I
Se para conhecer a São
Petersburgo do século XIX, é preciso ler Fiódor Dostoiévski (1821-1881), tal
como para descobrir detalhes do Rio de Janeiro do final daquele século é
fundamental percorrer os romances de Machado de Assis (1839-1908), daqui a cem
anos, certamente, para saber como era (ou é) a cidade de Brasília (e o Brasil)
deste começo de século XXI, será necessário ler Enigmas da Primavera (Rio de Janeiro: Editora Record, 2015), o novo
(e sexto) romance do diplomata João Almino (1950). Trata-se da primeira obra de
peso na literatura brasileira que não só traz para as páginas da ficção os
movimentos políticos dos últimos anos, conforme observou o crítico Manuel da
Costa Pinto (Folha de S. Paulo,
16/10/2015), como incorpora na prosa as novas tecnologias e formas de
comunicação, como o e-mail, o iPhone, o iPad, o Facebook, o WhatsApp e outras
redes sociais.
A partir das chamadas
Jornadas de Junho, que agitaram as grandes cidades brasileiras em 2013, o autor
cria um jovem personagem, Majnun, neto de um antigo esquerdista, simpatizante
da luta armada contra a ditadura civil-militar (1964-1985), que, a exemplo
daqueles que foram às ruas, não sabe bem o que quer nem para onde ir. “Se não
fosse a companhia de seu laptop, de seu iPhone e de seu iPad, seu mundo não
seria mais do que uns poucos centímetros de chão de cimento rachado”, diz o
narrador. Com o pai morto por overdose de droga e a mãe, viciada e psicótica,
sem condições para assumir sua criação, os avós de Majnun seriam os seus
verdadeiros progenitores,
Apaixonado pela cultura muçulmana,
Majnun sonha abandonar a casa do avô e ganhar o mundo, indo de Brasília para
Madri e, em seguida, para Granada, à época do 15-M (15 de maio de 2011),
movimento de protesto que ganhou as ruas da capital espanhola, e da Primavera
Árabe, que marcou a queda de vários regimes ditatoriais no Oriente Médio.
Como um protagonista de
romance picaresco, Majnun está em vários lugares, vê o mundo de fora, mas acaba
por não se integrar à sociedade. “Aos 20 anos, ele era uma tela em branco”, diz
o narrador. Não tinha vocação para se tornar militante político, como fora seu
avô. “Não havia mais ditadura contra a qual lutar, e não era suficiente
juntar-se à mediocridade, agregar uma pequena peça na engrenagem, corrigir uma
injustiça aqui e outra ali, fazer um trabalho de formiguinha, tapar um buraco,
consertar um defeito. Sua avó Elvira fazia projetos para prefeituras. Mas ele
nunca conseguiria ser prático (...)”.
II
Encantado pelas fábulas e
histórias do mundo árabe e em busca de suas raízes, o protagonista do romance
depara-se com o paradoxo multissecular do fundamentalismo islâmico, que, em
seus primórdios, assumia a tolerância como comportamento ético, mas que, hoje, dividido
por facções radicais, faz da intolerância o seu lema. Por isso, romântico, contraditório e
imprevisível, Majnun encarnaria as idiossincrasias da juventude dos dias de
hoje. “Majnun é um jovem enfadado com seu cotidiano, que busca preencher seu
vazio nas redes sociais. Tem todo um futuro pela frente, que, em vez de
alimentar sua utopia, o faz mergulhar inicialmente num pensamento antiutópico,
já que flerta com a volta a um passado que nunca vivenciou”, diz o narrador.
Dividido pela atração por
três mulheres – especialmente, Laila, casada, mais velha que ele quinze anos –,
Majnun, “o homem que amava demais”, envolve-se numa trama densa e sedutora, que
atrai do começo ao fim. E que ao mesmo tempo, não só consagra como mostra o
perfeito domínio que o ficcionista João Almino tem de seu ofício, ao passar ao
leitor uma reflexão sobre o atual estágio político do Brasil deste século em
que os jovens não vêem a saída nem o futuro e protestam sem saber o que colocar
no lugar daqueles que lhes causam repulsa porque não encontram líderes
confiáveis.
