O
Palácio Nacional de Queluz é cor-de-rosa há pelo menos 100 anos. Agora um
projecto de restauro da Parques de Sintra está a começar a devolver-lhe o azul
cobalto original. O paço vai continuar aberto para obras.
Foi em 1987 que apareceram
os primeiros vestígios de azul. Foram encontrados por trás de um dos bustos das
fachadas interiores, viradas para os jardins que fazem de Queluz um palácio
lúdico, cenográfico. Estavam muito sumidos e foi preciso que o Laboratório
Nacional de Engenharia Civil os analisasse para identificar vidro moído de cor
azul nessas amostras de reboco antigo que escaparam ao cor-de-rosa que reveste
o edifício há pelo menos 100 anos.
Historiadores de arte,
arquitectos e conservadores começaram aí à procura de documentação escrita e
iconográfica que corroborasse a teoria de que o edifício era, originalmente,
azul cobalto. Foram precisos quase 30 anos para que a conclusão a que chegaram se
transformasse em tinta e mudasse a imagem que temos deste monumento nacional,
que durante décadas recebeu os chefes de Estado estrangeiros que visitavam o
país, isto depois de por lá terem passado D. Pedro III e D. Maria I, ou D. João
VI e D. Carlota Joaquina, que fizeram do palácio a sua residência permanente
antes de se verem obrigados a fugir para o Brasil pelas tropas de Junot.
“Só quem conhecia Queluz
antes, naquele rosa que vemos por toda a parte, pode apreciar verdadeiramente o
impacto que tem esta mudança de cor sobre o conjunto”, diz Inês Ferro,
directora deste palácio nacional entre 1992 e 1998 e desde 2012, lembrando que
Queluz só se revela quando o visitante entra: “Todo o esforço decorativo de
Queluz é feito no interior – nas salas e quartos, mas também nos jardins que
não vemos da rua. Quem fica do lado de fora vê um palácio que parece muito mais
tímido do que é. Quem entra sente que ali pode ter havido festa – e houve
muita, com D. Pedro e D. Maria -, animais exóticos, gôndolas, orquestras,
crianças a brincar e jogos galantes.”
É precisamente para devolver
a Queluz parte do esplendor que conheceu enquanto palácio de Verão deste casal
fundador – é D. Pedro III que transforma a vila que ali havia e que pertenceu
ao marquês de Castelo Rodrigo numa autêntica residência real quando sabe que
vai casar com a sobrinha, a rainha D. Maria, filha de D. José I – que a Parques
de Sintra – Monte da Lua está a implementar um ambicioso projecto de
requalificação, cuja conclusão não tem ainda data marcada.
O projecto desta empresa de
capitais públicos criada para gerir a paisagem de Sintra classificada como
património mundial, que desde finais de 2012 tem a seu cargo o Palácio Nacional
de Queluz, não passa apenas pela pintura exterior do edifício. Explica Carlos
Marques, conservador restaurador, que esta intervenção, com um custo global
estimado de 2,8 milhões de euros, envolve a recuperação de coberturas e de
janelas e caixilharias, a limpeza de cantarias, o restauro da emblemática
cascata, a reconstituição do Jardim Botânico e a intervenção no de Malta, a
revisão do sistema de águas e das infraestruturas de energia e de comunicações,
e um novo esquema de iluminação. E isto sem esquecer o icónico Pavilhão
Robillion, fechado ao público desde a reconstrução que se seguiu ao incêndio de
1934, que o deixou praticamente destruído. É neste pavilhão, assim chamado por
ter sido projectado pelo francês Jean-Baptiste Robillion, no século XVIII, que
nascerá a nova cafetaria do palácio, salas de conferência e um auditório.
“Quando a Parques de Sintra
recebeu o palácio [antes estava dependente da Direcção-Geral do Património
Cultural] estava a precisar de uma grande intervenção, porque, salvo as
esculturas [de chumbo, o maior e mais bem conservado conjunto do importante escultor
inglês John Cheere em todo o mundo], pouco se tinha feito nos últimos anos”,
diz Carlos Marques.
Depois de resolvidos os
problemas no exterior – a área total do complexo de Queluz ascende a 16
hectares – a Parques de Sintra planeia começar a intervir no interior, onde há
muito a fazer, garante Vanessa Ferreira, outra das técnicas da empresa. “Num
edifício histórico como este há sempre trabalho a fazer porque as exigências
são muitas e muito diversas”, diz esta engenheira, sublinhando que o acompanhamento
permanente impede a “degradação séria” a que se assistia em Queluz. Carlos
Marques acrescenta: “A Parques de Sintra tem procedido assim em todos os seus
monumentos. É a filosofia do ‘Aberto para Obras’, que permite ao visitante
ficar a saber como se intervém em património.” Uma atitude pedagógica que não
descura as receitas do monumento que, neste caso, recebeu no primeiro semestre
deste ano, já com obras em curso, 65 mil visitantes.
