Considerada
uma das dez cientistas mais importantes de 2016 pela revista Nature, Celina Turchi
diz que as pesquisas sobre a ação do vírus continuam e revela: “Ficaremos
envolvidos nisso durante anos”
Epidemias são sempre
assustadoras para a população afetada, tanto que permitem a este jornalista o
uso de um advérbio e um adjetivo para começar sua reportagem, algo incomum em
textos jornalísticos. Isso porque uma epidemia significa centenas, às vezes milhares,
de pessoas acometidas por uma doença que pode, em muitos casos, ser
desconhecida. E não saber com o que se lida é, via de regra, apavorante.
Deixando de lado os adjetivos,
imagine, leitor, uma epidemia de microcefalia, condição neurológica rara em que
o crânio e o cérebro de uma criança recém-nascida são significativamente
menores que o normal. Rara? Era, ao menos no Brasil, até 2015, ano em que
centenas de casos de microcefalia começaram a aparecer pelo País, deixando a
população, sobretudo as gestantes, em estado de constante alerta.
Mesmo assim, entre outubro de
2015 e outubro de 2016, segundo dados do Ministério da Saúde, foram registradas
2079 novas ocorrências de microcefalia no Brasil. Uma epidemia, sem dúvidas, e
a melhor frase para descrever a situação veio da médica epidemiologista Celina
Turchi: “Not even in my worst nightmare
as an epidemiologist had I imagined a microcephaly neonate epidemic”.
Celina disse a frase ao
repórter Declan Butler, durante a entrevista que deu à britânica “Nature”, uma
das principais revistas científicas do mundo e que a colocou entre os dez
cientistas mais relevantes do mundo em 2016. E ela tem razão: nem em seu pior
pesadelo alguém poderia imaginar centenas de crianças afetadas com uma doença
tão grave quanto a microcefalia, sobretudo quando não se sabe o motivo.
Seis meses antes da epidemia,
o infectologista pernambucano Carlos Brito notou que vários adultos estavam
apresentando sintomas semelhantes: febre, olhos vermelhos, erupções na pele,
entre outros. Não se tratava de dengue e a doença não trazia grandes
repercussões sistêmicas nos pacientes. Porém, aproximadamente um mês depois,
começaram a aparecer casos de Síndrome de Guillain-Barré, uma doença grave que
afeta o sistema nervoso.
Em março de 2015,
pesquisadores conseguiram isolar o vírus no líquido cefalorraquidiano desses
pacientes e descobriram que quase todos tinham sido infectados com o vírus zika.
Mas a situação só se agravou quando, seis meses depois, tomografias de crânio
de bebês ainda em gestação começaram a apresentar muitas calcificações, que são
como cicatrizes dentro do cérebro das crianças.
Doenças infecciosas, durante a
gestação, levam a essas calcificações. O problema é que as malformações eram
muito mais graves que as já conhecidas. Sem consenso entre os especialistas e
com a população — a essa altura não apenas a pernambucana, pois a situação se
alastrava pelo Brasil — começando a entrar em pânico, o Ministério da Saúde
convocou Celina Turchi para apresentar um parecer sobre a situação. Percebendo
a gravidade, a médica achou necessário montar uma força-tarefa para chegar a
uma conclusão mais rápida. Nascia o Merg, sigla para Microcephaly Epidemic
Research Group.
Carlos Brito, o
epidemiologista, já havia levantado a hipótese de que os casos, tanto de
Guillain-Barré quanto de microcefalia, poderiam estar associados ao vírus zika.
Era necessário provar. “E provar não apenas em estudos de caso, como também em
estudos de casos-controle e coorte, que essa associação era real. Isto é, que
crianças com microcefalia tinham a infecção de zika e que crianças sem
microcefalia, da mesma área, não tinham a infecção. E foi isso que nós
fizemos”, conta Celina.
A doença causada pelo vírus
zika, entre 2013 e 2014, era considerada como não causadora de grandes
consequências e não havia informações, em lugar algum, de que esse vírus
poderia ser tão agressivo nas gestantes e causar uma infecção congênita. Do
ponto de vista epidemiológico, outros vírus eram conhecidos por causar
malformações fetais, como o citomegalovírus e a rubéola, e também outros
agentes infecciosos, como o treponema pallidum, bactéria causadora da sífilis.
Mas não o zika.
