Recolhes de excluídos
sociais de uma ribeirinha sociedade anônima
“O livro é uma máquina de nos fazer
levantar a cabeça”. Gonçalo M. Tavares
I
O literato Adelto Gonçalves
tem um currículo espetacular, em breves palavras para tanto, assim se
resumindo: jornalista, trabalhou no Estadão,
Folha de S. Paulo, Editora Abril e A Tribuna, de Santos. Professor
universitário, doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo (USP), autor dos livros Os
Vira-latas da Madrugada, Prêmio José Lins do Rego, da José Olympio Editora;
Gonzaga, um Poeta do Iluminismo, Barcelona Brasileira, Bocage – o Perfil Perdido e Tomás Antônio Gonzaga. Ganhou em 1986 o
Prêmio Fernando Pessoa, da Fundação Cultural Brasil-Portugal. Foi professor
universitário em Santos, na Universidade Paulista (Unip) e na Universidade
Santa Cecília (Unisanta).
Por essas e outras, reler um
romance dele escrito entre os seus 18 e 19 anos de idade, já o sabendo um
brilhante artista vencedor, a própria primorosa reedição da obra Os Vira-Latas Madrugada pela editora
LetraSelvagem, de Taubaté-SP, credencia e sela, por assim dizer, a sua
consagração em alto estilo e ainda reverbera toda a sua vida brilhante.
Pois o romance, por assim
dizer social, Os Vira-Latas da Madrugada
é um despojo observativo e narrativo de sua primeira fase de juventude junto a
um berço litorâneo do Porto de Santos, feito o livraço ser assim uma bela
espécie de cargueiro de letras, de palavras, de orações, de parágrafos rasgados
com sentenças de vida e de morte, e ele, no embarcadouro do olhar já primoroso,
tecendo velas ao verbo, às aventuras narrativas com o vento todo (da imaginação
e criatividade) em popa.. O
próprio autor, aliás, e a bem dizer, se sente evocado e retratado, no belo
poema de Ribeiro Couto (“A Infância em um Poema ”), que quase também o retrata fielmente
e saudosista, e diz de seu espaço laborial com sustância:
“Nasci junto do porto,
ouvindo o barulho dos embarques//Os pesados carretões de café//Sacudiam as
ruas, faziam tremer o meu berço//Cresci junto do porto, vendo a azáfama dos
embarques//O apito triste dos cargueiros que partiam//Deixava longas
ressonâncias na minha rua//Brinquei de pegador entre vagões das docas,//Os
grãos de café, perdidos no lajedo//Eram pedrinhas que eu atirava noutros
meninos//As grades de ferro dos armazéns, fechados à noite//Faziam sonhar
(tantas mercadorias!)//E me ensinavam a poesia do comércio//Sou bem teu filho,
ó, cidade marítima//Tenho no sangue o instinto da partida//O amor dos
estrangeiros e das nações//Ó, não me esqueças nunca, ó, cidade marítima//Que eu
te trago comigo por todos os climas//E o cheiro do café me dá tua
presença.(...)// Ó minha infância, adeus, morreu toda a inocência!//Entre
imagens fiéis que habitam comigo//Caminho devagar para a serenidade//Sede os
meus anjos, imagens fiéis!//Vinde voar assim, com cantigas de roda//Vinde bater
as asas, anjos do meu tempo,//Vinde cantar em voz velada ao meu ouvido//Para
que com doçura eu recebe a morte (...)//”
II
Tal poema é quase uma
primeira vertente introdutória do que é o norteamento do romance Os Vira-Latas da Madrugada, em rápidas
pinceladas poéticas. E no livro estão registrados ex-sindicalistas, punguistas,
sonhadores, noiteadeiros, perdidos, notívagos sem eira nem beira, jornaleiros,
bicheiros, pés-rapados, mendigos, cafetinas, negros, pardos, mulatos, caiçaras;
vísceras expostas de meio e chão. A tal marginália sociedade anônima aflorando
no seu romance de excluídos sociais, despossuídos. Os manés, os párias e mesmo
as sequelas sociais de seu recanto beira-mar.
