I
Ainda que não seja regra, uma
biografia costuma começar pelo nascimento do biografado ou, melhor ainda, por
seus ancestrais, mas nada impede que comece pelo dia de sua morte. Pois é assim
que tem início Alexandre O'Neill – Uma Biografia Literária (Lisboa,
Publicações Dom Quixote, 2007), de Maria Antónia Oliveira, o que mostra quão
inovadora é esta biografia de um poeta que está entre os maiores da segunda
metade do século XX em Portugal.
Como ainda era muito jovem
quando o poeta morreu, a biógrafa, provavelmente, nunca esteve próxima de seu
biografado. Mas pôde reconstruir sua trajetória, praticamente, sem lacunas, ao
dar a palavra aos amigos do poeta, acompanhando os seus passos por Lisboa.
Recuperou assim a sua paixão pelo Surrealismo, de que foi um dos maiores
divulgadores em Portugal, seus amores, suas facetas de publicitário e
colecionador e a história de “Um Adeus Português”, o seu poema mais famoso, do
qual transcrevemos abaixo apenas as duas primeiras estrofes e a última para
deixar o leitor que o não conhece com água na boca:
Nos teus olhos altamente
perigosos
vigora ainda o mais rigoroso
amor
a luz de ombros puros e a
sombra
de uma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa
comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que
vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor (...)
(...)
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu
desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.
Graças ao trabalho de
investigação da biógrafa, fica-se sabendo que o poema surgiu em homenagem a uma
antiga namorada, à época em que o poeta tinha 26 anos de idade, Nora Mitrani,
uma francesa que não era bem vista por sua família, a ponto de esta ter se
movimentado para que a polícia salazarista lhe negasse passaporte para ir ao
encontro dela em França. Alexandre seria chamado à Pide, a polícia política do
regime direitista de António Salazar, para um interrogatório que teria durado
quase quinze horas, conforme recordou o próprio poeta em crônica escrita em
1984. Nora, que para a Pide seria uma perigosa agitadora esquerdista, nunca
mais veria Alexandre: viveria mais onze anos, até suicidar-se ao saber que
tinha câncer. Foi desse amor contrariado que nasceu o famoso poema, que a
homenageada chegou a ler comovida, como confessou em carta que enviou ao poeta.
II
Maria Antónia recupera ainda
os entusiasmos literários do jovem O´Neill. Com isso, sabe-se de sua
descoberta, “um fervor que nunca abandonou”, da poesia brasileira,
especialmente de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Guilherme de
Almeida, Cecília Meireles, Mário de Andrade, Jorge de Lima e Ribeiro Couto,
ainda na década de 1940. Reconstitui quase passo a passo a trajetória de vida
do poeta, detendo-se naqueles mais significativos, como o conhecimento que,
durante o inverno de 1956, travou com Maria Noémia de Freitas Delgado, uma rapariga
que viera de Moçambique para estudar Belas-Artes em Lisboa, com quem ele se
casaria.
Para reconstituir a vida do
poeta, a biógrafa lembra que recolheu cerca de 50 depoimentos de pessoas que o
conheceram, além de vasculhar papéis no Arquivo Nacional da Torre do Tomo, na
Biblioteca Nacional de Lisboa e outros. E confessa as dúvidas que passou diante
de tanta informação levantada, a ponto de admitir que, perante a dificuldade
para estabelecer uma verdade impossível, escreveu uma “curiosa mistura de narrativa
ficcional e de realidade”.
Seja como for, o resultado é
uma biografia que encanta o leitor desde as primeiras linhas, ao permitir
também que aquele que a lê conheça ou reconheça a Lisboa daqueles anos,
ressuscitando às vezes lugares já perdidos no tempo que foram locais de
convivência de O´Neill com os amigos, na maioria intelectuais. E ainda o amor
que viveu com Teresa Gouveia, com quem se casaria em 1971, em meio à oposição
da família da moça.
Tinha ele 45 anos de idade e
ela, 25. Sem contar que o poeta carregava fama de ser “um desbragado estúrdio,
devasso, estróina e perdulário”. E a família da rapariga era tradicional em
meio a uma sociedade fechada e conservadora como a portuguesa do começo dos
anos 70. Teresa viveria com Alexandre até o fim de sua vida. Esposa de um
poeta, não deixaria de cumprir, porém, uma carreira importante na estrutura da
burocracia portuguesa pós-queda do salazarismo. Em 16 de abril de 1986, quando
o poeta sofreu o segundo acidente vascular cerebral que o derrubaria para
sempre, ela atuava como secretária de Estado da Cultura no governo do professor
Aníbal Cavaco Silva.
III
Alexandre O´Neill nasceu em
1924, em Lisboa.
Participou da criação do Grupo Surrealista de Lisboa em 1947.
Editou o seu primeiro livro de poesia, No
Reino da Dinamarca, em 1958, do qual consta o seu poema mais célebre, “Um
Adeus Português”. Escreveu também letras para fados e traduziu e organizou
antologias. Assinou colunas em jornais lisboetas e colaborou em revistas
literárias. Escreveu para teatro, cinema e televisão, mas viveu basicamente de
seu trabalho como copy em publicidade. Morreu
a 21 de agosto de 1986, em Lisboa.
Maria Antónia Oliveira
(1964), nascida em Viseu, é licenciada em Línguas e Literaturas Modernas
(Estudos Portugueses e Franceses), pela Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra (1982-1986), e mestre em Estudos Literários
Comparados pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa (1994), com a tese “O Grande Hotel Universal – A
Poesia de Mário de Sá-Carneiro”.
Concluiu o doutoramento, em
2010, em Estudos
Portugueses , na Universidade Nova de Lisboa, com a tese “Os
Biógrafos de Camilo”. Foi professora de Literatura Portuguesa entre os anos de
1994 e 2005, no Instituto Piaget; colaboradora do suplemento Leituras do jornal Público, de Lisboa, da revista de poesia Relâmpago (Fundação Luís Miguel Nava) e da Revista LX Metrópole; formadora de e-Learning no âmbito do programa
Projeto e-Inovar da Escola Superior de Educação de Coimbra; e fez trabalho de
investigação para a revista Colóquio/Letras,
da Fundação Calouste Gulbenkian.
É responsável com Fernando
Cabral Martins pela edição de Anos 70 –
Poemas Dispersos, de Alexandre O’Neill (Lisboa, Assírio & Alvim, 2005);
edição e posfácio de Uma Coisa em Forma de
Assim, de Alexandre O’Neill (Lisboa, Assírio & Alvim, 2004); edição e
prefácio da obra Céu em Fogo, de
Mário de Sá-Carneiro (Lisboa, Relógio d’Água, 1998); e prefácio à reedição de No Reino da Dinamarca, de Alexandre
O’Neill (Lisboa, Relógio d’Água, 1997). Ganhou ainda o Prêmio de Revelação de
Ensaio APE/IPLL do ano de 1990, pelo trabalho A Tristeza Contentinha de Alexandre O’Neill, ensaio publicado no
ano de 1992, pela Editorial Caminho, de Lisboa. Adelto Gonçalves - Brasil
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Alexandre O´Neill – Uma
Biografia Literária, de Maria Antónia Oliveira. Lisboa: Publicações
Dom Quixote, 346 págs., 9,90 euros, 2007. Site: www.domquixote.pt
E-mail:info@dquixote.pt
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Adelto Gonçalves é doutor
em Literatura
Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de
Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona
brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002), Bocage – o perfil perdido
(Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio
Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2012), e Direito e Justiça em
Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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