I
Depois de publicar Goto – o reino encantado do barqueiro
noturno do rio Itararé (Joinville-SC: Editora Clube de Autores, 2014), obra
nitidamente do século XXI, em que toda a coerência formal da narrativa já foi
desrespeitada, o poeta e ficcionista Silas Corrêa Leite ressurge agora com Gute Gute – Barriga Experimental de
Repertório (Rio de Janeiro: Editora
Autografia, 2015), outro romance pós-moderno, igualmente fragmentado,
desintegrado e de linguagem rebelde, que se apresenta como não-romance ou antirromance,
assumindo um rompimento definitivo com as fôrmas literárias do Romantismo e do
Modernismo.
Conhecido como ciberpoeta,
Silas Corrêa Leite, um dos mais originais escritores deste Brasil pós-moderno, surpreende,
mais uma vez, com um relato fragmentário de um bebê de altíssimo quociente
intelectual (QI) que, ainda no útero materno, mas em fase final de gestação, já
demonstra sentimentos, reações e faz citações, algumas de raízes populares e
outras de poetas e pensadores famosos. Abusando do recurso da
intertextualidade, o romancista faz o seu personagem ainda sem nome questionar
não só momentos íntimos da mãe como manifestar algumas reflexões e impressões a
respeito do mundo que há de viver fora do útero.
Com tanta originalidade, por
certo, Gute Gute – Barriga Experimental
de Repertório começa a atrair os leitores desde as primeiras linhas, ao fazer
questionamentos sobre termos, canções e sons que o protagonista ouve de dentro
da barriga da mãe. Como diz o autor na introdução, o romance trata da relação da
criança, ainda na forma fetal, com tudo o que a cerca: “o lar, as barulhanças nos derredores, as tristices e contentezas de formação, as formatações e configurações evolutivas
de meio, os sentimentos de base e aprumo, a sensibilidade generalizada de
compreender e ser inteirado da vida intrauterina a partir do que rola lá fora,
no exterior, a partir do que sente no colmeial do adjacente barrigal”.
Leia-se, por exemplo, este
excerto:
“(...) A gente vive aqui dentro pelo menos 9 meses. Parece
uma eternidade. E na vida lá fora deve ser dez ou cem vezes isso. Sei não, não
vou ser bom de aritmética, matemática. A barriga da natureza-mãe é melhor ou
pior? Como o Pai diz, numa graceza lá dele (o velho é bom de bico): o buraco é
mais embaixo. Não saquei direito essa frase detravessada dele. Quer dizer
alguma coisa que faça sentido? (...)
II
Sempre em busca da surpresa e
do ineditismo, o ficcionista vai compondo o seu antirromance porque, se a vida
ainda não existe fora do útero, tampouco não há como traçar um enredo com
começo, meio e fim. Só restam reflexos produzidos por atos de quem gera –
“percebo tudo aqui dentro da barriga” –, além de suposições sobre um futuro que
há de vir: “Sobreviver lá fora deve ser
um grande negócio. Ou é barra pesada? Ou tudo é rigorosamente regrado,
regulado, normas e leis? Tudo lá fora é certinho, funciona direito e com
precisão como um relógio?”, imagina.
Dividida em seu quatro livros
e subdividida em muitas partes, esta obra reproduz também as angústias de uma
futura mãe ainda adolescente, que se deixou engravidar por quem não pretende
assumir o filho. Lê-se: “(...) – Eu não
estava no programa... falhou o calendário, a cartelinha, alguma coisa que
deveria estar vestido e não estava, alguma coisa que deveria ter usado, sei lá
mais o quê... Eu fui um acidente de encontro... Acidente de percurso, sei lá...
(...).
Como se percebe, o poeta
Silas Corrêa Leite, com muita criatividade, atrai o leitor com uma linguagem do
dia-a-dia brasileiro, ou melhor, do mundo caipira do interior de São Paulo e do
Paraná, colocando novamente em evidência a cidadezinha de Itararé, com suas
ruas de pedras, onde nasceu, na divisa entre estes dois Estados, e com a qual
mantém vínculos familiares e sentimentais até hoje. Como dele já escreveu o
romancista Moacir Scliar (1937-2011), percebe-se que o poeta sente prazer em
narrar, “prazer este que se transmite ao leitor como um forte apelo – o apelo
que se espera da verdadeira literatura”.
O leitor, portanto, só terá a
ganhar ao conhecer e experimentar esta prosa experimentalista deste poeta
cibernético, que, antenado com o seu tempo, não hesita em apertar a tecla SAP,
mandar poemas-mensagens ou mensagens-poemas por torpedo, e-mail ou WahtsApp para construir um antirromance
de uma vida que ainda vai nascer;
III
Silas Corrêa Leite, educador,
jornalista comunitário e conselheiro em Direitos Humanos, começou a escrever
aos 16 anos no jornal O Guarani, de
Itararé-SP. Migrou para São Paulo em 1970. Formado em Direito e Geografia, é
especialista em Educação pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São
Paulo, com extensão universitária em Literatura na Comunicação na Escola de
Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP).
É autor também, entre outros,
de Porta-lapsos, poemas (Editora
All-Print-SP), Campo de trigo com corvos,
contos (Editora Design-SC), obra finalista do prêmio Telecom, Portugal, 2007, O homem que virou cerveja: crônicas hilárias
de um poeta boêmio (Giz Editorial-SP), Prêmio Valdeck Almeida de Jesus,
Salvador-BA, 2009, e Pirilâmpadas (Editora
Pragmatha-Porto Alegre), poesia
infanto-juvenil.
Seu e-book O rinoceronte de Clarice, onze ficções,
cada uma com três finais, um feliz, um de tragédia e um terceiro final
politicamente incorreto, por ser pioneiro, foi destaque em jornais como O Estado de S. Paulo, Diário Popular,
Revista Época, Revista Ao Mestre Com Carinho e Revista Kalunga e na rede televisiva. Por ser único no gênero e o
primeiro livro interativo da Rede Mundial de Computadores, foi recomendado como
leitura obrigatória na disciplina Linguagem Virtual no mestrado de Ciência da
Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina. Foi tema de tese de doutoramento
na Universidade Federal de Alagoas (“Hipertextualidade, o livro depois do
livro”).
Silas Corrêa Leite recebeu os
prêmios Paulo Leminski de Contos, Ignácio Loyola Brandão de Contos; Lygia
Fagundes Telles para Professor Escritor, Prêmio Biblioteca Mário de Andrade
(Poesia Sobre São Paulo), Prêmio Literal (Fundação Petrobrás), Prêmio Instituto
Piaget (Lisboa, Portugal/Cancioneiro Infanto-Juvenil); Prêmio Elos
Clube/Comunidade Lusíada Internacional; Primeiro Salão Nacional de Causos de
Pescadores (USP), Prêmio Simetria Ficções e Fantástico, Portugal (Microconto),
entre outros. Tem trabalhos publicados em mais de 100 antologias e até no
exterior (Antologia Multilingue de
Letteratura Contemporânea, Trento, Itália; e Cristhmas Anthology, Ohio, EUA). Adelto Gonçalves - Brasil
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Gute Gute – Barriga
Experimental de Repertório, de Silas Corrêa Leite. Rio de Janeiro: Editora
Autografia, 225 págs., R$ 40,00, 2015. E-mail:
poesilas@terra.com.br Site: www.autografia.com.br
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo (USP), é autor de Os vira-latas da
madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra
Selvagem, 2015), Gonzaga, um poeta do
Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo,
Publisher Brasil, 2002), Bocage – o
perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás
Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado
de São Paulo, 2012), e Direito e Justiça
em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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