Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

domingo, 2 de agosto de 2015

Brasil – Entrevista a Adelto Gonçalves

“A corrupção é prática tão antiga quanto o Brasil” 
      
Autor das biografias dos poetas Gonzaga e Bocage, o pesquisador Adelto Gonçalves desvenda a estrutura judiciária na capitania de São Paulo (1709-1822) em livro que ajuda a entender as relações entre Estado e Justiça e o movimento político que o País vive hoje

Adelto Gonçalves: “Para entender o Brasil de hoje, é preciso conhecer o de ontem: as penas variavam de acordo com a qualidade das vítimas e dos réus”
Adelto Gonçalves, 63 anos, é jornalista desde 1972, com passagens pelos jornais A Tribuna, de Santos, O Estado de S. Paulo e Folha da Tarde e pela Editora Abril. É doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa e mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana pela Universidade de São Paulo (USP). Seu trabalho de doutorado Gonzaga, um poeta do Iluminismo, sobre Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), foi publicado em 1999 pela Editora Nova Fronteira, do Rio de Janeiro.

Em 1999, com bolsa de pós-doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp), desenvolveu em Portugal projeto sobre a vida e a obra do poeta Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805), publicado em 2003 pela Editorial Caminho, de Lisboa, sob o título Bocage – o perfil perdido.

Foi professor titular da Universidade Paulista (Unip), nos cursos de Direito e Pedagogia, e da Universidade Santa Cecília (Unisanta), no curso de Jornalismo, em Santos. É autor também de Mariela Morta (Ourinhos, Complemento, 1977), Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio, 1981; Taubaté-SP, Editora Letra Selvagem, 2015), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2003), Fernando Pessoa: a voz de Deus (Santos, Editora da Unisanta, 1997) e Tomás Antônio Gonzaga (Rio de Janeiro/São Paulo, Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012).

Com bolsa de pesquisa da Unip, desenvolveu em 2010-2011 o projeto Direito e Justiça em Terras d´El Rei na São Paulo Colonial (1709-1822), publicado em julho de 2015 pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Foi para discutir aspectos desta sua última obra que concedeu a seguinte entrevista:

Rivaldo Chinem – Em linhas gerais, de que trata o seu novo livro?

Adelto Gonçalves – É um trabalho de investigação sobre a atuação de ouvidores, juízes de fora, corregedores, provedores, juízes ordinários e vereadores à época da capitania de São Paulo (1709-1822), por meio da descrição dos casos mais significativos, que procura fazer um diagnóstico da estrutura judiciária. Por seu caráter inédito e recorte específico, espero que seja uma contribuição aos estudos da aplicação do Direito e da Justiça na São Paulo colonial e constitua também uma referência nos planos de ensino da cadeira de História do Direito no País. O trabalho publica pela primeira vez a relação completa dos governadores e capitães-generais da capitania no período que abarca, corrigindo erros de listas anteriores. E traz também uma inédita relação dos ouvidores-gerais da comarca de São Paulo

Rivaldo Chinem – Não sendo da área de Direito, o que o levou a optar um tema tão complexo?

Adelto Gonçalves – Como pesquisador da área de Letras e História, eu já tinha familiaridade com o período e a documentação do século XVIII, já que sou autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo, biografia do poeta Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), ouvidor em Vila Rica de 1782 a 1788, filho de um magistrado que chegou à Casa da Suplicação em Lisboa, e de Bocage: o perfil perdido, meu primeiro trabalho de pós-doutorado. É de se lembrar que o pai de Bocage fez carreira no Judiciário e foi ouvidor em Beja, antes de cair em desgraça política, o que levou a Coroa a confiscar a propriedade que sua família tinha em Setúbal. Em razão disso, eu já havia tido acesso à documentação produzida por esses ouvidores e outros funcionários do poder judiciário. Ao estudar a documentação da época relativa à capitania de São Paulo, que consta do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), de Lisboa, e do Arquivo do Estado de São Paulo (Aesp), procurei estabelecer as atribuições de cada um daqueles altos funcionários do Judiciário. Ao analisar a documentação, foi possível também estabelecer algumas redes de poder que lutavam pela obtenção de terras, direito de exploração de larvas, títulos de nobreza, ofícios e privilégios comerciais.

Rivaldo Chinem – Como era a aplicação da Justiça nos primeiros tempos?

