Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Contos de Jussara de Queiroz, elos familiares e outros laços

Em A felicidade é um inferno, a escritora mineira transita com desenvoltura por temas angustiantes atuais e de sempre – o amor e a solidão, a vida e a morte

Nos anos 1970, auge do conto no Brasil, o estado de Minas Gerais chegou a ser chamado de terra do conto. Com justiça. Autores já consagrados anteriores àquela época passaram a ser mais conhecidos e lidos, entre eles Murilo Rubião, Luiz Vilela e Sérgio Sant’Anna. Sem falar em mestres de anos anteriores, como Aníbal Machado e Guimarães Rosa. Na década de 1970, incontáveis ótimos contistas foram revelados em Minas. Hoje o conto não tem mais tanto espaço na mídia nem nas editoras. Uma pena. Mas o gênero segue em alta entre escritores do país inteiro. 

Minas continua solar de excelentes contistas, de variadas gerações. Um exemplo expressivo e recente é Jussara de Queiroz (Patrocínio, 1953; vive em Belo Horizonte), autora de A felicidade é um inferno (Nauta, 2024), que traz contos primorosos no enredo, na linguagem e na estrutura. Ela não é escritora estreante. Em 1994, Jussara publicou o romance Voo Rasante (Editora O Lutador), Prêmio BDMG Cultural de Literatura de 1992. É autora vencedora dos concursos nacionais de contos Luiz Vilela e Osman Lins. 

A felicidade é um inferno reúne 21 histórias escritas em salteados anos, ainda assim mantêm unidade narrativa e temática. Predominam os elos e os nós familiares, o céu e o inferno deles. Estão nesse grupo as três obras-primas da coletânea, “Olha o passarinho” (o título leve, maestria da escritora, esconde um episódio tão pesado), “A mãe” (mulher vulcânica, que somente uma vez revela serenidade) e “Um tanto felizes” (a atormentada vida de uma família). Desde as primeiras linhas desses contos e de outros, a escritora domina o leitor e como que o desafia a imaginar o desfecho, sempre impossível de ser previsto. As narrativas abordam o calvário de mães de família às voltas com as extenuantes tarefas domésticas e as exigências e a insensibilidade de filhos e marido, convívio abusivo que leva a mulher à loucura ou a atitudes inesperadas. 

“O que restou de mim” não fica muito atrás daqueles três contos magníficos. Trata-se do mergulho da personagem-narradora em si mesma (“num jogo direto de indagações”) diante do espelho do tempo, um inquietante diálogo-monólogo revelador, no qual muitas leitoras certamente vão se reconhecer. Do mesmo modo, nos contos sobre relações amorosas (o conto-título do livro é admirável, vai da comunhão à aversão, do idílio ao colapso do casal), Jussara escreve com a delicadeza, a perspicácia e a ironia que somente as mulheres conseguem.

No universo do afeto, da indiferença, da crueldade e da leveza, a escritora se apresenta à vontade, com agudeza psicológica – ela conhece bem o pulsar do corpo e da alma, a complexidade da vida humana. São outros exemplos “Acorda, Alice!”, “Ela vai chegar”, “A consulta de Lurdinha” (o final, imprevisível, é singelo, sutil, saboroso; se fosse um quadro, seria algo como delicadas pinceladas de exímio pintor) e “Pássaro obediente” (de dolorosa doçura). Fora desses mundos, Jussara de Queiroz também se sai bem, muito bem, como no magistral, assombroso “O fim do começo ou o começo do fim”, em que um motorista solitário transporta, com urgência, noite adentro, um cadáver para o enterro noutra cidade e começa a ter umas ideias esquisitas. 

“O trem das estepes” faz lembrar, pela atmosfera e densa e serena linguagem, o antológico “A ilha do meio-dia”, de Todos os fogos, o fogo, de Julio Cortázar. Leitores de Osman Lins vão perceber que alguns contos de A felicidade é um inferno têm um quê do escritor pernambucano, o que revela o bom gosto de leitura de Jussara. No início do conto “C’est la vie”, por exemplo, soa quase um eco de textos de Os gestos: “Estou na soleira da porta em que estive vinte anos atrás. Ainda tenho os cabelos loiros e encaracolados, que caem sobre meus ombros, como uma cascata”. E “Sempre aos sábados” (uma família esfacelada após a morte da matriarca tenta relembrar a memória dela) e “Acorda, Alice!”, festa familiar que não oculta a solidão no edifício residencial JK, personificado (“O JK fervia de impaciência”; “O JK estancou”), podem ser lidos como homenagem à Clarice Lispector de “Feliz aniversário”, de Laços de família. Não são influências, mas tributo a grandes escritores.

