Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Macau - O Português tem muito espaço para crescer enquanto língua social

Há 10 anos em Macau, Ana Luísa Leal acredita que o Português tem muito espaço para crescer enquanto língua social e que a presença das comunidades lusófonas podia ser mais forte. A par disso, há uma área com muito campo de desenvolvimento: a da tradução automática Português-Chinês e vice-versa. Em entrevista à Tribuna de Macau, a professora do Departamento de Português da Universidade de Macau defendeu que essa área tem um potencial particular na RAEM, uma vez que é de cá que saem os dados que permitem ao “Google Tradutor” fazer tradução entre os dois idiomas




-A caminho dos 20 anos depois da transferência de soberania de Macau, que papel tem o Português no território?

-O Português, apesar de ser língua oficial, ainda falha como língua social, não é utilizada socialmente. É usado o Cantonês, como o Inglês e o Mandarim. O Português é uma quarta língua e não deveria ser. Deveria ser mais cultivado, não só nos órgãos governamentais que têm sempre alguém que fala, mas também nas instituições que ensinam Português como a UM e o Instituto Politécnico de Macau (IPM) e outras. Só que o Português falta como língua social, o que não acontecia há 20 anos porque tínhamos mais falantes.

-Como é que esse investimento poderia ser feito agora?

-De uma certa forma, o investimento nunca deixou de ser feito. Agora, o Português em Macau e na China Continental é muito voltado para questões de negócio. De há 10 ou 15 anos para cá triplicou o número de instituições académicas na China que têm Português como língua e isso mostra que o Português tem e sempre teve um papel muito importante, agora mais voltado para as questões comerciais, na China, e aqui para as questões académicas.

-Há forma de o Português deixar de ser a “quarta língua” social?

-O Português mantém-se, apesar de no uso social ser a quarta língua, porque vai ser sempre. Se sairmos à rua e pedirmos um táxi, ou falamos Cantonês, um pouco de Mandarim, se o motorista falar, ou então Inglês e só depois o Português. É nesse sentido que estou a falar. Para o Português se tornar mais vivo, o Governo trabalha de uma certa forma mantendo actividades culturais mas depende mais do próprio interesse da população em cultivar o Português.

-Qual é a posição e o papel das várias comunidades lusófonas hoje em Macau?

-Como o Português é língua oficial, a posição dos ‘expatriados’ dos países lusófonos poderia ser mais forte, mais participativa, mais actuante, mas isso também depende do espaço que é dado. Não estou a dizer que não há esse espaço, estou a tentar ver como podia ser ampliado e não tenho essa resposta.

-Isso também está ligado depois à importância que a língua tem…

-Certamente. Isso está tudo associado. Se a comunidade tem mais espaço, a língua também e isso torna-a mais forte.

-Com o novo regime do ensino superior vão ser criados novos mestrados e doutoramentos ligados ao Português em várias instituições. Isso vai dar novas ferramentas aos futuros tradutores?

-Sem dúvida. Sou muito fã do ensino de pós-graduação, acredito nisso, acho que dá sempre bons resultados. Largamos sementes no mercado e divulgamos isso. Isso faz com que o Português também apareça e é uma forma de fazer com que a língua se dissipe. Por exemplo, uma coisa que favorece muito é que o Português é língua oficial. Não há como escapar disso. Todos os órgãos governamentais têm de ter Português, nas ruas há traduções. Houve uma coisa que acho que melhorou muito. Quando cheguei aqui as traduções de placas e informações do Governo nas ruas às vezes apareciam com muita coisa errada. Isso já não se vê mais. Isso está muito associado ao ensino, perspectivas de ensino.

-Trabalha sobretudo na área da tradução automática. Como é que se junta este trabalho linguístico aos equipamentos informáticos?

-A minha formação é toda linguística. Estou fora do Brasil há 15 anos, já trabalhei na América do Sul e do Norte, na Europa, em África, aqui na Ásia também. Por acaso não sou tradutora. Vim para Macau e quando cheguei, na altura, o director do departamento era Alan Baxter e ele sugeriu que fosse contactar a Faculdade de Ciência e Tecnologia para estabelecer projectos de pesquisa nessa área. Então comecei um projecto na tradução, que era associar o projecto que tinha desenvolvido em Portugal, que era um analisador e sumariador automático de texto, ao tradutor que a UM já estava a desenvolver há algum tempo. Quando cheguei em 2009 comecei a trabalhar com esse grupo de pesquisa, com quem trabalho até hoje. Depois desse primeiro projecto, que foi o AUTEMA, fomos colaborando, também com os alunos de pós-graduação do Departamento de Português. Em todos os projectos ofereci mais de 25 bolsas de estudo que são subsidiadas pela UM. O tradutor é feito com o auxílio dos trabalhos académicos de pós-graduação dos alunos e com a nossa pesquisa. Desde que comecei, sofreu algumas alterações. Era um sistema muito novo, foi passando por regras, estatísticas, até redes ‘neuro’, que é como o sistema está a funcionar agora. Então, colaboramos com a parte linguística e isso está a ser aperfeiçoado a cada ano. Quanto aos resultados, claro, se compararmos com uma ferramenta como o ‘Google’ ou ‘Bing’, que têm equipas a trabalhar só nisso, o nosso tradutor ainda é um pouco deficiente, mas se observarmos o progresso, é muito bom.

