No
romance, tem muita importância o nome próprio. Ele distingue a personagem do
figurante, confere densidade psicológica ao retrato e “efeito de real” à ação.
Até para o art.º 3 da Declaração Universal dos Direitos da Criança, ter/não ter
nome é acentuar/anular conteúdos de ordem psicológica, ou ideológica,
delimitando no “leitor” (o Outro) múltiplos horizontes de expectativa. Não dar
nome é, retoricamente, reduzir o singular ao coletivo, negar estatuto
reivindicativo ao “indivíduo”. Por isso o nome civil, ao contrário da marca, é
um valor jurídico que se diz inalienável e inestimável, isto é, coloca o
indivíduo acima de qualquer avaliação do que nele os outros podem trocar,
vender ou comprar.
Estes
vários aspetos são evidenciados pelo uso do nome próprio, num romance de Adelto
Gonçalves: Os Vira-Latas da Madrugada.
Escrito desde o final dos anos 60, e publicado em 1981, recebeu a menção
honrosa do Prémio José Lins do Rego. Em 2015, foi finalmente reeditado com o
prefácio original, de Marcos Faerman, arrancado à última hora da edição de 1981,
não fosse o regime político reparar demasiado naquelas histórias tristes “como
tristes são os tempos que as tornaram reais”. Se, no contexto repressivo dos
anos 60-80, a questão ideológica se sobrepunha à questão estética, o
distanciamento da reedição permite hoje valorizar estratégias como o uso
irónico do nome próprio, assinalado amiúde pelo itálico.
Os
nomes próprios revelam aqui uma amálgama de estilos. Não estamos perante um
romance de espaço canónico, ainda que se passe em Paquetá, bairro portuário de
Santos, no Brasil: a representação de um ponto de encontro incaracterístico de
movimentos provisórios é aqui um exercício iniciático, de educação visual.
Também não é um romance histórico ortodoxo, ainda que a memória seja a de um
contemporâneo da Coluna Prestes, de Vargas e do golpe militar de 1964: “Neste
livro, o tempo não existe, os acontecimentos se confundem, as datas são
esquecidas”.
Num
espaço concentracionário, os nomes próprios evidenciam um tempo
não-cronológico: a coexistência da Antiguidade greco-latina (os vagabundos
podem chamar-se Plínio, Juvenal, Eronildes, Themis), com a Cristandade
(Gabriel, Belchior, Rosário, Epifânio); do tempo pré-colonial (Cariri,
Tibiriçá), com um tempo colonial (Negrinho Louva-Deus, Nego Oswaldo) ou
pós-colonial, de migrações (Arouca, Valongo). O nome próprio aparece associado
à nacionalidade ou à raça, como se Paquetá fosse o mundo inteiro: lá moram a
turca Isabel, João de Angola, o garção português, o Grego, a Grega,
frequentadores dos Old Kopenhagen, El Moroco, Volga ou Mont Serrat, bares que
nos lembram o Mexico-City, de Camus. Nomes patronímicos, que identificam
património – Braz Aguiar, Epifânio Peremateu, Plínio Giancotti – são raros e
sempre de discurso indireto.
O
nome próprio aparece quando muito ligado à profissão, ou à ausência dela, como
se fossem um agnome epitético, sem valor jurídico: o vagabundo Plínio, o
Malandro Sarará, uma Milena que trabalha no Las Vegas. Os nomes próprios
revelam-se equívocos, ironias, ilusões e provocações. O Grego e a Grega só se
tinham conhecido por causa do apelido. Eram até parecidos, mas o Grego era
português, de olhos azuis, e a Grega catarinense. João de Angola viera do Rio
Grande do Norte. Plínio, o velho, é chamado Primo pelos que não conseguem
afinal pronunciar o nome.
