“A
corrupção é prática tão antiga quanto o Brasil”
Autor
das biografias dos poetas Gonzaga e Bocage, o pesquisador Adelto Gonçalves
desvenda a estrutura judiciária na capitania de São Paulo (1709-1822) em livro
que ajuda a entender as relações entre Estado e Justiça e o movimento político
que o País vive hoje
Adelto Gonçalves: “Para entender o Brasil de hoje, é preciso conhecer o de ontem: as penas variavam de acordo com a qualidade das vítimas e dos réus” |
Adelto Gonçalves, 63 anos, é
jornalista desde 1972, com passagens pelos jornais A Tribuna, de Santos, O
Estado de S. Paulo e Folha da Tarde e
pela Editora Abril. É doutor em
Letras na área de Literatura Portuguesa e mestre em Língua Espanhola e
Literaturas Espanhola e Hispano-americana pela Universidade de São Paulo (USP).
Seu trabalho de doutorado Gonzaga, um
poeta do Iluminismo, sobre Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), foi publicado
em 1999 pela Editora Nova Fronteira, do Rio de Janeiro.
Em 1999, com bolsa de
pós-doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp),
desenvolveu em Portugal projeto sobre a vida e a obra do poeta Manuel Maria de
Barbosa du Bocage (1765-1805), publicado em 2003 pela Editorial Caminho, de
Lisboa, sob o título Bocage – o perfil
perdido.
Foi professor titular da
Universidade Paulista (Unip), nos cursos de Direito e Pedagogia, e da
Universidade Santa Cecília (Unisanta), no curso de Jornalismo, em Santos. É
autor também de Mariela Morta (Ourinhos,
Complemento, 1977), Os vira-latas da
madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio, 1981; Taubaté-SP, Editora Letra
Selvagem, 2015), Barcelona brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2003), Fernando Pessoa: a voz de Deus (Santos, Editora da Unisanta, 1997)
e Tomás Antônio Gonzaga (Rio de
Janeiro/São Paulo, Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de
São Paulo, 2012).
Com bolsa de pesquisa da Unip,
desenvolveu em 2010-2011 o projeto
Direito e Justiça em Terras d´El Rei na São Paulo Colonial (1709-1822),
publicado em julho de 2015 pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Foi
para discutir aspectos desta sua última obra que concedeu a seguinte
entrevista:
Rivaldo
Chinem – Em linhas gerais, de que trata o seu novo livro?
Adelto
Gonçalves – É um trabalho de investigação sobre a atuação de
ouvidores, juízes de fora, corregedores, provedores, juízes ordinários e
vereadores à época da capitania de São Paulo (1709-1822), por meio da descrição
dos casos mais significativos, que procura fazer um diagnóstico da estrutura judiciária.
Por seu caráter inédito e recorte específico, espero que seja uma contribuição
aos estudos da aplicação do Direito e da Justiça na São Paulo colonial e
constitua também uma referência nos planos de ensino da cadeira de História do
Direito no País. O trabalho publica pela primeira vez a relação completa dos
governadores e capitães-generais da capitania no período que abarca, corrigindo
erros de listas anteriores. E traz também uma inédita relação dos
ouvidores-gerais da comarca de São Paulo
Rivaldo
Chinem – Não sendo da área de Direito, o que o levou a optar um tema tão
complexo?
Adelto
Gonçalves – Como pesquisador da área de Letras e História, eu já
tinha familiaridade com o período e a documentação do século XVIII, já que sou
autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo,
biografia do poeta Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), ouvidor em Vila Rica de
1782 a 1788, filho de um magistrado que chegou à Casa da Suplicação em Lisboa,
e de Bocage: o perfil perdido, meu
primeiro trabalho de pós-doutorado. É de se lembrar que o pai de Bocage fez
carreira no Judiciário e foi ouvidor em Beja, antes de cair em desgraça
política, o que levou a Coroa a confiscar a propriedade que sua família tinha
em Setúbal. Em razão disso, eu já havia tido acesso à documentação produzida por
esses ouvidores e outros funcionários do poder judiciário. Ao estudar a
documentação da época relativa à capitania de São Paulo, que consta do Arquivo
Histórico Ultramarino (AHU), de Lisboa, e do Arquivo do Estado de São Paulo
(Aesp), procurei estabelecer as atribuições de cada um daqueles altos
funcionários do Judiciário. Ao analisar a documentação, foi possível também
estabelecer algumas redes de poder que lutavam pela obtenção de terras, direito
de exploração de larvas, títulos de nobreza, ofícios e privilégios comerciais.
