I
Quando os portugueses
chegaram a Moçambique, ao final do século XV, algumas cidades já floresciam na chamada
contracosta africana, onde os bantos negociavam com outras partes da África, do
Oriente Médio e da Índia. A influência árabe nestes portos era forte e o suaili
era a língua franca do comércio. Foi da
fusão das comunidades bantas e dos árabes que nasceu a cultura suaili de que
faz parte o litoral do Norte de Moçambique, do Quênia e da Tanzânia. Mas, até
hoje, por razões várias, que incluem motivações geopolíticas, pouco tem sido
estudada essa influência na Literatura Moçambicana em Língua Portuguesa.
No Brasil, essa influência
também tem sido vista com pouca (ou nenhuma) atenção, ainda que a presença
árabe por aqui seja mais recente. Para corrigir (ou amenizar) essa falha, a
professora Moema de Castro e Silva Olival acaba de publicar A Literatura Brasileira e a Cultura Árabe
(Goiânia, Editora Kelps, 2015), que reúne ensaios sobre seis escritores
brasileiros de origem libanesa, destacando a significativa contribuição dos
imigrantes árabes para a formação cultural do País. É de se lembrar que hoje
são mais de seis milhões os libaneses e seus descendentes radicados no Brasil,
uma população igual à do Líbano. E que, nos dias de hoje, já são 8.530 os
refugiados sírios, que imigraram recentemente em função da crise
político-econômica que vive a Síria.
Na introdução, a professora
Moema Olival explica que não foi seu objetivo fazer um estudo específico da
cultura árabe nem reunir autores quanto à temática comum, mas sim observar,
como no decorrer de suas obras, esses escritores acabam apontando para traços
que os reúnem como intelectuais modernos, de procedência comum: a libanesa. Ou
seja, a ensaísta procura mostrar como a narrativa ficcional desses autores se
entretece com dados relativos ao povo e costumes árabes, uns mais ambientados,
modernizados; outros menos, mas sempre a revelar a origem: “um povo que é parte
do leque de etnias que constituem e enriquecem o diversificado universo
sociocultural brasileiro”.
II
O romance Lavoura Arcaica (1976), de Raduan Nassar (1935), é definido por
Moema Olival como “uma semeadura narrativa que viceja, com austeridade e
determinação, sobre um arcabouço familiar libanês, construído sob rigorosos
laços de afeto e amor, em terras brasileiras”. Para ela, o romance espelha com
fidelidade a cultura do patriarcalismo comum ao mundo árabe. Já ao analisar Um copo de cólera (1978), também de Raduan
Nassar, a ensaísta destaca a problemática sexual que a novela traz, lembrando
que o tema tem sido frequentemente abordado pela literatura árabe.
De Salim Miguel (1924),
nascido no Líbano, Moema Olival estuda o romance Nur, na escuridão (1999), narrativa autobiográfica que reconstitui
a trajetória da família do autor, desde o desembarque de Yussef, seu patriarca,
em 1927, no cais da Praça Mauá, no Rio de Janeiro, e “a luta assumida por
aquela família na sua aventura de tentar novos destinos”, passando por seu
esforço por encontrar um bom comércio em Biguaçu e Florianópolis, em Santa Catarina , e
no Rio de Janeiro, para oferecer uma vida melhor à família que, com o passar
dos anos, reuniria sete filhos. De Salim Miguel, a ensaísta analisa ainda Eu e as corruíras (2001), livro
comemorativo dos 50 anos de estréia do autor, que reúne crônicas e depoimentos.
De Milton Hatoum (1952), com
certeza o autor de descendência libanesa mais proeminente hoje na literatura
brasileira, com quatro romances premiados e traduzidos em dez línguas e
publicados em 14 países, Moema Olival analisa os romances Dois Irmãos (2000) e Cinzas
ao Norte (2010). Se o primeiro romance retrata o drama de mais uma família
libanesa estabelecida no Brasil e a saga de dois irmãos gêmeos (Yakub e Omar),
na cidade de Manaus, às margens do Rio Negro, o segundo busca trilhar um
caminho aberto por Machado de Assis (1839-1908), em Dom
Casmurro (1899), ao deixar para o leitor a tarefa de
concluir se Ran ou Arana seria o pai de Mundo (Raimundo), uma das personagens
principais.
