O
Presidente sírio recebeu o enviado da RTP Paulo Dentinho, que está por estes
dias a cobrir o conflito na Síria, uma guerra que vai já no sexto ano, com mais
de 260 mil vítimas e muitos milhões de refugiados
RTP:
Senhor Presidente, comecemos por Alepo. Ainda há milhares de civis encurralados
a tentar sobreviver numa espécie de condições sub-humanas no meio de um dilúvio
de bombas. Por que pensa que se recusam a sair?
Bashar
al-Assad: A zona a que se referiu em Alepo, a que chamam de zona
oriental, está ocupada por terroristas há três anos e eles têm usado civis como
escudos humanos. Do nosso lado, da nossa parte enquanto Governo, temos duas
missões: a primeira é combater contra esses terroristas para libertar a área e
os civis desses terroristas e, ao mesmo tempo, tentar encontrar uma solução
para retirar daquela área os terroristas, se aceitarem uma opção de
reconciliação, na qual ou abdicam das suas armas beneficiando de uma amnistia,
ou abandonam aquela área.
A outra coisa que fizemos como
Governo foi abrir caminhos para os civis saírem daquela zona e, ao mesmo tempo,
para que as colunas humanitárias e de auxílio possam por esse meio aceder a
essa zona de Alepo.
Mas
não está a usar os jihadistas para desacreditar todas a oposição aos olhos da
opinião pública nacional e internacional, para depois tentar erradicá-los a
todos?
Não, não podemos fazer isso
por uma simples razão. Porque temos lidado com este tipo de terrorismo desde os
anos 50, desde que a Irmandade Muçulmana veio para a Síria. E aprendemos muito
bem a lição, especialmente nos anos 80: a de que os terroristas não podem ser
usados como trunfo político.
Não podemos “metê-los no
bolso” porque são como um escorpião. Acabarão por nos picar. Por isso não
podemos usar os jihadistas. Seria como dar um tiro no pé. Acabarão por
voltar-se contra nós.
Isto de uma forma pragmática,
mas se virmos isto como um valor, é algo que não faríamos. Usar o terrorismo,
jihadistas ou extremistas em prol de uma qualquer agenda política é imoral.
Mas
não podemos assumir que os civis em Alepo provavelmente não confiam no Governo
nem no exército e que só querem democracia, dignidade e liberdade? Pode
dar-lhes isso?
Falemos deste ponto
relativamente à realidade. Desde o início da crise, desde que os terroristas
começaram a controlar certas áreas no interior da Síria, a maioria dos civis
sírios trocou essas áreas por outras sob controlo governamental e não o
contrário. Se a maioria dos sírios não confia no Governo, deve ir para outro
lado.
Deixe-me dar-lhe outro exemplo
– que é um exemplo mais marcante. Você esteve em Daraya, al-Muadamiya, há uns
dias, quando aqui chegou. Os terroristas e militantes que saíram dessa área e
foram para Idleb, no norte da Síria, para se juntarem a outros terroristas,
deixaram as suas famílias sob a supervisão do Governo. Pode ir lá e visitá-las
agora, se quiser.
Estive
aqui pela primeira vez há quatro anos e voltei agora. Está a vencer a guerra na
Síria?
Só podemos dizer que vencemos
a guerra quando restabelecermos a estabilidade na Síria. Não podemos falar em
vitória enquanto houver mortes e destruição diariamente. Isso não significa que
estejamos a perder a guerra. O exército está a progredir bem, todos os dias,
contra os terroristas.
É claro que ainda têm o apoio
da Turquia, Qatar, Arábia Saudita e alguns países ocidentais como os Estados
Unidos. Mas a única opção que temos a esse nível é vencer. Se não vencermos e
os terroristas ganharem, a Síria deixará de existir.
Mas
teria feito isso também sem o Hezbollah, o Irão e a Rússia?
Eles estão aqui porque puderam
oferecer uma ajuda essencial e deveras essencial já que a situação que agora
enfrentamos não se prende tão só com alguns terroristas no interior da Síria. É
como que uma guerra internacional contra a Síria.
Esses terroristas têm sido
apoiados por dezenas de países estrangeiros, portanto a Síria sozinha não seria
capaz de enfrentar esta guerra sem o auxílio dos seus amigos. É por isso que a
sua existência e o seu apoio foram fulcrais.
Vladimir
Putin é o seu aliado mais importante?
A Rússia é muito importante, o
Irão é muito importante, o Hezbollah é muito importante. São todos importantes.
Cada um deles alcançou grandes triunfos contra o terrorismo na Síria, por isso
é difícil dizer quem é mais importante.
Mas
qual é o papel da Rússia na Síria hoje em dia?