Rivaldo
Chinem – Como era a aplicação da Justiça nos primeiros tempos?
Adelto
Gonçalves – No século XVI, a aplicação da Justiça pertencia aos
donatários das capitanias, que muitas vezes residiam no Reino ou estavam em
outras partes do Império, o que os levava a nomear quem pudesse substituí-los
nessas funções, que incluíam ações administrativas e militares. Os prepostos
dos donatários eram os capitães-mores ou loco-tenentes que, subordinados ao
governador-geral da Bahia, tinham jurisdição para nomear todos os oficiais de
Justiça e Fazenda e postos militares e ainda o de ouvidor da comarca. A essa
época, nas colônias, porém, esses ouvidores não tinham sequer conhecimento de
Direito. Foi só no século XVII, em 1628, ao tempo do domínio dos Habsburgos
espanhóis, que saiu o Regimento do
ouvidor-geral do Estado do Brasil, que revogava expressamente o privilégio
que fora concedido aos capitães-donatários de fazer justiça em suas terras.
Depois, em 1669, foi criado o Regimento
dos ouvidores-gerais do Rio de
Janeiro, que foi seguido pelos ouvidores de outras capitanias. Foi só em
1770 que ouvidores-gerais da capitania de São Paulo passaram a ter regimento
próprio. Foi a partir do Regimento de
1669 que a função de ouvidor passou a representar o cargo civil de maior alçada
nas possessões do ultramar. Tinha autoridade para, nos casos de crimes
praticados por escravos e índios, dar execução à pena de morte sem apelação nem
agravo, se assim também entendessem o governador e o provedor da Fazenda –
bastava que dois concordassem. Aliás, o ouvidor não poderia ser preso ou
suspenso de suas funções por nenhuma autoridade local, fosse o governador e
capitão-general, fosse o capitão-mor ou a Câmara. Em 1739, o governador Antonio
Caldeira Pimentel mandou prender o ouvidor Francisco Galvão da Fonseca na
Fortaleza de Santo Amaro da Barra Grande, na vila de Santos, e foi advertido
pelo Conselho Ultramarino. Cabia ao ouvidor também a responsabilidade de zelar
pela correta arrecadação dos quintos e combater os gastos públicos excessivos,
o que significava fiscalizar a atuação dos vereadores e juízes ordinários, mas
sem se imiscuir nas funções da Câmara.
Fortaleza de Santo Amaro da Barra Grande, em Santos: local para onde eram remetidos os presos com penas mais graves |
Rivaldo
Chinem – Àquela época, as câmaras tinham também atribuições judiciárias?