Na verdade, alguns zés sem um
porto de chegada ou de partida, mas lugar fincado de tantos pobres atracados no
destino-azar, no desperdício de vida-escória, mais sequelas e arroubos, má
sorte lançando-os aos mares de sargaços... Sobreviver é impreciso? Nos retalhos
do pano de fundo da história toda, as manifestações de borra-botas, de
vira-latas e suas oportunidades perdidas, de direitos vilipendiados, de violências
de todos os naipes, mais o golpe ditatorial se aflorando e rugindo naquele
eito. A ditadura, o horror que os desclassificaram como nódulos de veios da
história desmistificada, porque o que era para ser revolução (pátria, família,
igreja) de araque foi o que se viu depois, rotulada por Millôr Fernandes de “A
Canalha de 64” .
E Adelto Gonçalves pontua
isso, pari-passu, leva e traz, e narra. Dando voz a quase seres, subseres,
rebotalhos de um tempo, de um canto, um lugar... Um belo livro do ciclo da
chamada “identidade portuária”, entre outros da mesma lavra e safra, como Primórdios, de Vicente de Carvalho, o Poeta do Mar, Navios Iluminados (romance, 1937), de Ranulpho Prata, Cais de Santos (romance, 1939), de
Alberto Leal, Agonia na Noite
(romance, 1956), de Jorge Amado, Cais
(poesia, 2002), de Alberto Martins, A
História dos Ossos (novela, 2005), de Alberto Martins, Santos – Natureza e Arquitetura em Fotopoemas
(haikais, 2011), de Regina Alonso, Costa
a Costa (poesia, 2012), de Ademir Demarchi, entre outros.
III
Desgraças, lamúrias em doses
etílicas, deserdados da má sorte e perseguidos de becos, antros e guetos, mais
cenários pobres de biroscas, biscates, inocentes úteis, batucadas, e a
sobrevivência calça curta dentro do banzo e do curtume do possível... Adelto
Gonçalves escreve sobre ruínas humanas...
“Tomei coragem e desci à rua
e vi quando alguns daqueles homens que estavam acuados na parte de cima do
sindicato desceram as escadarias, sob a mira de metralhadoras, e entraram numa
espécie de ‘corredor polonês’ aos tapas e pescoções em direção a um caminhão
coberto” – “Essa é uma história de muitas histórias e algumas confissões” –
“... signo do Novo Estado é esse navio-calabouço e limite, cheirando a mijo e
merda” – “Tristes são também os vagabundos e os trabalhadores do cais (...)
como tristes são os tempos que as tornaram (as histórias) reais” – “E com o
tempo, a gente também fica assim, quase um morto” – “Desse Paquetá quero
escrever, sem restrição, o que sei” – “Assim contam os velhos manguaceiros do
beira-cais que tudo sabem e vêem” – “Eu me lembro, eu era menino, mas me lembro
muito bem” – “As vozes que me trouxeram até aqui já não ouço mais (...). Este
irregular relato é só uma homenagem a essas vozes que se calaram cansadas de
testemunhar tanta ignorância e violência”(...) – (Fragmentos sequenciais do
romance)
Um arguto olhar crítico e
sensível (e privilegiado?) sobre as cinzas das horas, dos burburinhos
decorrentes no derredor alvoroçado, e os revoltos calados em terra de órfãos...
os ninguéns... O pré-golpe, o levante-golpe, e o pós-golpe, cenários vistos
pelos olhos de um jovem quase menino, mas ainda assim precoce, de atiçado
prisma, pronto para o embate do que seria o futural se desanuviando, se
deslanchando, nos finca-pés dessa canoa rodada que é a vida, às vezes sem carta
náutica (mas pirateando incompletudes)... às vezes sem mastro, sem âncora, sem
sextante ou bússola, mais dos sentidores, pensadores... criadores...
E assim despontando o que é
ficção, invenção e mentira, diferenças e disparates. O próprio uso da
literatura e da ficção como fonte de conhecimento histórico, e da própria
literatura como forma de conhecimento sobre a vida e suas erranças e errações,
a alma humana, o mundo particularizado no microespaço (a urbanidade vira-latas),
mas entrelaçado com o macroespaço que retrata e beira o humano dessa “humana”
civilização. Civilização?
