No seu poema “Tempo e
violência” a irlandesa Eavan Boland imagina uma sereia que quer ser humana para
poder criar, envelhecer e morrer. “Isto é o que a linguagem nos fez”,
languidescer numa gramática de suspiros, diz a sereia do Mar do Norte do poema
de Boland. Uma experiência semelhante, verificar o que a linguagem faz das
nossas vidas, pode explicar porque quando estudava Filosofia na secundária me
resisti tanto a compreender aquilo do mundo das ideias platónico, um mundo que
sentia cristalizado e mudo. Em aquela resistência também havia algo de saudade
do movimento e da ligação constante, daquele “viver na torrente da universal
reciprocidade” da feliz expressão do filósofo Martin Buber, saudade que
continuo a sentir quando uso palavras em que não ressoam nem a luz do dia nem
as mãos da minha mãe nem o som das árvores quando sopra o nordês. E havia
muito, claro, da representação social das mulheres como sujeitos sem história,
as muitas versões do eterno feminino em que, como a sereia do poema, não
podemos sentir calor nem tornarmo-nos velhas, medidas como somos sempre em
relação a padrões que com violência detêm os nossos corpos e as nossas
experiências.
Eis-me agora na encruzilhada
de habitar uma língua entre a desterritorialização e a necessidade de criar
rede entre pessoas de diferentes territórios, na esperança de que comunicar com
outras mulheres em língua portuguesa seja um caminho para a nossa sobrevivência
como comunidade no mundo. Esperançada também na necessidade de me verbalizar
como sujeito histórico, no meio de processos que vêm de longe no tempo e no
espaço e nos que não me demito de ser parte ativa. Esperançada também na
convicção de termos, como mulheres galegas, um discurso único dentro do espaço
internacional da língua portuguesa, em grande parte por construir, porque não é
se não no encontro e no diálogo que um discurso assim se pode verbalizar. Há
dias, num evento promovido pela UMAR sobre “Feminismo anticolonial”, Área
Mouzinho, da Ondjango Feminista de Angola, dizia-nos de Luanda que na África
que não é anglófona é difícil criar solidariedade. Existem outros
internacionalismos feministas, eu quero um internacionalismo centrado no espaço
linguístico, de comunicação e conhecimento, da língua portuguesa, e na herança
histórica e imaginária das nossas múltiplas comunidades e pertenças, até porque
penso que as línguas e direitos nem são nem devem ser culturalmente neutros nem
socialmente cegos.
Estas e outras motivações
levaram-nos a organizar por segundo ano, desta vez em Santiago de Compostela, o
II Encontro de Mulheres da Lusofonia, numa parceria entre a AGLP, a Pró-AGLP e
a UMAR-União de Mulheres Alternativa e Resposta. Com o enquadramento geral “mulheres,
territórios, memórias”, começamos o ano passado em Vilar de Santos o mapeamento
dos temas que interessam às mulheres dos muito variados territórios aos que
chega a língua portuguesa como língua materna, língua segunda, língua de
herança ou simplesmente como língua para a comunicação internacional. Desta vez
tivemos o apoio institucional da secretária executiva da CPLP e a presença da
diretora geral da instituição, Georgina Benrós de Mello, que nos acompanhou não
só na mesa de abertura mas nos painéis e sessões. Também nos apoiou a Comissão
Temática de Promoção e Difusão da Língua Portuguesa dos Observadores
Consultivos da CPLP, da que a AGLP faz parte. Da parte da Comissão contamos com
a presença de Mariana Portas de Almeida da Fundação Gulbenkian, que partilhou a
mesa de abertura com o subdiretor geral de Relações Exteriores e com a
Comunidade Europeia do governo autónomo, José Lago. Ainda, contamos com o apoio
do Concelho de Santiago de Compostela que nos recebeu no Paço de Rajoi.
Um dos temas que propusemos
este ano foi o de conhecer as diásporas dos países da CPLP na Galiza. Sendo uma
das recomendações do Instituto Internacional da Língua Portuguesa o da
valorização destas comunidades no espaço da língua portuguesa, é para mim
lógico ir ao seu encontro. Na Casa da Língua Comum, sede da Academia Galega da
Língua Portuguesa, Jéssica Azevedo deu-nos o testemunho do seu percurso vital
entre a Goiâna, Cee, León e Compostela, e o sinal do significado que o encontro
com o reintegracionismo teve na sua vida: o de poder usar outra vez o português
e sentir-se valorizada por isso. Do testemunho de Sónia Mendes, filha de
cabo-verdianos em Burela, e a sua exposição sobre a mobilidade social,
ficou-nos para a reflexão até que ponto o racismo se pode sobrepor a qualquer
ideia de comunidade linguística.
Contamos também com dous
relatos do papel das mulheres na resistência. O da Teresa Sales, do projeto
“Memória e Feminismos” da UMAR, e o da jornalista Diana Andringa, que nos falou
sobre o papel das mulheres na resistência timorense, que conheceu de perto quando
fez o seu documentário “Timor Leste: o sonho do crocodilo” (2002). Dos dous
testemunhos tiramos muita reflexão sobre a distância entre os factos históricos
e os relatos, sobre a naturalização da secundarização das mulheres no registo
dos segundos, sobre aquilo que pode ser “o herói”, ficção tão central nos
discursos nacionais, e o papel das mulheres nos movimentos coletivos
emancipatórios.