Dessa forma, se comprovada a
associação, trataria-se de uma ameaça à saúde pública, afinal, as formas de
transmissão do vírus zika não são apenas através de vetor (o mosquito), mas
também por transmissão sexual. Se o vírus carregava a possibilidade de causar
uma doença grave de malformação congênita como a microcefalia, a infecção era
um assunto deveria ser tratado com o máximo cuidado.
Celina, que atua como
pesquisadora visitante no Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães, da Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz) Pernambuco há oito anos, conta que chamou todos os
parceiros de projetos anteriores que tivessem a possibilidade de contribuir com
a pesquisa. “Todos perceberam que, na emergência, havia a necessidade de montar
esse grupo. E ainda tivemos a sorte do instituto da Fiocruz Pernambuco ter um
laboratório de excelência em flavivírus, em dengue, e, consequentemente, zika”,
diz.
Segundo ela, foi montado um QG
de zika no instituto, sob a coordenação do diretor Sinval Brandão. “De repente,
a sala tinha dezenas pesquisadores trabalhando todo dia, afinal, era uma crise
na saúde pública. Éramos cerca de 30 cientistas sênior mais a equipe de
mestrandos e doutorandos. Éramos um grupo grande envolvido na pesquisa”,
revela.
Inicialmente, o grupo formou
um projeto para avaliar crianças da mesma área assim que nasciam; crianças com
e sem microcefalia. Os pesquisadores as comparavam a fim de identificar a
presença de vírus ou de anticorpos nas crianças e também nas mães. As análises
feitas pelo grupo conseguiu comprovar a associação entre a infecção do vírus
zika durante a gestação e as malformações congênitas. O estudo preliminar foi
publicado na revista “The Lancet Infectious Diseases” e ganhou o mundo.
“Hoje”, diz a médica, “é muito
claro que o vírus atinge as células que darão origem ao sistema nervoso central
e sabemos também que a microcefalia é apenas a ponta do iceberg. Há um conjunto
de alterações. Grupos de oftalmologia, por exemplo, fizeram um trabalho muito
importante mostrando alterações oftálmicas em um grupo de crianças. Há também
alterações nos membros superiores e inferiores, as artrogriposes”, explica.
Fora isso, segundo Celina, há
também muitas evidências de alterações auditivas, o que pôde ser visto em
crianças um pouco maiores. Por isso, aponta a médica, existe a tendência em
expandir essa avaliação para todas as crianças filhas de mães que apresentaram
sintomas e exames laboratoriais de infecção pelo vírus zika, independente de
que elas apresentem malformações evidentes.
Celina explica que isso deve
acontece porque é necessário saber se existe a possibilidade de que alterações,
mesmo pequenas, estejam presentes nesse grupo de crianças. “Até porque o
conhecimento sobre o processo infeccioso durante a gestação ainda não está
concluído, mas está sendo produzido agora”.
Um
esforço internacional
As pesquisas continuam e não
devem parar tão cedo. Celina Turchi afirma que o grupo deve agora analisar um
número maior de crianças com e sem microcefalia e também com outras
malformações. Essa análise deverá servir, inclusive, para descartar ou não
outras possibilidades de causa para as alterações, afinal, não apenas o zika
pode estar causando os problemas.
“Do ponto de vista de
pesquisa”, ressalta a pesquisadora, “tão importante quanto provar é também
afastar outras hipóteses. E várias hipóteses foram levantadas: de que isso
poderia ser reflexo de alguma vacina ou de uma contaminação ambiental. Outra
hipótese dava conta de que o pyriproxyfen [larvicida] era um causador da
microcefalia. Então, todas essas outras hipóteses também foram investigadas e,
agora, nessa análise de um maior número de casos, poderemos excluir ou não, com
mais clareza, essas possibilidades.”
E não apenas o Merg está em
busca por essas informações. Celina, que é professora aposentada da
Universidade Federal de Goiás (UFG) e trabalha em Pernambuco há oito anos,
conta que várias instituições, de diversas partes do mundo, estão se
movimentando para achar respostas. “Há, inclusive, um esforço internacional
para que se tenham protocolos padronizados de pesquisa a fim de que seja
possível fazer análises em conjunto para entender em que momento da gestação se
tem o maior risco de as crianças apresentarem alterações tanto neurológicas
quanto físicas”.
