Não tenho muita ideia dos quadros
teóricos que descrevem ou tentam explicar os fenómenos sociolinguísticos, mas
como bom galego, tenho bastantes intuições que costumam acordar e emergir
quando vejo ou ouço algumas cousas que acontecem ao meu redor.
Há
uns dias o cidadão Juan Carlos foi nomeado Embaixador de honra da Rota Jacobea
em Santiago de Compostela. O bourbon fez
parte do seu discurso naquela língua que aprendeu de cativo quando morava em
Estoril. Os diários galegos não duvidaram em categorizar como galegoessa parte do discurso. La Voz de Galicia especificou
que o ex-monarca “habló en castellano y en
gallego, este último con un marcado acento portugués, no en vano allí pasó
muchos años de su infancia”. O Faro de Vigo também confirmou que aquilo que
falava “el rey emérito” era “gallego”.
Afirmar
que algo é português ou galego depende de vários fatores, nomeadamente: quem é
o emissor, os conhecimentos do recetor sobre o emissor ou o lugar em que se
realiza a emissão da mensagem. Vejamos alguns exemplos. Se o discurso do
cidadão Juan Carlos fosse em Lisboa, ninguém duvidaria em afirmar que está a
falar português. No entanto, quando o discurso é em Santiago de Compostela,
então a mesma pronúncia e o mesmo léxico transforma-se em galego. Suponhamos agora
que quem faz esse discurso sou eu frente à minha família. Eles diriam, sem
duvidar, que estou a falar português. No obstante, se falo desse mesmo jeito
diante de portugueses que me conhecem e sabem que sou galego, é provável que
pensem que isso que escutam é galego (ou portunhol). Se não
me conhecem e não sabem que sou galego, diriam que estou a tentar falar
português. A primeira vista, pode parecer que somos um feixe de esquizoides ou
psicopatas da língua. Mas, em realidade, trata-se simplesmente de processos de
categorização dependentes de critérios extra-linguísticos. As categorias que
utilizamos para balizar o continuum linguístico
e que nos permitem separar o que é galego do que é português são dependentes de
parâmetros externos à própria língua, nomeadamente de pré-conceitos sociais com
alicerces na comunidade linguística. É difícil encontrar um exemplo tão diáfano
e transparente da nossa realidade linguística, profundamente difusa e
subjectiva.
Uma
outra curiosidade que queria compartilhar é a seguinte. Estava a ver um
programa político de TV3, aliás a única televisão que as minhas vísceras
aguentam, quando observo como a pessoa entrevistada, uma letrada ou advogada,
para de falar, pensa durante um segundo e, finalmente, pergunta como se diz
“auto judicial” em catalão. A entrevistadora responde “interlocutoria” e a
entrevistada retoma o fio do seu discurso utilizando o termo “interlocutoria”,
que vai repetir várias vezes já com normalidade. A pessoa que colocou esta
questão não ousou utilizar a primeira expressão pois sabia que era um
castelhanismo. Este simples gesto permite conhecer a situação sociolinguítica
do catalão tanto ao respeito do castelhano como do galego. Primeiro, permite
saber que o catalão não é uma língua completamente normalizada. É impossível
pensar que uma jurista castelhana não conheça um termo técnico tão comum como o
de “auto” na sua língua. Isto é impensável. No entanto, na Catalunha, os
profissionais da jurisprudência catalão-falantes podem não conhecer esse termo
em catalão porque vivem a sua profissão em castelhano total ou parcialmente.
Vejamos agora as diferenças ao respeito do galego. Esta pessoa que perguntou
polo termo em catalão não era linguista nem, bem provavelmente, tinha uma
consciência linguística muito desenvolvida. É dizer, era uma pessoa normal e
não um esquizoide linguístico, como podo ser eu, completamente obcecado com o
tema da língua, e que tenho mesmo proibido às crianças falar em castelhano na
casa. Em poucas semanas tenho visto cenas semelhantes à relatada acima em
diferentes meios catalãs. É curioso, no entanto, observar que nenhuma pessoa
galega, mesmo as mais ativistas da língua, ousa deter-se no meio duma conversa
formal para perguntar sobre uma palavra que não conhece. O comportamento é
sempre o mesmo: se não sabes, usa o castelhano e não te detenhas. Pois bem,
como é possível que uma pessoa normal na Catalunha tenha um
comportamento linguístico mais evoluído e responsável em relação ao catalão do
que um obcecado polo galego como eu? A resposta é simples: a situação
sociolinguística da língua catalã tem muita melhor saúde do que a galega. Não é
nada novo que não soubéssemos, mas é difícil não ficarmos chocados quando esse
feito aparentemente banal, que eu chamo de microlinguismo, é
percebido de um jeito tão cruel, explícito e descarnado.
A
solução a muitos dos nossos problemas é relativamente simples. Proponho que os
galegos e galegas passemos um mês em Estoril para aprender a descastelhanizar a
nossa fala e só nos informemos através de TV3 durante duas semanas para dar-nos
conta que estamos sendo governados por um feixe de políticos, juízes e
jornalistas psicopatas, sem empatia, que narcotizam o resto da população. Paulo Gamalho – Galiza in “Portal Galego da Língua”
Paulo Gamalho - nasceu em Freixeiro
(Vigo) em 1969. É licenciado em Filologia Hispânica pola USC e Doutor em
Linguística pola Université Blaise Pascal, França. É docente-investigador
especializado em linguística computacional.
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