Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

sábado, 4 de agosto de 2018

“A Noite é dos Pássaros”: um exercício original e virtuoso

Queiramos ou não admiti-lo, somos uma Nação fundada sobre a escravidão, e não apenas dos povos africanos, oficialmente extinta há pouco mais de cem anos, mas também dos povos que aqui viviam antes da chegada da esquadra de Cabral, em 1500. De fato, não estamos sozinhos num concerto mundial em que a violência tem origem nas diferenças não apenas de cor da pele como também de crença, de origem, de convicção política e tantas outras. Mas sofremos especialmente as consequências de um feixe de misérias ocasionadas pelo tratamento de seres humanos como bestas durante centenas de anos. Ainda hoje, há os escravos com carteira assinada, os escravos sem segurança, sem garantias, os escravos humilhados pela necessidade absoluta.

Aquele que domina e escraviza entende o outro como inferior, criatura vinculada ao conceito de utilidade, seja para realizar as tarefas que o dominador não deseja ou não está apto a realizar, seja para dar prazer ou simplesmente alimentar a vaidade de deter a posse de outro ser humano – ainda que, no mais das vezes, tal domínio venha justificado pela negação da humanidade do escravizado. Assim, a escravidão nasce da diferença que se autoriza a suprimir a dignidade ao outro, na medida em lhe retira não apenas a liberdade, mas a autodeterminação.

A necessidade de levar a civilização ou a salvação a povos considerados inferiores muitas vezes serviu de pretexto para escravizá-los, com base numa concepção que se traduz pela máxima: “minhas ideias e meus costumes são melhores e mais verdadeiros que o do outro e, por isso, é preciso impô-los para o seu próprio bem”. No caso dos portugueses que chegaram às terras brasileiras, a ideia de civilização entrou em choque com certos costumes impeditivos da sua própria existência, casos do incesto, do homicídio e da antropofagia. Por isso, a existência do sacrifício humano e do canibalismo acabaram suscitando não apenas o repúdio e a proibição, mas também a imposição de outras atitudes igualmente contrárias à convivência, como o genocídio e a escravização.

Ainda que a antropofagia praticada pelos povos indígenas em tempos coloniais seja o eixo temático do precioso romance “A Noite é dos Pássaros”, do escritor paraense Nicodemos Sena, seu enfoque é outro. Trata-se – nas palavras do próprio autor – de uma experiência que parte da história para avançar pela literatura, buscando a atmosfera dos mitos indígenas e “despindo-os da roupagem imposta pelo colonizador”, de modo a construir uma narrativa que mergulha firmemente “na penumbra dos sonhos”. O relato aborda as peripécias do naturalista português Alexandre Rodrigo Ferreira, feito prisioneiro dos tupinambás em 1751. Conforme o costume, o cativo recebe o tratamento de hóspede, enquanto aguarda o momento em que será morto e devorado, como forma de vingança pelos inúmeros membros da tribo mortos pelos portugueses. Seus dias se passam em angustiosa espera, lendo e relendo um desgastado volume que narra as aventuras do mercenário alemão Hans Staden, que viveu situação semelhante à sua, sobreviveu ao sacrifício e retornou ao país natal para redigir as memórias do cativeiro. Para amenizar sua angústia, Alexandre conta com uma importante aliada na figura da jovem Potira, filha do chefe tupinambá, que por ele se apaixona e promete salvá-lo do ignóbil destino que o espera.

A pesquisa extensa realizada pelo autor, os enxertos da língua tupi nas falas dos personagens, a detalhada descrição da vida na aldeia, estabelecem um conjunto rico e verossímil, que foge do meramente exótico ao se apoiar a todo instante nas inserções da mitologia indígena no enredo. A beleza da poesia tupi, liberada do exotismo romântico, mas em diálogo reconhecido com obras fundamentais da nossa literatura, desde “Caramuru”, passando por “I-Juca Pirama”, até chegar aos modernos “Cobra Norato” e “Macunaíma”, transforma “A Noite é dos Pássaros” num exercício original e virtuoso, no qual História e mito, fantasia e registro fiel do real e a força da linguagem estão a serviço de uma narrativa de amor e de costumes. E, como se não bastasse, serve ainda ao propósito de suscitar interessantes reflexões acerca do verdadeiro significado da cultura em sua ampla diversidade. 

Difícil não enxergar na revoada final dos pássaros uma espécie de polifonia de cores e significados dentro de uma suntuosa sinfonia. Edmar Monteiro Filho - Brasil


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SENA, Nicodemos. A Noite é dos Pássaros. Belém PA: CEJUP, 2003, 136p. edmont@uol.com.br


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EDMAR MONTEIRO FILHO escreve e publica desde 1980. Vencedor dos prêmios Guimarães Rosa, Cruz e Souza, Cidade de Belo Horizonte e Luiz Vilela e finalista do Prêmio São Paulo de Literatura. Publicou dez livros, entre prosa e poesia. Atualmente é doutorando em Teoria e História Literária pela UNICAMP.

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