O desafio agora é dar
respostas para os efeitos da infecção do zika vírus nos diferentes períodos
gestacionais e saber qual a frequência de nascimento de crianças com alterações
congênitas em mulheres infectadas. Nesse sentido, grupos têm se formado para
pesquisar o tema. Um deles é o “Zika Plan”, um consórcio da União Europeia
constituído por 25 instituições de pesquisa do mundo, sendo três brasileiras: a
Universidade Estadual de Pernambuco, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Rio
de Janeiro e Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública (IPTSP) da UFG.
O consórcio se propõe a
acompanhar gestantes e neonatos de forma padronizada para chegar a evidências
científicas em um tempo mais curto. Para Celina, isso mostra que o Brasil será
capaz de dar muitas respostas através das redes de pesquisa. “O Brasil teve um
papel decisivo para se identificar essa doença. O conhecimento importa sempre,
mas do ponto de vista das doenças infecciosas, em que é necessário interromper
a cadeia de transmissão, esse conhecimento é fundamental para ter ações
dirigidas e poder avançar, principalmente, na prevenção e no repasse de
informação à sociedade”, afirma.
Maior
controle
O Brasil foi o primeiro país
das Américas a apresentar casos de doenças provocadas pelo zika, vírus até
então comum na África e na Ásia. A suspeita é que o vírus tenha entrado no
Brasil devido aos grandes eventos que o País sediou a partir de 2007, quando
aconteceram os jogos Pan-Americanos no Rio de Janeiro, seguidos pela Copa do
Mundo de 2014.
Como o vírus não era presente
no Brasil, ele encontrou uma população ainda não imune aos seus efeitos, o que
facilitou e muito a ocorrência de uma epidemia. Mas outros fatores facilitam a
propagação de doenças associadas a vírus como o zika, a chikungunya e a dengue:
a falta de controle vetorial. As cidades brasileiras têm dificuldade em
controlar a procriação de vetores como o Aedes aegypti, logo, sempre existe o
risco de que doenças transmitidas por vetores presentes em ambiente urbano
ocorram.
Celina Turchi diz: “Convivemos
com epidemias de dengue, em Goiás, por exemplo, desde a década de 1990.
Chikungunya e zika são mais recentes. Então, temos elementos favoráveis para a
transmissão: clima favorável, vetor e uma urbanização que transforma a cidade
quase em um canteiro de proliferação. Então, as autoridades sanitárias devem
ficar atentas para que possamos reduzir os casos de arboviroses”.
Para ela, casos de chikungunya
devem aumentar neste ano. Já em relação ao zika, “há um controle epidemiológico
que não existia antes.” Ela explica que, do ponto de vista de transmissão, são
necessários três fatores: população receptível, a presença do vetor e a presença
do vírus. Quando se tem uma epidemia, isso significa que aquele grupo infectado
possivelmente já está imune. Por isso, quase todas as epidemias virais tendem a
atingir um pico e ficar vários anos sem acontecer.
“Brasil
tem centros de excelência que conseguem responder às necessidades do país”
Celina Turchi tem 64 anos e
sempre trabalhou em pesquisas de epidemiologia na área de doenças infecciosas.
Desempenhou sua vida acadêmica em grande parte na Universidade Federal de
Goiás (UFG), onde se aposentou. Fez mestrado, como bolsista CNPq, na London
School of Hygiene & Tropical Medicine e fez doutorado pela Universidade de
São Paulo (USP).
O reconhecimento de Celina,
que está atualmente entre as cientistas mais importantes do mundo, e de seus
colegas pesquisadores é tanto um prêmio quanto uma responsabilidade para o
Brasil, afinal, isso mostra que o País tem condições de formar e manter
pesquisadores de qualidade. Basta querer — ou necessitar.
O Merg (Microcephaly Epidemic
Research Group) surgiu de uma necessidade do País e mostrou que a reunião de
bons pesquisadores com o investimento certo foi benéfico para a sociedade não
apenas brasileira, mas mundial. O recado para os governantes é claro: esse é um
investimento que vale a pena.
Celina relata que o Brasil tem
centros de excelência em diferentes lugares “e fica claro agora que essas
instituições conseguem responder às necessidades do país. Por isso é
estratégico para qualquer país aprimorar não só as instituições de pesquisa
como também investimentos pesados na formação de pesquisadores. “Marcos Carreiro – Brasil in “Jornal
Opção”
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