Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Portugal – Entrevista ao Prof. Fernando Pádua

“Não é aceitável termos, atualmente, uma média de consumo de 14 gramas de sal por dia e por quilo de pão. Há que reduzir este valor, pois ele é excessivo. A OMS recomenda 5 gramas por dia”

Fernando Manuel Archer Moreira Paraíso de Pádua nasceu em Faro, em 1927. Licenciado em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, é graduado em Cardiologia pela Harvard University, Boston, EUA, e doutorado em Medicina e Cardiologia pela Faculdade de Medicina de Lisboa. Actualmente professor catedrático jubilado, é ainda presidente do Instituto Nacional de Cardiologia Preventiva e da Fundação que tem o seu nome. Grande parte dos seus últimos 60 anos foi dedicada ao estudo, ao ensino, ao exercício da cardiologia e à defesa da cardiologia preventiva. Contudo, o seu caminho nem sempre foi fácil: “fui combatido por muitos colegas”, recorda com alguma mágoa. Rosto de muitas campanhas de promoção da saúde em Portugal, nomeadamente na redução do consumo de sal, como causa da hipertensão arterial e do cancro do estômago, Fernando de Pádua ficou conhecido graças às suas frequentes presenças na televisão. A redução do consumo de sal é, sem dúvida, uma das suas grandes batalhas. E o “médico do coração” sabe que é pelas camadas mais jovens que é necessário iniciar esta sensibilização: “é preciso tratar dos sub-20 para que estes possam chegar aos 120, vivos, ativos, alegres e saudáveis”, afirma. O laço que usa em vez da gravata é a sua imagem de marca, mas a razão por que o usa tem uma explicação: “fui para Boston, para a Harvard University, onde todos os médicos usavam lacinho… É daí que vem este meu gosto pelos laços”. Em entrevista à FRONTLINE, Fernando de Pádua falou da sua carreira, da dificuldade de as suas ideias inovadoras serem aceites pelos seus pares, bem como da história da medicina preventiva em Portugal. Houve ainda tempo para abordar o atual estado da Saúde em Portugal, bem como o desempenho do ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes.

Qual o segredo para chegar à sua idade com saúde e uma vida tão ativa?

São muitos os segredos. A minha vida é que permitiu isso. Acredito, realmente, que qualquer pessoa que se entregue ao sedentarismo acaba por parar, não avançar e estagnar. Quando fiz 70 anos, reformei-me, contudo, atualmente, trabalho mais do que antes. Com 90 anos tenho mais horas de trabalho do que naquela altura. Quando me reformei estava só durante a manhã no hospital e à tarde aqui no Instituto Nacional de Cardiologia Preventiva – Prof. Fernando de Pádua. Depois passei a estar o dia todo aqui e na Fundação que criei em 2002.

Como surgiu a medicina na sua vida?

No meu caso foi por sorte. Sorte como na história da escolha do secretário de Napoleão, que supostamente era uma pessoa que tinha muita sorte e por isso foi escolhido para o cargo. Perante este cenário, Napoleão respondeu que sorte repetida é competência. Eu tive sorte repetida na minha vida. A sorte veio por sorte. Estava no liceu, onde era mau aluno, quando os meus pais mudaram de casa e eu passei para o Liceu Passos Manuel. Um dia, por sorte, tive a segunda melhor classificação da turma a Português e o professor fez-me um elogio. Eu pensei: posso ser bom aluno, e comecei a estudar mais. Acabei por ser o melhor aluno do Passos Manuel, no meu ano. A minha sorte foi mudar de casa, mudar de companheiros, mudar de vida de criança e o elogio de um professor.

Porquê a Cardiologia?

A dúvida entre Engenharia e Medicina foi decidida quando um engenheiro assistente do Técnico, que me ia ajudar com o exame de admissão, foi chamado para a tropa, e eu, como já tinha feito e ficado aprovado no exame a Medicina, fui para Medicina. Mais uma vez por sorte repetida e não por competência. Em Medicina, o gosto por Cardiologia vem do professor Eduardo Coelho, um grande homem da cardiologia desse tempo. Ele gostou tanto de mim, que me convidou para assistente, ainda estava eu no 3.º ano dos estudos. E porque a Cardiologia, de certa forma, é uma das especialidades da medicina que mais lidam com a engenharia – no caso da utilização dos desfibrilha­dores ou dos cateterismos e hemodinâmica –, o meu gosto por esta especialidade foi-se construindo. No final do curso, voltei ao professor Eduardo Coelho e disse-lhe que queria trabalhar com ele.