É claro que não apenas o enredo faz um bom conto. Contam, e bastante, a linguagem, a estrutura, o modo de narrar. A felicidade é um inferno contempla todos esses pontos. O texto original de Jussara de Queiroz e suas expressões curiosas, de inusitadas metáforas e analogias, por vezes de ligeiro humor, cativam o leitor o tempo todo. Cito alguns exemplos. Do conto “Acorda, Alice!”: “Tão logo as crianças saíram, tratei de recolher o céu em sacos de lixo” (o céu eram os enfeites em azul que os pequenos podiam tocar); “Belo Horizonte estava longe ainda de se transformar na cidade nervosa de hoje”; “Na cama, bebendo a água salgada de meus olhos, tinha vontade de segurar a mão de alguém”. De “Durma com os anjos”: “Da janela, reparo que há um tanto de vida lá fora. As árvores ainda estão frescas da umidade da noite e, empassarinhadas, disparam a cantar”; “O silêncio engole a casa”; “Mesmo no presente, tenho a sensação de que o momento já é passado”. Do conto “A consulta de Lurdinha”: “Ela quis cerrar também a janela do sentimento”; “Árvore na terra, Lurdinha parecia fincada nas suas ideias”. 

Vamos dar uma olhada em “Olha o passarinho”: “A família vem comendo e bebendo toda a seiva de suas veias – sua vitalidade, os seus sonhos e desejos, a sua mocidade”; “Cadê a chave, Lola, cadê a toalha, cadê o chinelo, café o pente? Cadê a vida, ela grita para si mesma, recostada na bancada, a alisar as pregas do avental. Nua. Roubaram-lhe tudo”; “Em que época aquele homem havia se transformado em estrangeiro em sua vida e em sua casa?”. De “Estamos todos bem”: “Você ao meu lado, sempre tão feliz, tão companheiro! Uma bênção... Olho pra você e me emociono”; “Estava prosa e até me deu beijinhos no rosto, que mais me pareceram picadas de abelha”; “Marina gosta de mesa bem arrumada – abre o apetite, ela diz”. 

Do conto “A mãe”: “Sentiu um desejo agudo de carinho, mas, quando o gesto de amor caminhava, retraiu-se, nervosa, lembrando-se, de chofre, que nunca teve, entre as suas, as mãos da mãe”. Em “O trem das estepes”: “Perguntou se ele sabia que Rostov era famosa pelos sinos das igrejas, que podiam ser ouvidos a uma distância de 20 quilômetros. Ele sabia? Rostov?!”; “Ela abriu os olhos de supetão, as feições desconcertadas, o coração feito castanholas”; “E o mundo lhe pareceu cheio de coisas secretas que jamais lhe seriam reveladas”. Agora, “Um tanto felizes”: “Urinando no banheiro sem dar descarga, cuspindo na pia, me perguntando o que vou fazer para o almoço, para o jantar, para o raio que o parta?”. De “Batom cor-de-rosa”: “Desinteressada da dor, ela rasga a foto com pedaços minúsculos, que joga para o alto, espalhando o corpo dele por todo o quarto”. Em “C’est la vie”: “Quando ela se foi, tive a impressão de que ela me levava ao seu lado, embora eu continuasse imóvel na porta do apartamento”; “Pássaro caído do ninho, me encolhi debaixo dos lençóis”.

Com suas histórias humanas e sofridas, em linguagem apurada, que leitores a autora busca? “A grande maioria dos nossos escritores, em prosa e verso, fala de pena em punho e prefigura um leitor que ouve o som da sua voz brotar a cada passo por entre as linhas”, afirma Antonio Candido em “O escritor e o público” (Literatura e Sociedade, 7ª edição, Companhia Editora Nacional, 1985, p. 81). Jean-Paul Sartre diz em Que é Literatura? (Ática, 1989, p. 58): “Todas as obras do espírito contêm em si a imagem do leitor a que se destinam”. Os contos de Jussara de Queiroz aguardam leitores de alta literatura, não de passatempo. Eles vão se surpreender e se deliciar com A felicidade é um inferno. Hugo Almeida - Brasil

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Jussara de Queiroz, A felicidade é um inferno (contos), Nauta, 2024, 200 páginas, R$ 65,00. https://editoranauta.com.br/

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Hugo Almeida, jornalista e escritor, doutor em Literatura Brasileira pela USP, é autor de 16 livros, entre eles Vale das ameixas, romance, e A voz dos sinos, ensaio livre sobre o sagrado, a mulher e o amor na obra de Osman Lins, ambos lançados em 2024 pela Editora Sinete: https://www.editorasinete.com.br/. Almeida participa da coletânea Minas Gerais – Contos e confidências, organizada por Luísa Coelho (Gato Bravo, Lisboa, 2024): https://www.editoragatobravo.pt. Site do autor: https://hugoalmeidaescritor.com.br/


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