Macau “tornou-se no exemplo” da capacidade da China concretizar o princípio ‘Um País, Dois Sistemas’, mas a sua continuidade pós 2049 dependerá das cartas que der a nível internacional, afirma Cátia Miriam Costa. Para a investigadora do Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa, Macau continua a ser um “ponto de encontro” entre culturas, mas a plataforma sino-lusófona tem sido “hesitante”. Entre as razões, defende que “os contactos diplomáticos são parte do exercício” dessa função, e “falta a Portugal” decidir o papel de Macau “na sua política externa”
– O Presidente chinês, Xi Jinping, voltou a Macau pela terceira vez durante a sua presidência. Face à última visita, em 2019, como se encontra a situação política do país?
Do lado interno, também se verificam novos desafios, como a manutenção do crescimento económico e desenvolvimento social. Após a erradicação da pobreza extrema, há a necessidade de criar uma economia resiliente que possa corresponder a uma maior competitividade internacional e à concretização de grandes projetos como a Nova Rota da Seda e a Grande Baía em que, de forma mais indireta ou direta, Macau tem um papel a desempenhar.
Como território exportador de serviços, sobretudo na área do turismo e do entretenimento, está particularmente exposto às alterações no relacionamento externo da China, mas também ao bem-estar do país, dado receber maioritariamente visitantes do Continente. Estes fatores fazem com que a receção ao Presidente Xi Jinping tenha decorrido num ambiente diferente de 2019, ao qual acresce toda a turbulência vivida em Hong Kong, que acabou por se refletir também nas decisões políticas em Macau.
Com a situação serenada, Macau recebe maior atenção, pois tornou-se no exemplo da capacidade da China concretizar cabalmente o princípio de ‘Um País, Dois Sistemas’. Se falarmos com chineses do Continente e lhes pedirmos para comparar as duas regiões ou perguntar onde agora preferem ir, a tendência é assinalar Macau como destino preferencial. A RAEM ganhou uma visibilidade diferente e também um papel próprio aos olhos de Pequim.
– Celebram-se os 25 anos da transferência de soberania. Como vê hoje a RAEM, decorridos tantos anos desde 1999?
C.M.C. – Para um visitante vindo do exterior, mudou sobretudo a paisagem. O Cotai e a incidência da indústria do entretenimento e do jogo cresceram numa dimensão inimaginável. Mas também a construção de mais pontes de ligação, alterando as infraestruturas de conetividade da RAEM à China Continental, causam impacto neste olhar de fora. Outro aspeto não menos relevante são as pessoas. A paisagem humana de Macau mudou, com mais chineses da China Continental e também com a audição de mandarim em ruas onde o cantonês tinha predominância total.
Claro que para um residente, as alterações são maiores, com a progressiva transformação da RAEM, a sua integração no projeto da Grande Baía, as novas regras para se aceder à residência permanente ou a diversificação económica que se avizinha. Contudo, estas mudanças não retiraram a Macau a sua especificidade.
Ainda vejo a RAEM como um território com uma riqueza cultural e social enormes, confortável para ser vivenciado por diferentes comunidades e, acima de tudo, ponto de encontro por excelência entre ocidente e oriente e ponte fundamental entre a língua mais falada do hemisfério sul, o português, e a língua mais falada do hemisfério norte, o mandarim.
– Acredita que a RAEM pode ter o posicionamento de plataforma que o Governo Central lhe incumbiu? Faltam ainda elementos?
C.M.C – A RAEM tem o posicionamento histórico, cultural e social para ser a plataforma de ligação, sobretudo para os Países de Língua Portuguesa, mas não só. A América Latina poderá ser outra região do mundo com a qual Macau tem proximidade, não só porque o Brasil está integrado na América do Sul, mas porque houve uma ligação histórica entre estes territórios, por exemplo, através do transporte de emigrantes chineses para a América Latina.
É evidente que para ser uma plataforma tem que existir um entendimento profundo com o Governo Central, porque os contactos diplomáticos são parte do exercício das funções de uma plataforma. Estando esta parte clarificada e Macau envolvido no projeto económico de maior fôlego, tem todas as condições reunidas para usar as instituições ao seu dispor, como o Fórum de Macau, para afirmar esta sua função que até agora tem feito de forma hesitante.
– A comunidade portuguesa pode ainda representar um papel importante para Macau e para a China?
C.M.C. – Apesar de ter diminuído numericamente, a comunidade portuguesa apresenta alguma diversidade, representando-se em diversos setores da sociedade. Creio que esse potencial pode aumentar se tivermos presença em projetos de iniciativa privada; seria uma variação face ao passado da Administração portuguesa.
É evidente que para manter a especificidade de Macau, precisamos de uma comunidade macaense ativa e integrada nas diversas dimensões da sociedade local, a par de uma comunidade portuguesa também participativa. A presença destas duas comunidades constitui uma prova da persistência de características diferenciadas e da riqueza que traduzem para este território da China. Naturalmente, ambas as comunidades, em especial a portuguesa, sentem a mudança dos tempos e estão numa fase de adaptação. Contudo, não me parece que esse papel esteja de forma alguma esgotado e que não possa ser direcionado para novas áreas.
– Existem condições para a continuidade do sistema político atual pós 2049?
C.M.C. – Macau irá passar por uma integração económica e política progressiva relativamente à China Continental, tal como o acordo entre a República Portuguesa e a República Popular da China previa. A cidade está cada vez mais ligada, não só fisicamente através das novas infraestruturas, mas também de abertura de canais de passagem facilitada. O movimento de pessoas, a facilidade de circular, sobretudo na Grande Baía, mudará decerto ainda mais a feição da cidade.
Todavia, existe a possibilidade de a China considerar interessante a manutenção de algumas características, que podem ir de uma maior autonomia dentro do quadro político de governação, a uma aposta na manutenção do ensino do português como elemento diferenciador.
Seria interessante conhecerem-se os planos do próximo Governo da RAEM, para percebermos até que ponto este poderá transmitir a sensibilidade local para o Governo Central. Mas (…) parece-me difícil manter a continuação cabal do atual sistema, a não ser que este se revele particularmente proveitoso para China, nomeadamente, em termos de notoriedade internacional.
– Portugal está a aproveitar a ligação histórica que tem com Macau ou esqueceu-a?
C.M.C. – Existe uma memória difusa, pela distância e pelo facto de poucos portugueses terem passado por Macau. Paralelamente, há um certo saudosismo e uma expectativa de encontrar em Macau um prolongamento asiático de Portugal. Quanto à contemporaneidade, Macau é desconhecido e ainda falta a Portugal uma decisão relativamente ao papel que esta Região poderá ter na sua política externa. Esta ligação não tem sido potenciada, devido a este afastamento político e social face a Macau. É evidente que a integração de Macau na Grande Baía poderá despertar, pelo menos entre empresários portugueses, algum interesse e um olhar diferenciado para esta pequena Região. Contudo, isso deveria ser acompanhado de um olhar político que entendesse o caminho que Macau traçou relativamente à Lusofonia. Nelson Moura – Macau in “Plataforma”
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