-Como é que funciona o equipamento que faz análise textual automática, atendendo a que é algo que tende a ser subjectivo?

-O que desenvolvi foi um analisador. Por exemplo, coloca-se um texto na sua totalidade, não pode ser muito longo ou muito específico, tem de ser mais ‘padrão’ e ele segmenta, cria uma estrutura de árvore a partir do texto, e diz as relações de dependência que existem entre uma estrutura e outra, por exemplo, um processo de subordinação. São várias etapas. Na última, o sistema dá uma sumarização do texto. Se inserirmos um texto de quatro ou cinco parágrafos, ele vai dar uma síntese, num parágrafo, das ideias principais do texto. A minha ideia, com o primeiro projecto que fiz aqui, era passar pelo tradutor automático da UM, tirar o texto em Chinês, gerá-lo em Português, sintetizá-lo, e depois gerá-lo novamente em Chinês. Esse seria o objectivo principal. Como tivemos de tratar primeiro da tradução automática, então, essa parte de geração de texto ficou em ‘stand-by’ até agora, porque estamos a refinar e ajustar o tradutor automático. Este é um sistema que pode ser usado em bibliotecas, quando se quer pesquisar uma informação. Assim, o sistema dá a ideia principal de um texto. No caso de uma notícia de jornal, por exemplo, quando se quer só a ideia central do texto, passa-se nesse sumariador e temos uma ideia principal.

-Deveria haver um investimento mais generalizado, mais forte nessa área, visto que as tecnologias também estão com um desenvolvimento cada vez mais rápido?

-Sem dúvida. As pessoas em Macau não têm noção de que tudo o que há de tradução Português-Chinês, neste momento, vem de Macau. Por exemplo, a forma como o ‘Google’ dá uma resposta da tradução do Português-Chinês tem a ver com a análise de coisas já traduzidas, que estão na rede. Ele procura e dá sugestões de tradução. A busca que o ‘Google’ faz para dar aquela sugestão de tradução, ele faz na ‘web’. E de onde vem a tradução Chinês-Português? De Macau. Todo o alinhamento que se tem de ‘corpus’ em Chinês que tem um equivalente em Português, é daqui de Macau, porque é onde há mais traduções Chinês-Português. Nenhum outro lugar no mundo tem a necessidade de ter Chinês e Português. Há muita tradução Chinês-Inglês e Inglês-Chinês, mas Português e Chinês é aqui. Faz sentido esse investimento do Governo e esse apoio nessa questão da tradução. Levanto a bandeira da tradução porque ela é importante.

-Que margem tem esta área para crescer?

-Total. Os estudos de tradução automática são muito desenvolvidos em todo o mundo e estão em constante mudança. O que tínhamos há 10 anos, os sistemas de tradução que passaram de palavra por palavra, depois para frase, depois um bocadinho mais, e começou a ser um sistema por regras sintácticas, estatísticas e agora por redes. Isso não é uma coisa simples mas foi feita muito rapidamente. Essa mudança de há nove anos para cá, foi muito rápida, foi um “boom”. O processo de tradução automática começou no século passado, na década de 40, na época da Guerra que as pessoas tentavam decifrar as mensagens. Só que como não dava muito bons resultados porque carecia de estudo, o processo de tradução automática foi abandonado durante uns 20 anos. Retomou na década de 60 com a força total. Isso é excelente.

-Acha que em Macau há um potencial especial para esta área da tradução automática Português-Chinês, Chinês-Português?

-Sem dúvida. Não posso falar do que aconteceu antes de 2009 que foi quando vim para cá, mas a UM tem vindo a desenvolver isso a sério. E agora há outras instituições em Macau que estão a começar a desenvolver a tradução automática.

 -O IPM anunciou há uns meses a criação de uma aplicação que faz a tradução automática com reconhecimento de voz em Português e Chinês. Este é o futuro?

-Não sei dizer porque para isso é preciso um trabalho de reconhecimento de voz. É uma coisa difícil de ser trabalhada com essa questão da fala. Não sei como é que o IPM está a trabalhar com isso, quem são os técnicos, mas, por exemplo, um ‘iPhone’ tem a ‘Siri’ e quantas vezes temos de repetir alguma coisa para a ‘Siri’ porque às vezes não reconhece a voz? É muito delicado trabalhar com voz. Não sei como é que vai ser feito, mas não é uma coisa fácil. Talvez venha a haver outro tipo de sistema que possa ser implementado. A ‘Siri’ há 10 anos não existia. Agora há outros. Já se pode usar reconhecimento de voz até para editar texto no “Word”, que poucas pessoas sabem. Ao invés de se digitar, podemos falar e o sistema reconhece a voz. Mas isso também dá problema. Todos os reconhecimentos de voz dão.

