Estátuas
de Bartolomeu Dias e Vasco da Gama em risco de serem demolidas na África do Sul
A euforia de milhares de
estudantes perante a remoção da estátua do colonizador Cecil Rhodes foi o
culminar dos protestos contra o racismo institucional, mas para o movimento
“Rhodes must fall”, este é só o início. Duas décadas após o fim do ’apartheid’
na África do Sul, ainda estão por sarar as feridas abertas por séculos de
colonialismo. As estátuas de Bartolomeu Dias e Vasco da Gama também podem vir a
ser demolidas.
A juventude sul-africana de
amanhã dirá que foi 2015, e não 1994, o ano em que a mudança realmente
começou”, diz um estudante, momentos antes de a estátua do colonizador Cecil
Rhodes ser removida da Universidade da Cidade do Cabo (UCT), perante a euforia
de milhares de alunos.
“O que queremos é a
descolonização da mente, a descolonização das instituições”, afirma Masixole
Mlandu, do movimento Rhodes Must Fall (“Rhodes tem de cair”). Muitos vêem nesse
dia, a 9 de Abril, o desfecho vitorioso de um mês de protestos, que começou
quando um estudante atirou um balde de fezes contra o monumento. Os estudantes
ocuparam um edifício da universidade, acusando a instituição de contribuir para
a perpetuação duma narrativa de supremacia do homem branco, e por todo o país
símbolos do colonialismo foram atacados com tinta.
Vasco da Gama |
Há quem acuse os jovens de
desrespeitar a história do país, fomentar um nacionalismo negro e passar ao
lado dos verdadeiros problemas actuais, como a corrupção. Mas o que parece
certo é que as feridas abertas pelo colonialismo europeu estão longe de
saradas.
“As estátuas são só uma
metáfora. Representam o sofrimento negro, a nossa derrota enquanto negros neste
mundo. Crescemos com a inferioridade gravada no corpo, privados da nossa
própria terra, desconectados de nós mesmos. Os negros continuam a viver com a
violência todos os dias, em todos os lados. Escravidão, supremacia branca,
capitalismo – é esse o verdadeiro legado de Rhodes”, desabafa Masixole, que
todos os dias passava pela figura de bronze a caminho do curso de Ciências
Políticas e Sociologia – até agora.
Bartolomeu Dias |
A mais antiga universidade
do país, e das mais importantes de África, localiza-se hoje meio caminho entre
miseráveis ’townships’ (guetos reservados para não-brancos até ao fim do
apartheid, onde continua a viver grande parte da população negra e pobre) e
alguns dos mais luxuosos bairros do continente. No seu corpo académico, apenas
3% são sul-africanos negros. Pelo país fora, de resto, a riqueza continua a ser
largamente ditada pela cor da pele: a população branca perfaz menos de 10%, mas
detém metade das receitas nacionais e 70% das terras.
Uma semana depois de Rhodes
ter caído, uma tragédia substituía a polémica das estátuas no topo dos
noticiários. Cinco pessoas da Etiópia, Zimbabué e Moçambique morriam vítimas de
uma nova onda de ataques xenófobos em Durban e Joanesburgo, e mais de mil
fugiam das suas casas. Eventos que, duas décadas depois do fim do apartheid,
trazem à luz do dia a realidade de miséria, violência e escassez de emprego nas
zonas mais pobres.
As homenagens a Nelson Mandela
no fim de 2013 poderão bem ter sido as últimas celebrações em torno da ideia da
“nação arco-íris”. A reconstrução da África do Sul assentou na narrativa de paz
e reconciliação, mas poucos pediram perdão e poucos foram presos pelos crimes
do apartheid. Para os estudantes, trata-se de uma mitologia que permitiu a quem
estava no poder manter os seus privilégios. E que está a “sufocar o país”.
“Só nos preocupámos com a
retórica da nação arco-íris e em cantar ‘kumbaya’, enquanto a nossa economia
continua a reflectir as mesmas disparidades sócio-económicas da era do
apartheid”, denuncia Ramabina Mahapa, presidente do conselho de estudantes da
UCT. “A democracia garantiu uns poucos lugares negros à mesa dos senhores, o
resto continua a lutar pelas migalhas que caem da mesa”.
Apesar das leis
anti-discriminação e dos programas de assistência social do governo ANC, o
número de pessoas a viver abaixo do limiar de pobreza duplicou e o fosso entre
ricos e pobres não parou de aumentar, fazendo do país um dos mais desiguais do
planeta. Em 2012, as imagens da polícia sul-africana a assassinar 36 mineiros,
em greve contra os salários miseráveis, chocavam o mundo. Nesse mesmo ano, a
multinacional mineira De Beers, fundada por Rhodes, facturava seis mil milhões
de dólares.
“Substituiu-se uma forma de
opressão por outra. Quando dizemos ’Rhodes tem de cair’, queremos dizer que a
supremacia branca, o capitalismo, o patriarcado e toda a opressão sistemática
baseada em relações de poder têm de cair. Atacando os seus símbolos, estamos a
lançar uma verdadeira conversa sobre nós mesmos, a transformar as nossas
escolas, a sociedade e o mundo”, diz Masixole.
“E ainda dizem que é só
pelas estátuas!”, ironizam os estudantes, para quem este é apenas o início. Da
luta de libertação de Moçambique vem um dos slogans mais usados pelo movimento.
Em português: “A luta continua.“ Francisco
Pedro – África do Sul in “Contacto” - Luxemburgo
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