A parte mais importante do seu
apoio é o apoio aéreo, que é deveras essencial. A Rússia possui grande poder de
fogo e, ao mesmo tempo, é o principal fornecedor do nosso exército há mais de
sessenta anos. Como tal, o nosso exército depende do apoio da Rússia em várias
áreas militares.
Mas
tem liberdade para decidir o futuro da Síria, ou está dependente das
estratégias de Vladimir Putin?
Não, primeiro de tudo somos
plenamente livres. Não é algo parcial, somos plenamente livres em tudo o que se
prende com o futuro da Síria. Em segundo lugar - mais importante ou tão
importante como o primeiro fator - os russos baseiam sempre as suas políticas
em valores e esses valores são a soberania de outros países, o direito
internacional, o respeito por outros povos, por outras culturas. Assim, não
interferem em nada que esteja relacionado com o futuro da Síria ou do povo
sírio.
Mas
ajudaram-no algumas vezes nas Nações Unidas. Vetaram algumas resoluções que
condenavam o seu Governo e o exército sírio. Há vários relatórios sobre o uso
de armas químicas, abuso dos Direitos Humanos e crimes de guerra na Síria. Tudo
isto no contexto das Nações Unidas.
E muitos perguntam “para
quê?”. Ou seja, o que pediram em troca. Essa é a questão. Na verdade, e em
primeiro lugar quanto aos seus valores. Porque nestes valores de que falo, o
valor do direito internacional, eles também têm os seus interesses. Isto é,
combater os terroristas da Síria não é do exclusivo interesse da Síria ou do
povo sírio. É do interesse do Médio Oriente, da própria Europa – algo que
muitos responsáveis do Ocidente não veem, ou não percebem ou não reconhecem – e
do interesse do povo russo, porque este há já décadas que enfrenta terroristas.
Portanto, os russos estão a lutar por nós, pelo mundo e por si próprios.
Mas,
quando fala dos seus valores, a democracia é um valor.
É claro.
A
liberdade é um valor?
É claro.
Pode
afirmar que a Síria é uma democracia, segundo os padrões ocidentais?
A única entidade que pode
lutar por tais valores, como a democracia e a liberdade, é o povo de qualquer
país, ou de qualquer sociedade, não os estrangeiros. Os estrangeiros não podem
trazer a liberdade, não podem trazer a democracia, porque isso diz respeito à
cultura, aos diversos fatores que afetam ou influenciam essa sociedade. Não
podemos trazer isso. Não podemos importá-lo. Não podemos importar nada do
exterior do nosso país relativamente ao futuro do nosso próprio país.
Mas
definiria a Síria como uma democracia?
Não, estamos a caminho da
democracia. Não dissemos que somos totalmente democráticos; rumávamos a isso e
estávamos a avançar. Lenta ou rapidamente, isso é subjetivo, não pode ser
objetivo, é sempre subjetivo. Mas estávamos a progredir a esse nível.
Todavia, os nossos critérios
ou paradigmas não são os do Ocidente, não é o paradigma ocidental, porque o
Ocidente tem a sua própria cultura, nós temos a nossa própria cultura, eles têm
a sua própria realidade e nós a nossa. Portanto a nossa democracia deve
refletir a nossa cultura, os nossos hábitos, os nossos costumes e nossa realidade
ao mesmo tempo.
Sabe
decerto que existe um novo Secretário-Geral das Nações Unidas. Como olha para
ele, o sr. Guterres, tendo em conta a sua conhecida abordagem humanitária
quanto à situação?
É claro que concordo com o
“cabeçalho” dessa abordagem. Digo “cabeçalho” porque, sob isso, há sempre
subtítulos ou títulos diferentes. Quando se fala da abordagem humanitária não
implica apenas proporcionar às pessoas ajuda, alimentos, garantir as suas
necessidades básicas. O principal, se perguntarmos aos refugiados sírios, por
exemplo, a sua prioridade é poder voltar ao seu país e viver na Síria. Isso
implica ajuda humanitária, tal como a entendemos, alimentos, cuidados médicos,
quaisquer outros elementos básicos da vida quotidiana.
O segundo aspeto é ter
estabilidade e segurança, o que significa que a abordagem humanitária implica
combater os terroristas. Não se pode falar de ajuda humanitária e proteger os
terroristas ao mesmo tempo. Não é possível. Há que escolher. E, claro, não falo
dele, falo dos países que apoiam o seu plano, porque ele precisa do apoio de
outros países. Ele não pode lograr tal plano enquanto muitos do mundo
continuarem a apoiar os terroristas na Síria. Portanto, é claro que apoiamos
tal abordagem, ajudando as pessoas a viver, a voltarem para o seu país e a
viver em segurança sem terroristas.