-Com a expansão destes equipamentos de tradução instantânea, que permitem que uma pessoa vá a qualquer parte do mundo, fale a própria língua e o aparelho traduza para o idioma pretendido, corre-se o risco de as pessoas virem a perder o interesse pela aprendizagem de línguas?

-Essa é uma boa pergunta. Depende. Neste momento, todos os tradutores automáticos são uma ferramenta. Nunca vão substituir uma tradução humana. Há as questões de conhecimento do mundo, de inferências, de informações subentendidas, que o computador não é capaz de perceber. Acho que as pessoas não vão perder o interesse. Não existe essa possibilidade, a não ser no caso daquelas pessoas que acreditam que um tradutor automático pode dar uma tradução 100% fiel. Isso não acontece. Nos dois últimos anos tenho feito muita análise e comparação de tradutores automáticos e sei o que estou a dizer, não existe essa possibilidade. Não há uma tradução automática 100% fiel ou correcta.

-Vão sempre ser precisos profissionais…

-Sem dúvida. Trabalhei nos Estados Unidos em 2015 e 2016, fui ‘visiting fellow’ na Universidade George Washington, em Washington D.C., e nas universidades americanas eles não querem que os alunos utilizem os tradutores automáticos. No ano passado também estive no Havai e no programa tinham uma recomendação que dizia ‘proibido o uso dos tradutores automáticos’. O tradutor automático é uma ferramenta, o professor pode fazer uso dela e os alunos também devem, mas como apoio, não como instrumento de produção. Claro que nunca vai substituir um tradutor humano. Falta a questão cultural, conhecimento do mundo, inferências, o que está subentendido. Isso o computador nunca vai alcançar, neste momento.

-Disse que estava a criar uma plataforma para a aprendizagem do Português. Que projecto é este?

-Esta foi a grande mudança dos 10 anos aqui em Macau. Não vou abandonar a tradução automática mas a UM está a apoiar muito e a apostar na questão do ensino da língua mediado por internet, pelas ferramentas tecnológicas. Então, há um ano preparei um novo projecto, para três anos inicialmente, que era desenvolver uma plataforma para a aprendizagem da língua, mas uma plataforma específica para o aprendente chinês. Claro, aprendentes com outras línguas maternas podem usar, mas vai ser destinada à aprendizagem por parte do estudante chinês. Essa plataforma é como se fosse um ‘e-learning’, mas através de um jogo. Os jovens chineses gostam muito de jogo, então, essa plataforma é interactiva para aprendizagem da língua. O nome do projecto é ‘PineApple’. É uma Plataforma Interactiva para Aprendizagem do Português Língua Estrangeira. Daí que ficou ‘PineApple’. Vai ser um jogo que contempla todos os níveis de língua, como se fossemos do A1 até ao C. Cada estágio do jogo corresponde a um nível de língua. A pessoa não consegue prosseguir no jogo se não passar naquele estágio que a classifica como um B1 ou um A1. Este jogo foi elaborado por três pessoas e já começámos a patente do sistema. Foi desenvolvido por uma aluna de mestrado, por mim e pelo professor Paulo Quaresma, da Universidade de Évora, que foi meu orientador de doutoramento. O sistema contempla a escrita, fala e a audição. O jogo está todo desenhado. Agora vamos começar a implementação, fazer um protótipo e testar para depois divulgar.

-Como funciona a plataforma? Que tipo de exercícios os estudantes vão ter de fazer?

-São exercícios de perguntas e respostas, identificação, vocabulário, audição, escrita. O projecto vai começar agora em Janeiro. Pode ser usado no computador e no telemóvel. É como se fosse um jogo.

-Já tem ideia de quando poderá começar a ser utilizada?

-Este primeiro ano é de implementação e teste. Daqui a um ano e meio ou dois. Depende do número de pessoas a trabalhar. Foi como eu disse: se fosse como a ‘Google’, no final do ano ele estava a funcionar, mas dependo muito do fluxo de estudantes e é preciso preparar os estudantes para isso, porque os nossos estudantes não são de ciências da computação. Têm de trabalhar numa área mais linguística, em colaboração com as pessoas da Faculdade de Ciências e Tecnologia. É um projecto meu, mas tenho muitos parceiros de outras instituições. Não acredito em pesquisa sozinha. Para desenvolvermos uma boa pesquisa é preciso ter um conjunto de investigadores à procura do mesmo objectivo. Nos meus projectos, o trabalho não é ‘de cima para baixo’, é horizontal, em que toda a gente interage e sabe como o projecto funciona. Todos têm de saber como tudo funciona para a engrenagem se movimentar adequadamente, senão não dá. Inês Almeida – Macau in “Jornal Tribuna de Macau”

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