A conceituada revista Granta dedicou, recentemente, um volume
(Portugal, vol.4) a África, à sua cultura e à sua literatura. Como seria
previsível, as literaturas de língua portuguesa mereceram especial destaque na
edição. Entre as várias contribuições, o volume traz uma troca de
correspondência entre José Eduardo Agualusa e Mia Couto, a que deram o título
de “Cartaria”. Numa das cartas, José Eduardo Agualusa chama a atenção para a
escritora Taile Selasi, filha de uma nigeriana e de um ganês, nascida em Londres,
em 1979, criada no Massachussets, nos Estados Unidos, e que, pelo historial de
vida e pelo teor da sua narrativa, não deixa de ser uma escritora africana, só
que filha da diáspora. Exercita uma escrita pós-nacionalista, como eu próprio,
a dada altura (Venâncio 2005), considerei ser a escrita de Agualusa, por nela
descortinar referentes que já não tinham a ver com preocupações de ordem
nacionalista, comprometidos com a edificação da nação. Bem, o volume inclui um
longo conto de Taile Selasi, intitulado “A
vida sexual das raparigas africanas”, publicado originalmente na Granta 115 (verão de 2011), traduzido do
inglês, para a edição portuguesa, por Madalena Alfaia. A autora descreve o
despertar sexual de uma adolescente em ambientes urbanos de África; primeiro na
Nigéria, mais precisamente em Lagos, para onde a mãe, ganesa, emigrara e
conhecera o seu pai e, depois, no Gana, em casa do tio materno, junto de uma
família de posses, cosmopolita e intelectual. Estes últimos atributos não
bastaram, porém, para apagar a mágoa calada da tia, traída pelo marido, porque
na “peculiar hierarquia dos lares africanos – como escreve a autora –, o único
patamar mais baixo do que um filho sem mãe é uma mãe sem filho” (p.159), que
era a situação da tia. É a tradição no seu melhor que está aqui em causa, a
tradição que gera valores que resistem e amiúde emergem mesmo nos ambientes
mais sofisticados e ocidentalizados. Evidentemente que é possível descortinar
no conto uma postura crítica em relação a estes comportamentos e aos valores
que os prescrevem ou consentem, ao que não será alheia a história de vida da
própria autora, formada em Estudos Americanos pela reputada Universidade de
Yale e em Relações Internacionais pela não menos considerada Universidade de
Oxford.
A sua situação de
“emigrante” acaba por desempenhar um papel importante na narrativa. Olhando de
fora as duas sociedades, a de origem e as de destino, numa postura que os
antropólogos designam por ética (o contrário seria émica), valoriza
esteticamente o romance e responde, nessa medida, à suposição de José Eduardo
Agualusa acerca da renovação das literaturas africanas a partir de experiências
de escrita exteriores ao continente.
O percurso e a experiência
de Amilca Ismael não é diferente. Oriunda de Moçambique, torna-se, já na
Itália, enquanto imigrante (certamente com muito sacrifício!), técnica social e
de saúde. Trabalha atualmente num lar de terceira idade.
Amilca Ismael não é
propriamente uma desconhecida no mundo das letras que se exprime em língua
portuguesa, conquanto escreva em italiano. O seu primeiro romance, La casa dei ricordi (A casa de recordações, Maputo 2008) foi
editado em Moçambique, pela editora Ndjira. Il
raconto di Nádia (A história de Nádia)
será, em breve, igualmente editado em português.
Effimera
libertà (Efémera liberdade,
Lisboa: Labirinto das Letras), o romance consagrado nesta crónica, escrito
inicialmente em língua italiana, traduzido para a língua portuguesa por João
Manuel Peres de Seixas e pela própria autora, é uma narrativa ímpar. É-o não
tanto pela história, em si, mas pela maneira como a autora a relata. É na mesa
de operações, num estado de semiconsciência, que Ruth, o nome da jovem heroína,
passa em recordação o seu passado, num artifício estilístico conseguido,
inovador e empolgante. Ruth acaba por morrer.
O romance denuncia, como,
aliás, já havia acontecido no conto de Selasi, a “mercadorização” da
sexualidade feminina. Não é em vão que utilizo o termo ou conceito. Faço-o
inspirado em Marx e nos autores marxistas contemporâneos, tais como Theodor
Adorno, Ernst Bloch ou Jürgen Habermas, que, a exemplo daquele, apontaram o
lado pernicioso da modernidade e do capitalismo, por terem os mesmos conduzido
à alienação da pessoa humana enquanto tal. E, na verdade, em ambas as autoras,
o sexo feminino é igual a mercadoria; é-o tanto em ambientes empobrecidos da
África, como em ambientes mais sofisticados da Itália, junto de circuitos que
praticam o comércio e a prostituição “fina” de mulheres oriundas de ambientes
pobres e subdesenvolvidos. A história, em si, tem a ver com a entrega (venda?)
de uma jovem nigeriana por um pai autoritário e machista a um suposto protetor
italiano, que a levaria para a Itália para que pudesse prosseguir os estudos.
Não é propriamente o que acontece. A jovem cai num circuito de prostituição e
acaba por morrer nas mãos de um dos seus abusadores, que por sinal era médico,
com uma hemorragia, numa intervenção cirúrgica destinada à interrupção da sua
gravidez.
A história de Ruth é, no
fim, a história de muitas outras raparigas por esse mundo fora; formas de
escravatura que subsistem num mundo que, sendo mais global na aproximação de
culturas e povos, permanece, paradoxalmente, desumano e desatento em relação ao
sofrimento do (mais) próximo.
A este respeito, o romance
traz, num propósito de quase militância, um extra-texto elucidativo. É dedicado
a Laura Prati, sindaca (autarca comunal) de Cardano al Campo (Lombardia, norte
da Itália), assassinada pelo trabalho desenvolvido, segundo Amilca Ismael, em
prol de raparigas com a trajetória e o destino de Ruth, a personagem principal
do romance. Após a dedicatória, a título de complemento, segue-se uma carta,
sentida e bem escrita, do filho de Laura Prati, Massimo Poliseno, que, na
altura do assassinato, tinha 22 anos de idade.
O despertar para a
sexualidade enquanto processo narrado na primeira pessoa é outra vertente comum
aos dois textos, que não se confinam aos contextos africanos, tais como estes
foram descritos e seguidos aquando da vigência do paradigma nacionalista.
Inscrevem-se, em vez disso, no que se poderia designar por literatura universal
(que é diferente de literatura pós-colonial, lusófona ou anglófona!). Os temas
que tratam são temas de toda a humanidade. A pertença a África das personagens
e das narradoras em apreço não é essencial à dinâmica (forma-conteúdo) dos
textos, é apenas acessório. E aqui reside, concordando - pelo menos em parte -
com Agualusa [e Mia Couto], sobre a influência do fenómeno migratório ou de
exílio na renovação e na afirmação das literaturas africanas em termos
internacionais. JCarlos Venâncio –
Angola in “O Chá – Mensário Angolano de Cultura”
José
Carlos Venâncio - jcvenancio@sapo.pt
Bom dia. Muito grato fico, como editor, e como natural de Malanje, pela menção a este livro. Estamos a trabalhar na divulgação de uma outra obra de Amilca e com a maior honra. Cumprimentos cordiais
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