IV
Tudo isso com requinte ora de
realismo, ora de piedade, mais a solidão-cadáver de cada personagem tirado a
golpe de olhar da perdição do anonimato absoluto. E nessas conotações, embarcam
fantasmas, atracam aproveitadores, mais tarefeiros de achaques, furtos,
perdições, ilusões perdidas (são tantas as ilusões perdidas), a quem belamente
e com vigor e densidade narrativa o autor denomina, esplende do nada, dá nome,
configura, enreda ramalhete de palavras, e cada um tem seu desdizer, sua
sentição, feito um estado de lástima e lamúria posto em primeiro plano no
emergente da escrita.
Sim, escrever é tocar as
cascas da vida de alto a baixo, das crostas urbanas às placas de contemplação,
das cargas de profundidade às profundezas de lamas e de vazios existenciais, do
baixio chão ao alto escalão de patentes, poses, golpes e insurreições
suspeitas. Porque se um dia tudo será memória, o livro registra os pedregulhos
sujos de algum cais como extrato da vida perpassada a limpo do limbo, e
insurgida em prosa rica de verdade real. A carne mais barata do mercado das
pulgas ainda é a dos pobres, a ralé. A grossa massa de manobra (peixes pequenos
entre tubarões) à maré de seus ensimesmamentos, porque nossa sociedade está imersa
num magnetismo que transborda alucinação, às vezes caçando os vampiros que não
necessitam de sangue, até porque somos feitos de horas impróprias, de horas
vagas, de filosofias sobrevivenciais, cada um com seu casulo, sua chiqueza, sua
escureza, sua rebeldia sem casca... Ou nos livramos de nós, ou nos enlivramos
de nós por nós mesmos?
V
Adelto Gonçalves |
Adelto Gonçalves, logo nessa
sua já passada e brilhante estreia, hoje revisitada com consagração literária,
com talento logo se encara de dar nome aos excluídos na crueldade da história;
logo se atiça de dar formato, composição personalística e ramificações que
tendem a aludir a ciscos e sítios literais contundentes de Plinio Marcos ou até
a alguns nuances severos de Jean Genet, tristices, horrores, finitudes, afinidades,
ambições, mortes, assassinatos, desmoralizações, cerrações. Desesperos
encruados e parcas esperanças saindo pelo ladrão, nesse romance que é, sim, um
romance de caiçaras da periferia da sociedade anônima tendo voz, tendo dor,
tendo foco, sujeitos de si mesmos. Somos todos cheios de pose e com pinta de
pedigree, mas, afinal, curto e grosso, somos mesmo todos (os maiores e melhores
criadores também e por isso mesmo) pescadores de sargaços?
Adelto Gonçalves escreveu um
clássico com a cara e a coragem de captar arestas e essências de desgarramentos
humanos, dentro do ciclo atribulado do humanus e do núcleo de abandono do
humano lambendo feridas nas paredes das memórias...
Talvez, quem sabe, sejamos
todos sargaços também, varando madrugadas de nós mesmos, retratados no pacote
incompleto de outrem, quaisquer alguns; nas perdições arrependidas, na cópia
assentada, no espelho da interatividade existencial.
O romance Os Vira-Latas da Madrugada é o tenebroso
sal da terra que iça velas e a tromba do motor de um braço de mar revolto que
ruge. Corrêa Leite - Brasil
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Os Vira-Latas da
Madrugada, de Adelto Gonçalves,
com prefácio de Marcos Faerman e posfácio de Maria Angélica Guimarães Lopes,
ilustrações e capa de Enio Squeff.. Taubaté-SP: Associação Cultural LetraSelvagem,
216 págs., 2015, R$ 35,00. E-mail: letraselvagem@letraselvagem.com.br Site: www.letraselvagem.com.br
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Silas Corrêa Leite é poeta e autor de Goto, a Lenda do Barqueiro
Noturno do Rio Itararé (São Paulo, Editora Clube de Autores). E-mail: poesilas@terra.com.br
Blog: www.portas-lapsos.zip.net
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