Outro tema que nos pareceu
necessário focar neste Encontro e que está bem longe de ter ficado esgotado é o
das prisões e a democracia. Há anos ouvi um professor dizer que as prisões em
Portugal podiam ser um laboratório de lusofonia. Considerando a proporção de
presos com nacionalidade de algum país africano de língua oficial portuguesa
(com nacionalidade, mas não necessariamente nascidos), o repto do professor
parece mesmo necessário. Desta volta as intervenções foram sobre dous projetos
com paralelismos e diferenças, o Projeto-Cárcere da Crunha e o Museu do
Aljube-Resistência e Liberdade de Lisboa. Os dous são projetos que partem da
cidadania para a recuperação da memória da repressão das ditaduras fascistas em
ambas as cidades. Mariola Mourelo, para além de dar-nos a conhecer a história e
o presente do projeto, deixou-nos a evocação de Concepción Arenal e a
demonstração de como o feminismo é o motor de outros movimentos. Luís Farinha,
diretor do Museu do Aljube, trouxe-nos um vivíssimo relato dos inícios da
ditadura portuguesa, da repressão e das histórias de vida das “pessoas
deserdadas pela ditadura, herdeiros do liberalismo e a luta pelos direitos
humanos” que passaram polo do Aljube, prisão política em Lisboa desde 1928 até
1965.
Na Casa das Mulheres Xohana
Torres o painel “Feminismos em Compostela” permitiu-nos conhecer um panorama do
que se faz e do que se pensa nas associações e no concelho. Para fechar o
Encontro tivemos um último painel sobre feminismos no espaço lusófono, com a
participação por videoconferência de Nzira de Deus da Fórum-Mulher de
Moçambique, da Isabel Hariett Gavião da Ondjango Feminista de Angola, e da
Manuela Tavares da UMAR. Falamos da terra, dos direitos das comunidades, dos
saberes, da exploração, das barreiras culturais para a emancipação das
mulheres… experimentamos ao vivo as analogias das vivências das mulheres em tão
diversos territórios.
Houve ainda duas sessões na
Livraria Lila de Lilith. A primeira um cine-debate sobre o documentário “Era
uma vez um arrastão” com a presença da Diana Andringa, uma das suas
realizadoras, e a moderação da antropóloga Luzia Oca, em que falamos do racismo
na sociedade portuguesa e não só. E a sessão de poesia com a Iolanda Aldrei,
Concha Rousia, Cruz Martínez, Iolanda Aldrei, Jorgete Teixeira, Rosanegra,
Teresa Moure e eu própria.
A desumanização, a reificação,
a privação da complexidade da identidade de cada indivíduo molda em grande
medida a maneira em que se constrói a nossa vida coletiva, a nossa economia e
mesmo as relações interpessoais. Quem pode neste mundo realizar aquele
“torna-te no que és” de Píndaro? O universalismo e todas as reciclagens da
ideia, até o cosmopolitismo ou mesmo a ideia de lusofonia para alguns, pode ser
instrumento de domínio e neutralização de projetos políticos que se opõem às
várias formas de opressão. Muito discurso de igualdade é na prática de violenta
uniformização, e as galegas sabemos duplamente disso, por galegas e por
mulheres. Ser cidadão do mundo é privilégio de poucos e ainda menos de poucas.
Por aí abaixo há uma complexa hierarquia da humanitas
baseada na identificação, classificação e hierarquização de diferenças. Não há
como ignorar, não há como evitar que toda esta pluralidade de olhares sobre a
condição humana que conheço através das que falam a mesma língua que eu mexam
com os meus conceitos do território e da memória, do ancestral e do presente, e
que privilegie, sobre qualquer função do narrar, a história catártica, o
reconhecimento do trauma e a cura pola palavra que também fazemos neste Encontro.
Queremos diversificar o
entendimento da lusofonia na Galiza e não só para além do linguístico e do
cultural, falar de racismo, da pluralidade de narrativas sobre a migração, de
feminismos urbanos e feminismos rurais, de economia(s), da degradação do território e os direitos das
comunidades, dos saberes ancestrais, queremos saber questionar as estruturas de
poder e opressão, descobrir outros significados do reintegracionismo, dar
referentes sociais e culturais internacionais em português à sociedade galega,
porque o feminismo, como bem se pratica na UMAR, é questão de direitos e também
de cultura. E propiciar a construção de um discurso soberano, não reativo,
dentro da sociedade galega, com estes diálogos em português além as nossas
diversas fronteiras, políticas, imaginárias e emocionais. Algo assim como a
construção do inédito viável de Paulo Freire. E assim eu gosto de viver como
mulher galega, sujeito histórico no tempo e no espaço, complexa, possível e,
sobretudo, inédita. E assim desejo também a sociedade galega, tão complexa e
inédita quanto a sua história e a sua língua lhe permitem. Maria Dovigo – Galiza in “Portal Galego da Língua”
Maria
Dovigo - Nasci na Crunha em 1972 e vivo desde 2000 em Portugal. A
minha formação é a Filologia, exerço a docência e sou poeta por vocação. No
labor criativo ligo a minha vontade de intervenção cívica com a convicção de
que a criação é a verdadeira natureza do ser humano. Colaboro com diferentes
associações do espaço lusófono, tecendo redes de afetos e projetos à volta da
vivência da língua portuguesa. Sou académica de número da Academia Galega da
Língua Portuguesa.
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