I
Adelto Gonçalves |
Para quem reluta em aceitar a
microficção como gênero literário, o último número da revista Forma Breve, nº 11, da Universidade de
Aveiro, de dezembro de 2014, oferece cinco ensaios que ajudam a jorrar luz
sobre o assunto, até porque esse é um tema ainda recente na literatura portuguesa.
É de se lembrar que a Primeira Antologia
de Micro-Ficção Portuguesa, de Rui Costa e André Sebastião, organizadores
(Vila Nova de Gaia, Editora Exodus), e única até agora, foi editada em 2008.
Seja como for, como observou Henrique Fialho no prefácio que fez para esta
antologia, “ninguém pode negar que, sob a capa de poema, poema em prosa,
aforismo, ou o que quer que seja, a micronarrativa vai marcando presença na
literatura portuguesa”.
Já Rui Costa, co-organizador
daquela antologia pioneira, afirma que aquilo que mais o “atrai na microficção
é a sua extrema aptidão para a promiscuidade”. E acrescenta: “A micro-ficção
não é um gênero literário, é a riqueza da impossibilidade de o ser. Confunde os
gêneros e deixa-nos (bem) perdidos no caminho para qualquer definição”. Além
disso, como se trata de textos curtos e de leitura rápida, a microficção ganhou
um fôlego especial nestes tempos de Internet e profusão de blogs dedicados à literatura.
Um dos ensaios mais fecundos
sobre o assunto que se encontra no último número de revista Forma Breve é “Eros y Afrodite en la
minificción”, de Dina Grijalva Monteverde, da Universidad Autônoma de Sinaloa,
México, em que a autora diz que foi o escritor mexicano Edmundo Valdés (1915-1994)
quem chamou de minificção este tipo de texto breve, que admite outros nomes
como miniconto, microrrelato, conto pigmeu, conto liliputense, microconto,
relato vertiginoso, conto minúsculo, entre outros. Nesses textos de tamanho
reduzido, observa a estudiosa, é possível encontrar-se todas as paixões que inquietam
o ser humano: amor, ódio, inveja, ciúme, desejo. Ou seja, é a mesma variedade
que se pode encontrar em outros gêneros.
Em seu ensaio, Dina Grijalva
Monteverde, porém, prefere restringir-se às incursões que Eros tem feito em
miniaturas textuais escritas por autores da Argentina e do Chile. E destaca o
trabalho de dois deles; o argentino Orlando Van Bredam (1952) e o chileno Max
Valdés Avilés (1963). De tão breves que são – e para que o leitor neófito tenha
uma ideia do que sejam esses relatos curtos –, pode-se repeti-los aqui:
En el ascensor, de Orlando Van Bredam:
Mientras bajan, él imagina lo que haría con ella si ella
quisiera. Ella se imagina lo que él
imagina y lo mira. Él ve en los ojos de ella lo que ha imaginado y se llena de
vergüenza. Ella se lamenta, otra vez, de la eterna indecisión de ambos.
El amor en tiempos de postmodernidad, de Max Valdés Avilés:
Un hombre, una mujer, tocan la pantalla simultáneamente,
uno a cada lado del hemisferio, esa nueva forma de amar y extasiarse, hasta la
soledad.
II
Lendo o ensaio “Linguagem e
arte de sugestão: Os contos de Ukamba
Kimba”, de Lola Geraldes Xavier, da Escola Superior de Educação de
Coimbra/Centro de Literatura Portuguesa, fica-se sabendo que João-Maria
Vilanova, poeta angolano da geração de 70, pseudônimo literário de João
Guilherme Fernandes de Freitas (1933-2005), foi um dos maiores cultores em Língua Portuguesa
desse gênero (ou subgênero) que à época nem essa classificação carregava. Em Os contos de Ukamba Kimba (Luanda,
Editora Vila Nova de Cerveira, 2012), o leitor encontra 24 narrativas muito
curtas, que, como observa a estudiosa, mudam de forma se o narrador é português
ou angolano.