Como surgiu a oportunidade de ir estudar para os Estados Unidos da América?

Acabei a faculdade e, algum tempo depois, recebi uma carta em casa, remetida pelo Rotary Clube de Lisboa. Informava que tinham disponível uma bolsa para o melhor aluno da Faculdade de Medicina, e que eu tinha sido indicado pelo conselho da faculdade, como tal. O prémio era de 3 mil escudos e contemplava o direito a ir almoçar com o Rotary Clube de Lisboa, durante seis meses, à Casa do Alentejo. Pude almoçar com colegas reputados na Medicina, que faziam parte do Rotary Clube de Lisboa, durante essas semanas. Nessa altura eu era um benjamim, e com todas estas interações, foi crescendo dentro de mim o desejo de ser um grande homem na Medicina.

O laço que usa, em vez da gravata, é a sua imagem de marca…

A Rotary Foundation abriu, algum tempo depois, um concurso para 50 bolsas internacionais. Concorri e fui para Boston, para a Harvard University, onde todos os médicos usavam lacinho… É daí que vem este meu gosto pelos laços.

Foi através da televisão que passou a ser conhecido e reconhecido pelos portugueses?

O primeiro contacto que tive com o público, na televisão, foi nos anos 1960, com José Manuel Tudela. Fui fazer uma ação de sensibilização, com a ajuda da Maria de Lurdes Modesto, que falava da parte dietética, e eu explicava às pessoas – como já me tinha ensinado o meu professor Paul White, na América – que a doença ou a morte antes dos 80 é culpa do Homem, não é de Deus, não é da natureza.

É identificado como o pai da medicina preventiva em Portugal. Concorda com este estatuto?

Até concordo, porque custou muito. Fui combatido por muitos colegas. Diziam: “Olha o miúdo, agora veio da América e pensa que sabe tudo. Está na televisão, quer é ter o retrato no jornal, quer é protagonismo.” Na verdade, o que para mim importava era falar com os doentes, passar a informação aos doentes de forma a que eles pudessem ficar informados e capacitados para melhorarem a sua saúde. Hoje em dia não há programa de televisão em que não fale um médico, ou revista que não tenha colunas de saúde ou alimentação saudável. Felizmente que tal aconteceu, mas tive de esperar 20 anos para que isso acontecesse. Foi só após realizar uma palestra num programa de televisão, com cerca de uma hora, com alguns dos maiores especialistas estrangeiros em diferentes áreas, que houve um verdadeiro despertar para a importância da prevenção, para a importância da hipertensão como a maior ameaça das doenças cardiovasculares, do assumir que somos o que comemos e bebemos. Só a partir de então é que as pessoas começaram a compreender todos os riscos associados à falta de exercício físico ou aos malefícios do tabaco e do sal, e ao diagnóstico da hipertensão.Todas as atitudes que hoje em dia temos, no dia a dia, de cuidado com a alimentação e bem-estar físico, naquela altura eram descredibilizadas. Os meus colegas não tinham como válidas as minhas ideias e entendimentos sobre os cuidados a ter e a implementar. Houve um momento marcante, o Dia Mundial da Saúde assinalado a 7 de abril de 1972. Nesse dia fomos para um cinema medir a tensão arterial às pessoas. Mais de 30% das pessoas a quem medimos a tensão eram hipertensos!! Pensámos que havia alguma coisa de errado. Contactámos a Organização Mundial de Saúde, e quando eles vieram cá falar na TV, no dia seguinte, nunca mais ninguém me apontou o dedo. Passei a ser o homem da medicina preventiva. Foi uma luta de egos, pois os professores catedráticos pensavam que eu nunca lhes poderia ensinar nada.

É necessário termos uma atitude responsável face ao nosso corpo e à nossa saúde?

É totalmente necessária essa atitude. O que nos acontece é que, muitas vezes, não temos esse cuidado, e como não temos uma atitude responsável, o nosso corpo ressente-se e nós ficamos doentes.

