língua portuguesa que podem ser frequentadas por qualquer aluno de qualquer curso. Somando todos os alunos que, por qualquer uma destas vias, acedem ao ensino da língua, só na UM contam-se cerca de 1200 alunos por ano, tendo em conta os dados de 2023. Isto sem contar com “algumas centenas” de alunos que frequentam o Curso de Verão e com os cursos intensivos destinados a diferentes públicos, por exemplo para o Corpo de Polícia de Segurança Pública, Bombeiros e pessoal especializado da Administração Pública.

“Se hoje o português continua a ter uma presença forte em Macau – e só por má vontade podemos negar uma evidência como esta -, isso deve-se em grande parte ao facto de o Governo nunca ter abdicado das suas obrigações relativamente à preservação da língua em Macau e continuar a assumir um papel de liderança objectiva na preservação da língua na RAEM”, acrescentou João Veloso.



Saúde e Direito requerem reforço do uso da língua

Miguel de Senna Fernandes, contudo, alerta que “o sentido do uso da língua é muito afectado pela diminuição da comunidade portuguesa”. “Porque uma língua não é só aprender a gramática e tudo mais, é preciso utilizá-la”, frisou. Reconhecendo que é “difícil” fazer a preservação da língua num território onde a cultura chinesa é dominante, o vice-presidente da FEPM vinca que “não chega” fazer cumprir a utilização das duas línguas oficiais em tudo o que seja oficial.

Questionado sobre quais as áreas em que seria importante reforçar o uso do português, o representante da comunidade macaense foi peremptório: Direito e Medicina.

Opinião idêntica tem Amélia António. A advogada vinca que “é muito importante” fortalecer o uso da língua nos serviços públicos, “porque há muita gente que não domina a língua chinesa e que, portanto, tem necessidade de recorrer ao português para tratar de seus assuntos”. “Nos hospitais é imprescindível, porque (…) é uma área onde as pessoas estão particularmente frágeis, onde sentem mais receio, onde têm a necessidade de saber que são entendidas e de entender o que se lhes diz. Portanto, eu acho que os hospitais é um sítio muito importante onde faz muita falta o reforço da língua”, disse.

Na mesma linha, Patrícia Ribeiro refere que há “sectores-chave” da administração onde se deveria intensificar o uso do Português, “como na saúde, nas forças de segurança, na área jurídica, nos serviços de migração ou de identificação”. Na sua visão, esse reforço pode ser “muito facilmente implementado, pois todos os anos, entre outras medidas, o Governo promove um conjunto de cursos, nomeadamente com o apoio do IPOR no âmbito de um protocolo de colaboração, para incentivar a formação contínua em Língua Portuguesa junto dos funcionários públicos”.

A dirigente do IPOR recorre aos números para ilustrar: tendo em conta os últimos seis anos, foram formados, em média, cerca de 800 profissionais por ano. “Podemos assim concluir que, considerando estes números e as várias áreas em que o ensino de língua portuguesa é ministrado, existem mais falantes do que a percepção que existe nos dá a entender”, acrescenta.

João Veloso, por sua vez, acredita que seria importante intensificar o uso da Língua de Camões em actividades culturais, nomeadamente as destinadas a um público mais jovem e mais distante do “mainstream”. O director do Departamento de Português da UM explicou depois que costuma frequentar as sessões da Cinemateca Paixão: “Tirando as sessões inseridas em ciclos dedicados à produção cinematográfica em língua portuguesa, o português tem sido, por regra, um grande ausente. Pelo menos, esta é a impressão que eu tenho: os filmes não são legendados em português, os materiais promocionais em português são escassos ou nulos, nos debates o português nunca é utilizado”, apontou.

O docente apontou também que há alguns pequenos bares, estúdios, livrarias alternativas, que têm uma agenda cultural “muito activa e muito interessante”, mas onde a presença da língua portuguesa “é muito pouco expressiva”. “Tenho a certeza absoluta de que se houvesse algumas actividades programadas que promovessem o uso do português, essas iniciativas teriam um grande sucesso e contribuiriam para alargar significativamente o espaço social da língua portuguesa em Macau”, acrescentou.