Adelto Gonçalves – No século XVI, a aplicação da Justiça pertencia aos donatários das capitanias, que muitas vezes residiam no Reino ou estavam em outras partes do Império, o que os levava a nomear quem pudesse substituí-los nessas funções, que incluíam ações administrativas e militares. Os prepostos dos donatários eram os capitães-mores ou loco-tenentes que, subordinados ao governador-geral da Bahia, tinham jurisdição para nomear todos os oficiais de Justiça e Fazenda e postos militares e ainda o de ouvidor da comarca. A essa época, nas colônias, porém, esses ouvidores não tinham sequer conhecimento de Direito. Foi só no século XVII, em 1628, ao tempo do domínio dos Habsburgos espanhóis, que saiu o Regimento do ouvidor-geral do Estado do Brasil, que revogava expressamente o privilégio que fora concedido aos capitães-donatários de fazer justiça em suas terras. Depois, em 1669, foi criado o Regimento dos ouvidores-gerais do Rio de Janeiro, que foi seguido pelos ouvidores de outras capitanias. Foi só em 1770 que ouvidores-gerais da capitania de São Paulo passaram a ter regimento próprio. Foi a partir do Regimento de 1669 que a função de ouvidor passou a representar o cargo civil de maior alçada nas possessões do ultramar. Tinha autoridade para, nos casos de crimes praticados por escravos e índios, dar execução à pena de morte sem apelação nem agravo, se assim também entendessem o governador e o provedor da Fazenda – bastava que dois concordassem. Aliás, o ouvidor não poderia ser preso ou suspenso de suas funções por nenhuma autoridade local, fosse o governador e capitão-general, fosse o capitão-mor ou a Câmara. Em 1739, o governador Antonio Caldeira Pimentel mandou prender o ouvidor Francisco Galvão da Fonseca na Fortaleza de Santo Amaro da Barra Grande, na vila de Santos, e foi advertido pelo Conselho Ultramarino. Cabia ao ouvidor também a responsabilidade de zelar pela correta arrecadação dos quintos e combater os gastos públicos excessivos, o que significava fiscalizar a atuação dos vereadores e juízes ordinários, mas sem se imiscuir nas funções da Câmara.

Fortaleza de Santo Amaro da Barra Grande, em Santos: local para onde eram remetidos os presos com penas mais graves


Rivaldo Chinem – Àquela época, as câmaras tinham também atribuições judiciárias?

Adelto Gonçalves – Até a chegada dos primeiros juízes de fora, já depois de 1652, que marca o segundo período do Tribunal da Relação em Salvador, a justiça ordinária era exercida pelas câmaras municipais – foi essa a estrutura que mais tempo durou à época colonial. Na maioria, as vilas tanto no Reino como na América portuguesa e demais colônias mantinham apenas dois juízes – o juiz ordinário e o juiz de órfãos. A responsabilidade pelo processo sempre cabia a um juiz criminal que, nos primeiros tempos, podia ser o juiz ordinário da Câmara, que era iletrado em Direito e julgava de acordo com a tradição e os costumes. Raramente, esse juiz ordinário tinha o auxílio de um advogado formado, embora isso não lhe fosse vedado. É que nas colônias e mesmo nas vilas do Reino, dificilmente, havia alguém formado em Leis. Os juízes de fora foram estabelecidos no Estado do Brasil no último quartel do século XVII exatamente para suprir essa lacuna. Antes disso, a Justiça era compartilhada com ouvidores de capitania que só em casos extremos passavam as questões para o Tribunal da Relação na Bahia ou, em última instância, à Casa da Suplicação, em Lisboa. Na imensa maioria, os processos encerravam-se em primeira instância, ou seja, na câmara municipal. Só mais tarde a estrutura judiciária passou a incluir, além dos juízes ordinários – ou seja, os juízes da terra –, os juízes de fora, os ouvidores-gerais que, mais tarde, seriam chamados ouvidores de comarca, os ouvidores de capitania e os desembargadores do Tribunal da Relação da Bahia. Com a vinda de juízes de fora – todos formados em Leis pela Universidade de Coimbra –, o poder dos juízes ordinários começou a se esvaziar. Além de funções judiciais propriamente ditas, a Justiça tinha atribuições de governo e funções administrativas. Por exemplo, o juiz de fora poderia assumir múltiplas funções, como a de juiz da alfândega em vilas à beira-mar, de juiz de órfãos e ausentes e até de conservador do real contrato do sal.

Rivaldo Chinem – E como foi a atuação dos juízes de fora?

Adelto Gonçalves – A intenção da Coroa era que os juízes de fora, exatamente porque não teriam vínculos anteriores com as principais pessoas da terra em que exerceriam o cargo, seriam mais independentes em seus julgamentos. Na verdade, uma das razões para a Coroa criar o cargo de juiz de fora, ao menos nas vilas de maior importância, foi a necessidade de intervir nas funções administrativas e financeiras das câmaras coloniais com o objetivo de evitar os chamados “descaminhos” e prejuízos para a Fazenda Real. Para evitar que estabelecessem relações de compadrio na colônia, os ouvidores e juízes de fora só poderiam casar depois de autorizados pela Coroa. Mas isso não impediu que muitos magistrados, em diversas ocasiões, empregassem o poder e a influência que exerciam para obter vantagens pessoais, conveniências ou para proteger suas famílias e dependentes. Muitos, com autorização régia, acabaram casando com filhas de famílias de importância social, o que abria a possibilidade de acesso à posse de terras e outros bens. Famílias já estabelecidas na colônia também passaram a enviar seus rebentos para estudar Leis e Cânones em Coimbra. Estes, geralmente, retornavam nomeados para um cargo na estrutura judiciária, já aprovados pelo Desembargo do Paço, depois de feito o exame chamado de leitura de bacharéis. Com a criação do cargo de juiz de fora, foram retirados da esfera dos juízes ordinários os julgados de órfãos, defuntos e ausentes, capelas e resíduos. A princípio, tanto os juízes de fora como, mais acima, o ouvidor viriam a atrapalhar os arranjos provincianos.