Na sua opinião somos capazes de controlar a nossa saúde?

Sem dúvida! Nós é que fazemos a nossa vida. Seguindo essa lição, aceitei realizar o curso “O meu motor”, que de forma simples apresentava a ideia de que se deixarmos o carro parado na garagem, passado algum tempo, quando lá vamos, o motor não pega. Parar é morrer. E quando não se utiliza a gasolina certa, com a percentagem de octanas certa, o motor também não trabalha bem.

Quais foram, na sua opinião, as principais inovações na área da Cardiologia nestes últimos anos?

Foi, sem dúvida, a prevenção integrada, através da ajuda e colaboração de outras áreas da saúde e da aplicação dos AEIOU’S da medicina preventiva: A (alimentação cuidada e saudável), E (exercício físico), I (inibir o tabaco), O (omitir o sal), U (uma consulta por ano), S (stress que se combate com o passeio e o ócio). Todavia, não se pode esquecer a terapêutica curativa: cada vez melhores medicamentos e os progressos espetaculares da cirurgia cardíaca e cardiovascular.

De que modo é possível sensibilizar os mais jovens? Qual o papel da escola nesta prevenção?

A atividade física é, sem dúvida, uma das áreas em que vale a pena apostar. É preciso tratar dos sub-20 para que estes possam chegar aos 120, vivos, ativos, alegres e saudáveis.

Uma das suas grandes batalhas tem sido na alimentação, nomeadamente na diminuição do consumo de sal. Que cenário temos hoje quanto ao consumo de sal?

Na minha opinião já existem melhorias neste campo, mas ainda falta percorrer muito caminho. Não é aceitável termos, atualmente, uma média de consumo de 14 gramas de sal por dia e por quilo de pão. Há que reduzir este valor, pois ele é excessivo. A OMS recomenda 5 gramas por dia.

Fale-nos sobre a Fundação Professor Fernando de Pádua. O que tem conseguido realizar nos últimos anos? O que falta fazer?

A Fundação procura dar a conhecer a melhor forma de cuidar da nossa saúde, sobretudo aos mais jovens, através de várias publicações e ações junto da população. O ensino da medicina preventiva é, sobretudo, uma passagem de comportamentos que devem começar nos mais jovens. Falta ainda fazer muito. Metade da população ativa tem pelo menos dois fatores de risco relativamente às doenças cardiovasculares. Ou consomem sal a mais, ou bebem demais, ou têm hipertensão, ou têm tendência para a diabetes, ou não fazem exercício, ou fumam. Nós transmitimos ideias de alteração de comportamentos aos doentes e aos próprios médicos. Aos primeiros, chegamos através de ações públicas; aos segundos, alertamos que não basta prescrever, é necessário que transmitam aos seus doentes a necessidade de alterarem comportamentos, inclusive com o seu exemplo.

Que balanço faz da Saúde em Portugal?

Estamos em boas mãos, porque a maioria dos médicos continua a sacrificar-se, sobretudo porque não é capaz de se negar a estar ao serviço dos seus doentes.

Que leitura faz do desempenho do nosso ministro da Saúde?

O ministro Adalberto Campos Fernandes é humilde nas suas afirmações, ajuda, estimula e apoia.

Qual é, na sua opinião, atualmente, a grande lacuna na classe médica?

A medicina deveria ser dedicada, exclusivamente, às pessoas. Temos de pensar nas pessoas, temos de falar com elas. Estamos a fazer uma medicina perfeita, informatizada, cheia de técnicas, quando às vezes o que as pessoas precisam é de uma palavra, precisam de apoio, precisam que o médico conheça a família. E, às vezes, faz-se uma medicina defensiva. Aposta-se muito nas técnicas, e com isso temos uma medicina extraordinariamente cara. O vulgar dos portugueses precisa de um médico que converse com ele.

Que legado quer deixar ao país? Como quer ser lembrado? Como o “Professor do Coração”?

Eu sou vaidoso. Eu orgulho-me do que tenho feito e alcançado. Desde que comecei a ser médico que me preocupei muito com aqueles que não querem estar doentes, aconselhando os sãos a como não serem doentes. In “Revista Frontline” - Portugal

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