Esperança no futuro

Sempre optimista, a presidente da Casa de Portugal diz ter “alguma esperança em termos de futuro”. “Porque penso que este ensino, de uma forma tão vasta, acaba por dar algum fruto”, acrescenta. “E outra coisa que eu penso que também cria esperanças é perceber que há muitos pais que não dominam o português e que fazem um grande esforço para que os filhos, paralelamente à aprendizagem do chinês e do inglês, aprendam português”, observou Amélia António. “Há nitidamente uma preocupação nos pais mais jovens de que os filhos tenham um conhecimento linguístico mais alargado. Isso também é bom”, reiterou.

A Casa de Portugal tem vindo a premiar os melhores alunos em língua portuguesa, um prémio “simbólico”, de 3000 patacas, que normalmente é entregue a seis estudantes do ensino não superior e superior. A indicação dos alunos – um de língua materna portuguesa e outro de língua materna chinesa – é feita pela Escola Portuguesa e pelos Serviços de Educação. “É um prémio pequenino, mas é um estímulo para aqueles que se esforçam e acaba também por ser um estímulo para os outros colegas”, vincou a líder associativa, apontando que a Casa gostaria de premiar mais estudantes, mas é impossível em termos financeiros.

Na sua visão, “se o que Pequim anuncia como missão de Macau continuar a ser defendida, forçosamente terá de ser dado espaço para o fortalecimento do português, que, assim, provavelmente se poderá manter depois de 2049”. A também advogada frisou que “há muitos factores” a ter em conta e lembrou que a língua também tem uma grande ligação ao sistema jurídico. De qualquer das formas, sublinhou: “Penso que há todo o interesse [em manter o português], porque é cada vez uma das línguas mais faladas no mundo e acho que é uma mais-valia para a China ter uma área do seu país capaz de corresponder a essa realidade”.

Disso mesmo dá também conta João Veloso. “Há uma série de estatísticas prospectivas fiáveis que dão o crescimento do português a nível mundial como um cenário praticamente certo. Se ainda houver mundo daqui a 20 ou 30 anos, as previsões dizem que o português será então uma língua com uma presença muito mais forte a nível global. Tendo em atenção esse dado e a importância que a China concede à memória e aos laços construídos durante séculos, nada faz prever que o português corra sério risco de extinção em Macau”, sublinhou.

O docente não tem “qualquer dúvida” de que a língua, enquanto objecto de estudo, marca identitária cultural, memória histórica se manterá. “Mesmo que, subindo a Rua do Campo, não ouçamos falar português com a frequência de outros tempos, em cada dia que passa em Macau há milhares de alunos que têm aulas de português ou em português, há documentos a serem impressos em língua Portuguesa, e as escolas e universidades, assim como instituições como o IPOR, têm um papel fundamental nesse uso diário que é vital – que é imprescindível – para a continuação do português e da sua importância neste canto do mundo”, prosseguiu.

Patrícia Ribeiro, por seu turno, frisa que, até 19 de Dezembro de 2049, a certeza que há é a de que “a língua portuguesa continuará a ser uma das línguas oficiais”. “Depois dessa data, a esperança é que a língua portuguesa permaneça de alguma forma em Macau, mais que não seja pelo seu valor histórico”, vincou. Até lá, garantiu, o IPOR “tudo fará para manter a sua intensa e significativa actividade, procurando assim preservar a presença portuguesa na RAEM, fomentar as relações de cooperação”.

Miguel de Senna Fernandes lamenta que o português “continue a ser encarado como uma língua estrangeira”, apesar de ter “mais estatuto” que as restantes, por ser língua oficial na RAEM. Mas, olhando para o futuro, diz-se também esperançado. E até quanto a um futuro mais próximo. “Há uma esperança. E agora é mesmo esperar para ver. O que é que novo Chefe do Executivo vai fazer? A comunidade portuguesa tem muita esperança de que haja um novo tratamento da língua portuguesa levado a cabo pelo novo líder da RAEM”, apontou. Sam Hou Fai, antigo presidente do Tribunal de Última Instância, vai tomar posse dia 20 de Dezembro. É o primeiro Chefe do Executivo que não nasceu em Macau e o primeiro também que sabe português.

Quanto ao período pós-2049, Senna Fernandes disse apenas que “quando as coisas são úteis, não se destroem”. “Depende muito da utilidade que o próprio português terá. Mas estou certo que sim”, concluiu. Catarina Pereira – Macau in “Jornal Tribuna de Macau”


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