Ele
afirmou já que a paz na Síria é uma prioridade. Está disponível para falar com
ele, para trabalhar com ele, com esse objetivo?
Sem dúvida, claro. É a
prioridade dele e, claro, a nossa prioridade, isso é óbvio. E não é só a nossa
prioridade, é também uma prioridade para o Médio Oriente. E quando o Médio
Oriente estiver estável, o resto do mundo também o estará, porque o Médio
Oriente está no coração do mundo, geográfica e geopoliticamente, e a Síria é o
coração do Médio Oriente geográfica e geopoliticamente.
Somos a “falha geológica”. Se
não lidarmos com ela, haverá um terramoto, foi sempre o que dissemos. É por
isso que essa prioridade é 100 por cento correta na nossa perspetiva, e estamos
prontos a colaborar de todas as formas em prol da estabilidade na Síria, tendo
obviamente em conta o interesse do nosso país e a vontade do povo da Síria.
Disse,
quando falámos, que as Nações Unidas são parciais. Pensa que com o Sr. Guterres
isso poderá alterar-se um pouco?
Todos sabem que as Nações
Unidas não são o Secretário-Geral. Ele tem uma posição importante, mas as
Nações Unidas são os seus Estados membros. E, para ser franco, a maioria das
pessoas consideram que são só os cinco membros permanentes. São eles as Nações
Unidas porque têm o poder de veto, podem fazer ou recusarem o que quiserem e se
houver uma reforma que esta organização carece eles podem vetá-la ou dar-lhe
continuidade.
Mas, ao mesmo tempo, a forma
como ele se apresentou como Secretário-Geral é muito importante. Se me
perguntar o que espero de um novo representante numa posição tão importante eu
diria que preciso de duas coisas: a primeira é ser objetivo em todas as
declarações que possa fazer em relação a qualquer conflito no mundo, incluindo
a Síria. A segunda –que está relacionada e é complementar da primeira - é não
converter o cargo numa espécie de filial do Departamento de Estado
norte-americano. É isso que esperamos agora.
Claro que, se for objetivo,
poderá desempenhar um papel importante ao lidar com diferentes responsáveis das
Nações Unidas, por forma a direcionar as políticas dos diversos Estados –
sobretudo a Rússia e Estados Unidos – para uma maior cooperação e estabilidade
relativamente à Síria.
Mas
em relação à Síria há muitas agendas: Qatar, Turquia, Rússia, Estados Unidos,
Irão e Arábia Saudita. Como é que é possível tentar um processo de paz com
tantas agendas?
Sem levar todos esses países e
os diferentes fatores ao encontro de uma só direção, claro que vai ser difícil.
É por isso que digo sempre que o problema sírio, como um caso isolado, como um
problema sírio, não é muito complicado. O que o torna complicado é a
interferência do exterior, especialmente do Ocidente, porque vai contra a
vontade do Governo sírio, enquanto que a intervencão da Rússia, do Irão e do
Hezbollah surge a convite do governo sírio. Assim, o seu papel como
secretário-geral ao juntar todas essas potências é essencial e esperamos que
seja bem-sucedido. Não é fácil, claro.
Deixe-me
referir a Turquia. O exército está no seu país, o Presidente turco disse na
semana passada que os interesses da Turquia estão para além de fronteiras
naturais. Referia-se a Mossul e Alepo. Aceita isto?
Claro que não. Está a falar de
um homem doente. Ele é um Presidente megalómano, não é estável. Vive na era
otomana, não no tempo presente. Está desfasado da realidade.
Mas
o que vai fazer com o exército deles dentro do seu país?
É nosso direito defender o
país contra qualquer tipo de invasão. Mas sejamos realistas, todos os
terroristas que vieram para a Síria fizeram-no através da Turquia com o apoio
de Erdogan. Portanto, combater esses terroristas é como lutar com o exército de
Erdogan, não o exército turco.
Mas
é um país da NATO, está consciente disso?
Sim, claro. Sendo um país da
NATO ou não, não tem o direito de invadir outro país de acordo com o direito
internacional ou qualquer outro valor moral.
Senhor
Presidente, o que espera do novo Presidente eleito da América, Donald Trump?
Não temos grandes expetativas
porque a administração americana não se restringe ao Presidente, há diferentes
poderes no seio desta administração, diferentes “lobbies” que vão influenciar
qualquer Presidente.
Por isso temos de esperar para
ver o que fará ao assumir a sua nova missão, digamos assim, ou a sua posição de
Presidente no seio desta administração, dentro de dois meses. Mas dizemos
sempre que temos esperança de que os EUA não sejam parciais, que respeitem o
direito internacional, que não interfiram noutros países em todo o mundo e,
claro que deixem de apoiar os terroristas na Síria.