“Isso significa o uso de uma
linguagem que tenta aproximar-se do coloquial, utilizada por uma camada da
população que tem acesso ao português apenas falado, misturando-o com termos de
quimbundo, que o autor esclarece em alguns contos com glossário. Encontram-se, aqui
e ali, as marcas de uma linguagem socioletal, representativa de grupos
menorizados, negros, como tentativa de criação de uma literatura “descolonizada”,
com o mínimo de marcas do Português europeu”, diz Lola Geraldes Xavier.
Explica ela que, embora a
linguagem usada por Vilanova se enquadre majoritariamente na variante do
Português falado em Angola, o estilo lingüístico é original e próprio, “é
reinvenção da realidade, é a linguagem que a memória de João de Freitas recria
de uma mundividência angolana que vivera décadas antes de dar por encerrados
alguns dos seus contos (outros não terá finalizado)”.
III
Em “Micro fiction and short ficction: surrounded by scaffolding on all
sides” (Microficção e ficção curta rodeadas por andaimes), Erik Van Achter,
da CLP/Coimbra-KULeuven (Bélgica), diz que tanto o conto literário moderno
quanto a microficção são produtos duma
época diferente e consequentemente de circunstâncias diferentes. “Contrariamente
ao que acontece com a short story”,
diz Van Achter, “a micro fiction não tem encontrado grandes opositores nem críticas
severas”. Entre estas duas categorias de micronarrativas, acrescenta, existe
ainda a vignette.
Ou seja, vinheta, em bom
português, pode ser entendida como um atalho ou cena curta (na linguagem
teatral). Ou ainda, em diagramação de jornal, um minitítulo que marca um tema. Van
Achter questiona qual o lugar deste gênero no concerto dos subgêneros da
narrativa breve. O articulista mesmo procura responder lembrando que, se o
conto ocupou lugar de destaque na literatura praticada nos séculos 19 e 20, a microficção vale-se em
sua divulgação da era digital em curso neste século 21.
Do mesmo modo, Paulo Antonio
Gatica Cote, da Universidad de Salamanca, no ensaio “Nuevas tradiciones
electrónicas y viejas rupturas de vanguardia en la tuiteratura mexicana”, diz
que as práticas artístico-literárias na Internet têm dado cumprimento, além da
consolidação de uma estética fragmentária, ao grande projeto vanguardista de
desmaterialização da obra de arte. “A realidade textual do objeto-livro tem
dado lugar a novas realizações eletrônicas que respondem a uma lógica distinta
da “posse” da obra-documento: a lógica do acesso ou distribuição praticada por
grande parte dos criadores nas redes sociais”, acrescenta.
Em seu trabalho, Gatica Cote
procura aprofundar-se na tuiteratura mexicana, ou seja, na literatura produzida
e compartilhada no Twitter no México em língua castelhana, por meio da recolha
das manifestações literárias que considera as mais interessantes.
IV
Ainda dentro do tema
microficção, o ensaio “João Gilberto Noll, leitor de Clarice Lispector”, de
Luiz Gonzaga Marchezan, da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita
Filho (Unesp), campus da Araraquara, analisa o microconto “Afã”, com 129
palavras, publicado no jornal Folha de S.
Paulo em 6 de agosto de 2001 e que faz parte do livro Mínimos, múltiplos, comuns (São Paulo, Editora Francis, 2003), do autor gaúcho, que reúne outros 337 contos
ultracurtos e obteve o Prêmio ABL (Academia Brasileira de Letras) de Ficção de
2004. Nesse conto, João Gilberto Noll faz uma alusão a uma passagem do conto “O
búfalo”, de Clarice Lispector (1920-1977), mas que só percebe quem a conhece, o
que constitui um hipotexto, como bem explica o ensaísta. E que pode ser vista
também como intertextualidade. Nunca como plágio. Adelto Gonçalves – Brasil
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Forma Breve, Revista de
Literatura. Microficção, nº 11, dezembro de 2014. Departamento de
Línguas e Cultura da Universidade de Aveiro. E-mail: antonio@ua.pt
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Adelto Gonçalves é doutor
em Literatura
Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de
Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, LetraSelvagem, 2015), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona
brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002), Bocage – o perfil perdido
(Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio
Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2012), e Direito e Justiça em Terras D ´El-Rei na São
Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), entre
outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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