III
Não bastasse a erudição do
autor, que, de fato, preparou-se para escrever este romance, mergulhando no
estudo da história árabe e de sua influência na Espanha de ontem e de hoje, o
livro traz ainda um percuciente e esclarecedor prefácio de João Cezar de Castro
Rocha, que ajuda o leitor a conhecer os caminhos que o romancista percorreu
para construir a sua ficção neste livro labiríntico, ao mostrar que a trama de Enigmas da Primavera “atualiza, ou seja,
transforma, a mais divulgada história de amor da literatura árabe, transmitida
oralmente e codificada, no século XII, pelo poeta persa Nizami – e, desde
então, reescrita um sem-fim de vezes”. De fato, como observa o prefaciador, o
protagonista do romance carrega o nome do personagem do poema de Nizâmî ou
Nizman ou Nezami Ganjavi (1141-1209), “Layla y Majnún”, que tem um pequeno
trecho reproduzido como epígrafe em tradução de Jordi Quingles.
Como se sabe, “Laila e Majnun”,
uma espécie de “Romeu e Julieta”, de William Shakespeare (1564-1616), da
literatura persa, é um conto folclórico em versos e seu protagonista está associado
a um homem que, de fato, teria existido, Qays Ibn al-Mulawwah, que viveu,
provavelmente, na segunda metade do século VII d.C., no deserto de Najd, na
Península Árabe. Esse poema épico, dedicado ao rei Shirvanshah, com cerca de 8
mil versos, em 1188, tornou-se tema de populares canções, sonetos e odes de
amor entre os beduínos ao longo dos séculos.
IV
João Almino |
João Almino, nascido em Mossoró,
Rio Grande do Norte, diplomata, é autor de seis romances. Fez doutoramento em
Paris, orientado pelo filósofo Claude Lefort (1924-2010), ex-professor da
Sorbonne, da École des Hautes Études en
Sciences Sociales e da Universidade de São Paulo (USP), que teve como tutor
o fenomenologista Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), cujas publicações póstumas
editou.
Almino ministrou aulas na
Universidade Nacional Autónoma do México (Unam), na Universidade de Stanford e na
Universidade de Chicago, nos Estados Unidos. Parte de sua obra está traduzida
para o inglês, o francês, o espanhol e o italiano, entre outras línguas. Tem
também escritos de história e filosofia política, que são referência para os
estudiosos do autoritarismo e da democracia.
Vencedor de prêmios como o
Casa de las Américas de 2003 e o Passo Fundo Zaffari & Bourbon de
Literatura de 2011, área de ficção, entre outros, João Almino é autor ainda de Ideias para Onde Passar o Fim do Mundo
(1987), Samba-Enredo, (1994), As Cinco Estações do Amor (2001), O Livro das Emoções (2008) e Cidade Livre (2010).
Na área de não-ficção,
incluem-se Os Democratas Autoritários
(1980), A Idade do Presente (1985), Era uma Vez uma Constituinte (1985), O Segredo e a Informação (1986), Brasil-EUA: Balanço Poético (1996), Literatura Brasileira e Portuguesa Ano 2000,
organizado com Arnaldo Saraiva (2000), Rio
Branco, a América do Sul e a Modernização do Brasil, organizado com Carlos
Henrique Cardim (2002), Naturezas Mortas
– A Filosofia Política do Ecologismo (2004), Escrita em Contraponto – Ensaios Literários (2008) e O Diabrete Angélico e o Pavão: enredo e amor
possíveis em Brás Cubas (2009). Adelto
Gonçalves - Brasil
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Enigmas da Primavera, de João
Almino. Rio de Janeiro: Editora Record, 287 págs., 42 reais, 2015. E-mail: mdireto@record.com.br
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo (USP), é autor de Os vira-latas da
madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra
Selvagem, 2015), Gonzaga, um poeta do
Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo,
Publisher Brasil, 2002), Bocage – o
perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás
Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado
de São Paulo, 2012), e Direito e Justiça
em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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