Mas
ele disse em entrevista que parece estar pronto para trabalhar consigo na luta
contra o Estado Islâmico. Está pronto para esse passo?
Claro, eu diria que isso é
promissor, mas conseguirá ele cumprir? Conseguirá ir nessa direção? E as forças
contrárias no seio da administração e os meios de comunicação mainstream que
estiveram contra ele? Como lidará ele com isso? É por essa razão que permanece
dúbio para nós saber se pode ou não cumprir as suas promessas. É por isso que
somos muito prudentes na sua avaliação, especialmente porque nunca deteve até
hoje qualquer cargo político. Portanto nada podemos dizer quanto ao que irá
fazer mas se – “se” – ele combater os terroristas é claro que seremos um aliado
natural, juntamente com os russos, os iranianos e muitos outros países que
querem derrotar os terroristas.
Então
vai cooperar com os Americanos na luta contra os terroristas?
Claro, definitivamente. Se
forem genuínos, se tiverem a vontade e a capacidade, claro que seremos os
primeiros a lutar contra o terrorismo porque já sofremos mais que nenhum outro
país no mundo com os terroristas.
Então
irá cooperar com os Americanos que agora apoiam os curdos, as Unidades de
Proteção Popular que estão a tentar entrar em Raqqa?
Quando se fala em cooperação,
fala-se de cooperação entre dois Governos legais, não cooperação entre um
Governo estrangeiro e uma qualquer fação no seio da Síria. Qualquer cooperação
que não passe pelo Governo sírio não é legal. Se não é legal, não pode existir
cooperação, não a reconhecemos e não a aceitamos.
De
qualquer forma, o vice-presidente Pence diz ter admitido o uso de força militar
para impedir a vossa força militar de criar uma nova crise humanitária em
Alepo. O que pensa disso?
Isso vai, de novo, contra o
direto internacional e esse é o problema da posição americana. Pensam que são a
polícia do mundo. Pensam que são o juiz do mundo. Não são. São um país
soberano, um país independente, mas esse é o limite. Não devem interferir em
qualquer outro país. Foi devido a essa interferência nos últimos 50 anos … é
por isso que apenas são bons a criar problemas e não a resolvê-los. É esse é o
problema do papel americano.
É por isso que dizemos que não
colocamos demasiada esperança na mudança de administração: este contexto
prolonga-se há mais de 50 anos e é o expectável. Se querem continuar nessa
mesma senda de criação de problemas pelo mundo, é isso que têm de fazer:
interferir nos assuntos de outras nações.
Mas
voltando ao que o recente Presidente eleito disse sobre cooperação com o seu
Governo na luta contra o Estado Islâmico, espera uma mudança também dentro dos
países europeus?
Em relação à luta contra o terrorismo,
estamos prontos a cooperar com qualquer pessoa no mundo sem condições. É esse o
cerne da nossa política, não hoje, nem ontem, há anos. Mesmo antes da guerra na
Síria, sempre o dissemos. Nos anos 80 pedimos uma aliança internacional contra
o terrorismo, depois da crise da Irmandade Muçulmana na Síria, quando começaram
a matar e, claro, foram derrotados nessa altura. Nós pedimos a mesma coisa. É
pois uma política a longo prazo na qual nos baseamos há anos.
Uma
última questão. Após tantos anos, ainda rejeita qualquer responsabilidade pelo
que aconteceu no seu país?
Não, eu nunca rejeitei
qualquer responsabilidade, mas isso depende da decisão. Quando falamos de
responsabilidade, perguntamo-nos que decisões devem ser tomadas para lidar com
a crise. O Presidente ordenou a morte de civis? Ordenou a destruição, mandou
que apoiassem o terrorismo no seu país? Claro que não.
A minha decisão e a decisão
das diferentes instituições e de diferentes representantes na Síria – e eu
estou no topo – foi dialogar, combater os terroristas e criar reformas como
resposta na fase inicial. Resposta às alegações que, naquele tempo, diziam que
a Síria precisava de uma reforma, e nós respondemos a isso. Portanto, essa foi
a decisão que tomei.
O senhor diria, ou alguém diria,
que lutar contra o terrorismo é errado? Dialogar é errado? Fazer reformas é
errado? Proteger os civis e libertar as áreas dos terroristas é errado? Claro
que não. Há pois uma diferença entre a responsabilidade da política e a
responsabilidade da prática. Em qualquer prática há procedimentos incorretos,
isso é uma outra questão. Quando falamos do Estado e do presidente, falamos
sempre das decisões e das políticas.
Obrigado
por estar com a RTP, Senhor Presidente.
Eu é que agradeço.
Rádio
Televisão Portuguesa (RTP) - Portugal
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