Adelto
Gonçalves – Até a chegada dos primeiros juízes de fora, já depois de
1652, que marca o segundo período do Tribunal da Relação em Salvador, a justiça
ordinária era exercida pelas câmaras municipais – foi essa a estrutura que mais
tempo durou à época colonial. Na maioria, as vilas tanto no Reino como na
América portuguesa e demais colônias mantinham apenas dois juízes – o juiz
ordinário e o juiz de órfãos. A responsabilidade pelo processo sempre cabia a
um juiz criminal que, nos primeiros tempos, podia ser o juiz ordinário da
Câmara, que era iletrado em Direito e julgava de acordo com a tradição e os
costumes. Raramente, esse juiz ordinário tinha o auxílio de um advogado
formado, embora isso não lhe fosse vedado. É que nas colônias e mesmo nas vilas
do Reino, dificilmente, havia alguém formado em Leis. Os juízes de fora foram
estabelecidos no Estado do Brasil no último quartel do século XVII exatamente
para suprir essa lacuna. Antes disso, a Justiça era compartilhada com ouvidores
de capitania que só em casos extremos passavam as questões para o Tribunal da
Relação na Bahia ou, em última instância, à Casa da Suplicação, em Lisboa. Na
imensa maioria, os processos encerravam-se em primeira instância, ou seja, na
câmara municipal. Só mais tarde a estrutura judiciária passou a incluir, além
dos juízes ordinários – ou seja, os juízes da terra –, os juízes de fora, os
ouvidores-gerais que, mais tarde, seriam chamados ouvidores de comarca, os
ouvidores de capitania e os desembargadores do Tribunal da Relação da Bahia.
Com a vinda de juízes de fora – todos formados em Leis pela Universidade de
Coimbra –, o poder dos juízes ordinários começou a se esvaziar. Além de funções
judiciais propriamente ditas, a Justiça tinha atribuições de governo e funções
administrativas. Por exemplo, o juiz de fora poderia assumir múltiplas funções,
como a de juiz da alfândega em vilas à beira-mar, de juiz de órfãos e ausentes
e até de conservador do real contrato do sal.
Rivaldo
Chinem – E como foi a atuação dos juízes de fora?
Adelto
Gonçalves – A intenção da Coroa era que os juízes de fora,
exatamente porque não teriam vínculos anteriores com as principais pessoas da
terra em que exerceriam o cargo, seriam mais independentes em seus julgamentos.
Na verdade, uma das razões para a Coroa criar o cargo de juiz de fora, ao menos
nas vilas de maior importância, foi a necessidade de intervir nas funções
administrativas e financeiras das câmaras coloniais com o objetivo de evitar os
chamados “descaminhos” e prejuízos para a Fazenda Real. Para evitar que
estabelecessem relações de compadrio na colônia, os ouvidores e juízes de fora
só poderiam casar depois de autorizados pela Coroa. Mas isso não impediu que
muitos magistrados, em diversas ocasiões, empregassem o poder e a influência
que exerciam para obter vantagens pessoais, conveniências ou para proteger suas
famílias e dependentes. Muitos, com autorização régia, acabaram casando com
filhas de famílias de importância social, o que abria a possibilidade de acesso
à posse de terras e outros bens. Famílias já estabelecidas na colônia também passaram
a enviar seus rebentos para estudar Leis e Cânones em Coimbra. Estes,
geralmente, retornavam nomeados para um cargo na estrutura judiciária, já
aprovados pelo Desembargo do Paço, depois de feito o exame chamado de leitura de bacharéis. Com a criação do
cargo de juiz de fora, foram retirados da esfera dos juízes ordinários os
julgados de órfãos, defuntos e ausentes, capelas e resíduos. A princípio, tanto
os juízes de fora como, mais acima, o ouvidor viriam a atrapalhar os arranjos
provincianos.
Rivaldo
Chinem – A que conclusões podemos chegar depois de suas pesquisas?
Adelto
Gonçalves – Uma delas é que o modelo weberiano de patrimonialismo,
que ainda resiste não só nas regiões mais arcaicas do Brasil, é apenas
continuação de um sistema social que veio de Portugal e que define a
organização do Estado como se fosse propriedade familiar, de uma casta ou de
uma oligarquia. Nesse sentido, esses magistrados atuaram quase sempre em defesa
de privilégios oligárquicos, agindo com o rigor da lei sempre contra os desvalidos,
escravos, indígenas, miscigenados ou brancos pobres. Quando tinham de julgar
pessoas de maior importância econômica e social, não encontravam uma bússola
que pudessem seguir: o que aparentemente constituía um ato ilegal e possível
alvo de repressão, dependendo de quem o praticasse, seria permitido por razões
de Estado. Afinal, os “descaminhos” constituíam fenômeno endêmico, inerente ao
sistema dos exclusivos, monopólios e proibições.
