I
Os jornalistas começam sempre como repórteres, mas são poucos aqueles que
se mantém na função até o fim da carreira porque a maioria acaba como editor ou
até mesmo editor-chefe, sem contar aqueles que, atraídos pelo mundo dos
negócios e da política partidária, aceitam participar do tráfico de influência
e passam a ocupar cargos públicos ou assessorar canastrões ligados ao poder. De
fato, raros são aqueles que continuam a viver o dia-a-dia das ruas ou a
participar do cotidiano das populações marginalizadas e a escrever sobre suas
esperanças e desilusões.
Ivete Carneiro, nascida em Versalhes, na França, mas portuguesa de quatro
costados, jornalista do Jornal de Notícias, de Lisboa, desde
outubro de 1993, constitui um desses raros exemplos, pois se mantém incólume
nesse caminho há mais de duas décadas. Licenciada em Comunicação Social na
Escola Superior de Jornalismo do Porto em 1994, desde logo fez a sua opção
pelos pobres e desvalidos da terra. Em 2004, frequentou o curso de Jornalismo
em ambientes hostis e técnicas de primeiros socorros da Centurion Risk
Assesment Services,na Inglaterra.
Desde então, para aperfeiçoar sua especialização, participou de diversos
seminários de formação subordinados aos temas A Saúde e os Meios de
Comunicação, Informação e Comunicação em Saúde, Investigação Biomédica e
Inovação Clínica, Gestão em Saúde, Investigação Clínica e Política do
Medicamento. Em 2006, fez uma pós-graduação em Comunicação em Saúde, na
Universidade Lusíada de Lisboa.
De sua já extensa carreira, constam numerosas reportagens no estrangeiro.
Mas foi em 2004, ao testemunhar os efeitos do tsunami, no Sri
Lanka, que teve o primeiro contato com uma missão da Assistência Médica
Internacional (AMI), organização não-governamental (ONG) de Lisboa. Viajante
insaciável, também a título pessoal, dedicou as férias de 2009 à AMI,
participando de uma missão à Guiné-Bissau, experiência que deu origem ao livro Diário
de uma Gota (Vila do Conde-Portugal, QuidNovi Edição e Conteúdos,
2011). Escreveu-o com dedicação e revolta, como se quisesse se livrar de uma
condenação. Nem fez questão de direitos autorais, que revertem em favor da ONG.
II
Foram 31 dias do final do verão de 2009 no Hemisfério Norte que Ivete
Carneiro dedicou na procura de um sentido para a vida. Sem medo de sofrer as
consequências de doenças como malária (paludismo) ou mesmo a imprevisibilidade
dos acidentes num ambiente degradado e sem recursos, a jornalista aceitou o
desafio de participar como voluntária numa ação humanitária, ao integrar a
equipe da AMI que, desde 1987, vai à Guiné-Bissau levar um pouco de
solidariedade. Ao mesmo tempo, tratou de registrar o dia-a-dia dessa missão
permanente, suas dificuldades e seu estoicismo para levar um pouco de
assistência àqueles que nada têm.
Para quem não sabe, é preciso dizer que a Guiné-Bissau
dispõe de uma superfície de apenas 36 mil quilômetros quadrados e uma população
de cerca de um milhão e meio de habitantes. É uma das dez nações mais pobres do
mundo, o décimo menos desenvolvido país do planeta, que emergiu do colonialismo
com uma taxa de analfabetismo de quase 100% e uma complexidade étnica e
linguística que ajuda a travar qualquer projeto de coesão nacional.
Com uma taxa de analfabetismo que está atualmente ao redor de 60% e uma
rede escolar em estado precário, não conta até hoje com nenhuma livraria e
dispõe apenas de uma editora privada. Seu idioma oficial, o português, não é
uma língua corrente, já que é falado por menos de dez por cento de uma
população, que está dividida em pelo menos 27 línguas étnicas.
Se há um idioma majoritário, esse é o crioulo, ou língua guineense, que é
falado por aqueles que vivem na capital e nos centros urbanos, embora conservem
a língua autóctone, da própria etnia, como o principal veículo de comunicação.
Por isso, o crioulo é visto com ressentimento por parte daqueles que não o
falam, pois é usado apenas por uma sociedade cujos membros, geralmente,
cristãos, são mais escolarizados, mais ocidentalizados e assimilados aos
hábitos introduzidos pelo poder colonial. E que sempre foram ligados à
estrutura estatal e dominam os postos-chaves do governo.
Num país assim trabalho não falta a quem participa de uma ação humanitária.
Mas, por mais que se faça, sempre há de ficar a sensação de que nada se fez. Ou
seja, todo trabalho será sempre uma gota no oceano. “Não faltam coisas para
fazer” e “nós somos uma minúscula gota” foram frases que mais Ivete ouviu dos
participantes da missão da AMI. De fato, depois de tudo o que viu e
testemunhou, ela concluiu que “somos todos gotas num país de chuva torrencial.
Somos nada...” Nasceu assim Diário de uma Gota.
III
Foram 31 dias em que o maior obstáculo não foi a falta
de água ou de eletricidade e muito menos a pouca quantidade de repelentes
anti-mosquitos que eram compartilhados com todos da missão. Segundo Ivete, o
mais difícil foi "viver em conjunto com seis pessoas, 24 horas por
dia" na ilha de Bolama, antiga capital do reino colonial, onde falta tudo,
até mesmo solidariedade entre os moradores e vontade para superar a miséria e a
frustração. Tudo era difícil: até mesmo para chegar às tabancas, pois uma
viagem de barco ou de jipe durava quatro horas ou mais.
Depois, enquanto os médicos faziam a sua parte, atendendo como podiam
diante de condições precaríssimas, a jornalista voluntária, além de olhar tudo
com atenção para mais tarde anotar, participava do processo de sensibilização a
jovens grávidas ou ajudava a carregar apetrechos ou simplesmente compartilhava
a vida com as pessoas. Ou ajudava na alfabetização:
(...) Solidão. Até na sala suja da
Escola Padre, onde só aparecem cinco mulheres para o bê-a-bá. Tanto faz. Se uma
delas, que seja, sair de tudo isso a saber ler uma frase, a gota terá feito
brotar um germe. Haja esperança. (....).
A desolação é tanta e a situação de pobreza tão
extrema que até o mais empedernido dos anti-salazaristas, mesmo com dor no
coração, talvez viesse a admitir que, ao tempo do colonialismo, o panorama não
seria tão trágico. Ou será que, se a descolonização tivesse sido feita há mais
tempo, a situação seria menos dramática? Seja como for, a valer-se do
testemunho da repórter viajante, é difícil avaliar ou comparar ou medir o grau
de miséria de hoje e de antanho.
Seja como for, o importante é que Ivete Carneiro,
também responsável pelas fotografias que são igualmente dramáticas, em seu
relato, além de dar um testemunho pessoal e sensível do que viu e sentiu, fez
literatura de alta qualidade. Adelto
Gonçalves - Brasil
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Diário de uma Gota, de Ivete Carneiro, com prefácio de
Fernando de La Vieter Nobre, fundador e presidente da AMI e professor da
Faculdade de Medicina de Lisboa. Vila do Conde: QuidNovi - Edição e Conteúdos,
158 págs. 13,99 euros, 2011. E-mail: quidnovi@quidnovi.pt Site: quidnovi.pt
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Adelto
Gonçalves,
jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade
de São Paulo (USP), é autor de Os vira-latas da madrugada (Rio
de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga,
um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona
brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás
Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2012), e Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na
São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015),
entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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