Paquetá
tem outra toponímia para os que lá não moram. Os jornalistas chamam-lhe Boca do
Lixo. Mas “Nós, os daquele tempo, sabemos que, se hoje o beira-cais é quase
conhecido apenas pelo nome de Boca, deve-se a um maldito portenho que, um dia,
desembarcou aqui e achou de comparar este pedaço de porto com o bairro de La
Boca, de Buenos Aires. Mas igual a este beira-cais, como dizem os velhos
marinheiros, não existe lugar em outra parte do mundo”.
Entre
a representação do universal e do irrepetível, os nomes próprios criam, goram e
recriam diferentes horizontes de expectativa de quem habita o “beira-cais”,
fio-da-navalha: o espaço onde as mulheres das ruas não se entregam porque só
vendem o corpo, onde as crianças “dormem com os pederastas e vivem de pequenos
furtos”, onde os antigos escravos sonham com a moça loira que anuncia a
Coca-cola num out-door, e os trabalhadores da estiva gastam o salário no
esquecimento prometido pelas tabuletas utópicas: Estrela da Manhã, Chave de
Ouro, Gold & Silver, Las Vegas, Salão Azul, Imperial, Pavão de Ouro,
Zanzibar, Zanzi, etc… Ah, a ironia dos analfabetos no bar ABC, ou dos famintos
no Maxim’s!…
O
equívoco do nome próprio é quase um tema, desde as primeiras linhas: qual a
origem etimológica de Paquetá? O narrador recupera uma nota de rodapé do volume
II da História de Santos, de
Francisco Martins dos Santos (o nome do historiador é um “nome motivado”, como
os que existem nos romances). Segundo aquele historiador, Paquetá não
significa, como é ideia comum, um “lugar ou viveiro das pacas”.
O
vulgo e os historiadores são vítimas de “etimologias simplificadas”, da
“invenção de tradutores fáceis”. E as pacas, como toda a gente sabia, só vivem
em água doce e límpida, impossível nos pântanos (ainda visíveis numa fotografia
de Paquetá de finais do século XIX). “Conta ainda que a verdadeira etimologia
da palavra Paquetá é PAÃIQUÊ-TÃ, por contração: PÃ-QUE-TÀ, que, com o tempo e
por evolução, se tornou PA-QUE-TÃ. E explica: ‘PAÃ – atolar; IQUÊ – lado,
costado; e TÃ – apócope usual de TATÃ – duro, forte -, significando lugar de
atoleiro forte, mais forte do que em outros lugares da ilha habitável”.
Não
menos fantasista que a do vulgo, esta explicação “científica” de F. M. dos
Santos assemelha-se afinal a um processo romanesco. Também a ficção reproduz
fenómenos de contração e apócope, sincretismo e esquecimento. O romance, como a
evolução de um nome próprio, é um processo de densificação do tempo-espaço, e
faz do “efeito de real” um exercício de possibilidades. Também por isso este é
um romance, como escreve Faerman, “de sons delicados”. Luísa Malato - Portugal
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Maria Luísa Malato é professora associada
(com agregação) na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Membro do
Instituto de Literatura Comparada e da Sociedade Portuguesa de Retórica, faz
parte da direção da Associação Portuguesa de Literatura Comparada. Especialista
no século XVIII português, é autora de Manuel
de Figueiredo: uma perspectiva do neoclassicismo português -1745-1777
(Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1995), Por acazo hum viajante... a vida e a obra de Catarina de Lencastre,
Viscondessa de Balsemão,1749-1824 (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
2008), História da Literatura Europeia:
uma introdução aos estudos literários (Lisboa: Quid Juris, 2008),entre
outros.
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Os Vira-Latas da Madrugada, de Adelto Gonçalves, com prefácio de Marcos Faerman, apresentação de
Ademir Demarchi, posfácio de Maria Angélica Guimarães Lopes e ilustrações e
capa de Enio Squeff. Taubaté-SP: Associação Cultural Letra Selvagem, 216 págs.,
2015, R$ 35,00. E-mail:
letraselvagem@letraselvagem.com.br
Site: www.letraselvagem.com.br
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