III
De Carlos Nejar (1939), a
ensaísta debruça-se sobre Carta aos
loucos (1998), terceira obra em prosa do poeta gaúcho e membro da Academia
Brasileira de Letras desde 2009, e Riopampa:
o moinho das tribulações (2004), romance que igualmente reconstitui os
percalços de uma família que habitava um moinho. Para a professora, “Riopampa é uma parábola da vida e da
morte, e do desamor, do egoísmo e da generosidade, da guerra e da paz, das
classes político-sociais que separam os homens, das forças da natureza sobre os
sentimentos, e da alma que as traduz”.
De Miguel Jorge (1933),
nascido em Campo
Grande-MS , mas estabelecido em Goiás desde cedo (em Inhumas
e, depois, em Goiânia), membro da Academia Goiana de Letras, a ensaísta estuda Veias e Vinhos (1982), Nos ombros do cão (1991) e Pão cozido debaixo de brasa (1997), trilogia
urbana centrada em Goiânia, O Deus da
hora e da noite (2008) e Minha
querida Beirute (2012), sua última obra publicada.
Por fim, de William Agel de
Mello (1937), a ensaísta discute o volume I de suas Obras Completas (2008), que reúne sua ficção (os demais volumes abrangem
tradução, ensaios, monografias e artigos, fortuna crítica e dicionários). Sua
ficção é composta por dois romances (Epopéia
dos sertões e O último dia do homem)
e dois livros de contos (Geórgicas –
Estórias da terra e Metamorfose).
De Geórgicas, analisa especificamente
o conto “Baalbek”, que, segundo ela, sintetiza com dramaticidade os perfis da
raça árabe: “o espírito aventureiro, amor ao comércio e à cultura, aos amigos,
a consciência de seus direitos, a complacência com os mais fracos, o espírito
religioso, endossando as convicções herdadas”.
Provavelmente, porque estes
dois últimos autores estão diretamente ligados ao solo goiano, Moema Olival
dedica maior espaço ao estudo de suas obras, chegando a ponto de esmiuçar
capítulo por capítulo Minha querida
Beirute, de Miguel Jorge, obra que, em sua opinião, representa uma súmula
dos preceitos morais, éticos e afetivos característicos de uma família libanesa
tradicional. Ou seja: “para o homem, tudo. Para as mulheres, a restrição e a
obediência”, constata.
De fato, como observa o
professor Fabio Lucas no prefácio que escreveu para este livro, a professora goiana,
com estes ensaios, aponta não só uma nova perspectiva para o estudo da cultura
libanesa projetada no ambiente brasileiro como abre o debate sobre a
contribuição dos escritores descendentes de árabes à ficção produzida no
Brasil, repetindo-se aqui o que diz o próprio Miguel Jorge na contracapa deste
livro.
IV
Ensaísta, crítica literária,
professora emérita (aposentada) da Universidade Federal de Goiás (UFG), Moema
de Castro e Silva Olival é doutora em Letras Clássicas
e Vernáculas pela Universidade de São Paulo (USP). Fundadora e primeira
coordenadora do Centro de Estudos Portugueses da UFG e do mestrado em Letras
por oito anos, é sócia-correspondente da Academia Brasileira de Filologia
(Abrafil), do Rio de Janeiro, e da União Brasileira de Letras (UBE)-RJ. Membro
da Academia Goiana de Letras (AGL) e da seção de Goiás da UBE, é membro-titular
do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG).
Tem 14 livros de ensaios
publicados, entre os quais se destacam: O
processo sintagmático na obra literária (Editora Oriente,1976), O espaço da crítica – panorama atual (Editora
UFG, 1998), GEN – um sopro de renovação
em Goiás, v. I (Editora Kelps, 2000), Moura
Lima: a voz pontual da alma tocantinense (Editora Cometa, 2003), Diálogos
plurais (R&F Editora, 2008), O
espaço da crítica III (Editora da UFG, 2009), Um sopro de renovação em Goiás, v. II (Editora Kelps, 2009), Novos ensaios – vozes em interação
(Editora Kelps, 2010), e Contos
(Des)armados (Editora Kelps, 2014). Adelto
Gonçalves - Brasil
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A Literatura Brasileira
e a Cultura Árabe, de Moema de Castro e Silva Olival. Goiânia:
Editora Kelps, 236 págs., 2015. E-mail: moemacsolival@hotmail.com
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Adelto Gonçalves é doutor
em Literatura
Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de
Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona
brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002), Bocage – o perfil perdido
(Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio
Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2012), e Direito e Justiça em
Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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