Uma
aguarela decisiva
Inês Ferro reconhece que o
actual projecto era urgente e que as fachadas azuis, com umas faixas em amarelo
– actualmente estão pintadas apenas as que dão para os jardins superiores “à
francesa” (o Pênsil e o de Malta) - serão a sua face mais visível. Segue-se a
pintura das que dão para a rua (a partir de Janeiro), onde não foi ainda
encontrado qualquer rasto do azul cobalto, cor que, muito provavelmente, terá
sido escolhida pelo próprio D. Pedro III. “Não acredito que as fachadas viradas
à rua fossem de outra cor, mas vamos esperar para ver”, diz a directora.
“Esta cor, a que em
linguagem corrente se chama azul de esmalte, era feita com um pigmento mineral
muito caro na altura”, explica o restaurador Carlos Marques. Não era, por isso,
só uma cor – “era uma declaração de status, de poder”.
Identificar a cor original
exigiu, além de novas análises laboratoriais, uma pesquisa profunda em
bibliotecas e arquivos. Analisaram-se postais e fotografias a preto-e-branco –
“mesmo no preto-e-branco é possível tirar indícios em relação à cor”, precisa a
directora do palácio -, facturas, encomendas e outros documentos. Em nenhum, em
todo o caso, é feita qualquer referência à cor que o palácio teria nas suas
várias fases de construção.
“Sabemos que a dada altura
foram contratadas três mulheres para o caiar, sabemos a partir de um documento
espanhol que chegou a ter um tom pardacento [quando se degrada o pigmento azul
fica acinzentado], mas nunca sabemos de que cor era efectivamente”, diz ainda
Inês Ferro, garantindo que uma das fontes decisivas é uma aguarela da Torre do
Tombo, de 1836, de um autor desconhecido, em que se vê claramente as fachas de
cerimónia (as que dão para os jardins de aparato, o Pênsil e o de Malta) em
azul e com painéis amarelos.
Foi preciso correlacionar
inúmeros elementos e cruzar registos para que técnicos e historiadores se
decidissem pelo azul cobalto. As fachadas foram renovadas seguindo métodos
tradicionais, “na medida do possível próximos dos usados na época”, diz Carlos
Marques. É por isso que das 100 janelas desses alçados interiores, só três
foram integralmente substituídas.
“A intervenção em edifícios
históricos só pode ser feita assim”, acrescenta Vanessa Ferreira, para que não
se comprometa “a leitura global do conjunto”. Uma leitura global que aqui
assume particular importância, sublinha a directora do palácio, porque em
Queluz casa e jardins são um só. “Há uma simbiose perfeita entre arquitectura e
paisagem, com esculturas a animar os eixos principais dos jardins, com
interiores sumptuosos”, que reflectem o gosto da corte nos séculos XVIII e XIX,
período marcado, na arte e na arquitectura, primeiro pelo barroco, e depois
pelo rococó e o neoclassicismo.
“Este azul é próprio dos
palácios barrocos europeus. É muito provável que D. Pedro soubesse disso,
através das cartas que trocava com os embaixadores portugueses noutras cortes”,
acrescenta Ferro, admitindo que não se sabe por que razão, algures no tempo,
alguém decidiu que Queluz, como tantas outras residências apalaçadas espalhadas
pelo país, ficaria melhor cor-de-rosa.
A primeira referência a esta
cor aparece nos arquivos da extinta Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos
Nacionais, em 1937, três anos após o incêndio, mas não se sabe de que cor
estaria pintado antes. O que é importante agora, defende a directora, é que o
palácio seja integralmente recuperado, para que o visitante possa facilmente
imaginar ali uma corte, há mais de 250 anos.
Foi em Queluz, lembra, que
D. Carlota Joaquina, sempre fiel ao “seu filho preferido, D. Miguel”, ficou
como que em “prisão domiciliária”, depois de se ter recusado a jurar a
constituição de 1820. Foi em Queluz que D. Pedro IV, o seu “ filho preterido”,
nasceu e morreu. “D. Pedro IV está ligado a este palácio e ao quarto D.
Quixote. Com a sua morte tudo muda no país e em Queluz. Acaba o Antigo Regime,
entra-se numa nova ordem. Este palácio conheceu muitas mudanças.” O regresso do
azul às fachadas é apenas mais uma. Lucinda
Canelas – Portugal in”Jornal Público” / Centro Nacional de
Cultura
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