Rivaldo
Chinem – Era um sistema pelo qual ninguém passava imune, inclusive aqueles aos
quais cabia a tarefa de reprimir os “descaminhos”?
Adelto
Gonçalves – Exatamente. Não raro, a corrupção partia daqueles que
estavam encarregados de fiscalizar os “descaminhos”, que aceitavam suborno para
fazer vistas grossas diante de irregularidades. Ou se valiam de seus altos
cargos para favorecer a corrupção. Essa prática é tão antiga quanto o Brasil. A
própria debilidade do Estado permitia que somente pessoas das classes mais
baixas fossem perseguidas pela prática de atos ilegais. Se não tinham dinheiro
para contratar rábulas ou para pagar as penas pecuniárias, mofavam anos na
prisão. As penas variavam de acordo com a qualidade da vítima e dos réus. Até
porque não havia o pressuposto de que todos os homens seriam iguais. Nobres,
clérigos, grandes comerciantes e governantes, se não estavam explicitamente
acima das leis, dificilmente, seriam passíveis de punição. Aliás, a corrupção
vinha de cima, pois foram raros os capitães-generais que voltaram a Portugal
com as mãos limpas e vazias. Se o (mau) exemplo vinha de cima, deixar de
recolher tributos seria permitido se a pessoa envolvida tivesse certo status, ou seja, uma folha de serviços
prestados à Coroa ou mesmo ascendentes de prestígio. O próprio ministro da
Marinha e Domínios Ultramarinos, d. Rodrigo de Sousa Coutinho, ao final do
século XVIII, reconheceu que a magistratura na América portuguesa seria, além
de numerosa, extremamente venal e dependente não só dos governadores como de
comerciantes e arrematantes de contratos. Essa mentalidade ficou arraigada no
processo de apropriação de terras na América portuguesa e persiste até hoje: os
posseiros ricos foram identificados como desbravadores e tomados como cúmplices
do enriquecimento das capitanias e, depois, províncias, o que seria resultado
de sua proximidade com o Estado e da sustentação que davam ao governo em troca
de favores camuflados ou não. Já os lavradores que ousassem tomar um palmo de
terra eram apontados como “invasores” ou “intrusos”. Como mostram os
documentos, os juízes quase sempre usaram o Direito para interpretar cartas de
doação, revogação de sesmarias, sucessões e desmembramentos de terras de acordo
com os interesses dos poderosos locais.
Rivaldo
Chinem – E qual a participação das câmaras nesse contexto?
Adelto
Gonçalves – As câmaras, a partir da presença mais decisiva da
magistratura letrada, reduziram-se a uma dependência auxiliar dos que
governavam a capitania, autônoma apenas para a execução de pequenas obras, como
o conserto de pontes ou caminhos. Serviriam, porém, como instrumento político
para a viabilização de negócios tutelados pelo governo, que sempre eram
assumidos por clãs locais. Seriam, portanto, o embrião que daria origem aos
oligarcas que passariam a mandar nas capitanias e nas províncias e, mais tarde,
já à época da República, nos estados.
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Rivaldo
Chinem foi repórter na Folha de S. Paulo, revista Veja e de O
Estado de S. Paulo, tendo colaborado na imprensa alternativa (Opinião,
Movimento, Versus e Repórter). É autor de Terror Policial, com Tim Lopes
(Global); Sentença: padres e posseiros do Araguaia” (Paz e Terra); Imprensa
alternativa: jornalismo de oposição e inovação (Ática); Marketing e divulgação
da pequena empresa (Senac); Assessoria de imprensa – como fazer (Summus); e
Jornalismo de guerrilha: a imprensa alternativa brasileira da censura à
Internet (Disal), entre outros.
Foto: Luiz Nascimento |
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Direito
e Justiça em Terras d´El Rei na São Paulo Colonial, de
Adelto Gonçalves. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 364
págs., R$ 55,00, 2015. Site: www.imprensaoficial.com.br
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