Rivaldo Chinem – A que conclusões podemos chegar depois de suas pesquisas?

Adelto Gonçalves – Uma delas é que o modelo weberiano de patrimonialismo, que ainda resiste não só nas regiões mais arcaicas do Brasil, é apenas continuação de um sistema social que veio de Portugal e que define a organização do Estado como se fosse propriedade familiar, de uma casta ou de uma oligarquia. Nesse sentido, esses magistrados atuaram quase sempre em defesa de privilégios oligárquicos, agindo com o rigor da lei sempre contra os desvalidos, escravos, indígenas, miscigenados ou brancos pobres. Quando tinham de julgar pessoas de maior importância econômica e social, não encontravam uma bússola que pudessem seguir: o que aparentemente constituía um ato ilegal e possível alvo de repressão, dependendo de quem o praticasse, seria permitido por razões de Estado. Afinal, os “descaminhos” constituíam fenômeno endêmico, inerente ao sistema dos exclusivos, monopólios e proibições.

Rivaldo Chinem – Era um sistema pelo qual ninguém passava imune, inclusive aqueles aos quais cabia a tarefa de reprimir os “descaminhos”?

Adelto Gonçalves – Exatamente. Não raro, a corrupção partia daqueles que estavam encarregados de fiscalizar os “descaminhos”, que aceitavam suborno para fazer vistas grossas diante de irregularidades. Ou se valiam de seus altos cargos para favorecer a corrupção. Essa prática é tão antiga quanto o Brasil. A própria debilidade do Estado permitia que somente pessoas das classes mais baixas fossem perseguidas pela prática de atos ilegais. Se não tinham dinheiro para contratar rábulas ou para pagar as penas pecuniárias, mofavam anos na prisão. As penas variavam de acordo com a qualidade da vítima e dos réus. Até porque não havia o pressuposto de que todos os homens seriam iguais. Nobres, clérigos, grandes comerciantes e governantes, se não estavam explicitamente acima das leis, dificilmente, seriam passíveis de punição. Aliás, a corrupção vinha de cima, pois foram raros os capitães-generais que voltaram a Portugal com as mãos limpas e vazias. Se o (mau) exemplo vinha de cima, deixar de recolher tributos seria permitido se a pessoa envolvida tivesse certo status, ou seja, uma folha de serviços prestados à Coroa ou mesmo ascendentes de prestígio. O próprio ministro da Marinha e Domínios Ultramarinos, d. Rodrigo de Sousa Coutinho, ao final do século XVIII, reconheceu que a magistratura na América portuguesa seria, além de numerosa, extremamente venal e dependente não só dos governadores como de comerciantes e arrematantes de contratos. Essa mentalidade ficou arraigada no processo de apropriação de terras na América portuguesa e persiste até hoje: os posseiros ricos foram identificados como desbravadores e tomados como cúmplices do enriquecimento das capitanias e, depois, províncias, o que seria resultado de sua proximidade com o Estado e da sustentação que davam ao governo em troca de favores camuflados ou não. Já os lavradores que ousassem tomar um palmo de terra eram apontados como “invasores” ou “intrusos”. Como mostram os documentos, os juízes quase sempre usaram o Direito para interpretar cartas de doação, revogação de sesmarias, sucessões e desmembramentos de terras de acordo com os interesses dos poderosos locais.  

Rivaldo Chinem – E qual a participação das câmaras nesse contexto?

Adelto Gonçalves – As câmaras, a partir da presença mais decisiva da magistratura letrada, reduziram-se a uma dependência auxiliar dos que governavam a capitania, autônoma apenas para a execução de pequenas obras, como o conserto de pontes ou caminhos. Serviriam, porém, como instrumento político para a viabilização de negócios tutelados pelo governo, que sempre eram assumidos por clãs locais. Seriam, portanto, o embrião que daria origem aos oligarcas que passariam a mandar nas capitanias e nas províncias e, mais tarde, já à época da República, nos estados.

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Rivaldo Chinem foi repórter na Folha de S. Paulo, revista Veja e de O Estado de S. Paulo, tendo colaborado na imprensa alternativa (Opinião, Movimento, Versus e Repórter). É autor de Terror Policial, com Tim Lopes (Global); Sentença: padres e posseiros do Araguaia” (Paz e Terra); Imprensa alternativa: jornalismo de oposição e inovação (Ática); Marketing e divulgação da pequena empresa (Senac); Assessoria de imprensa – como fazer (Summus); e Jornalismo de guerrilha: a imprensa alternativa brasileira da censura à Internet (Disal), entre outros.

Foto: Luiz Nascimento
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Direito e Justiça em Terras d´El Rei na São Paulo Colonial, de Adelto Gonçalves. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 364 págs., R$ 55,00, 2015. Site: www.imprensaoficial.com.br


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