Das línguas africanas ao português brasileiro
Do século XVI ao século XIX, o tráfico
transatlântico trouxe para o Brasil 4 a 5 milhões de falantes africanos
extraídos de duas regiões subsaarianas : a região banto, situada ao longo da
extensão sul da linha do equador, e a região oeste-africana ou sudanesa, que
abrange territórios que vão do Senegal à Nigéria.
A região banto compreende um grupo de 500
línguas muito semelhantes, que são faladas na África sub-equatorial. Entre
elas, as de maior número de falantes no Brasil foram três línguas angolanas:
quicongo, também falada no Congo, quimbundo e umbundo. Das línguas
oeste-africanas ou sudanesas, seus principais representantes no Brasil foram os
povos do grupo ewe-fon provenientes de Gana, Togo e Benim, apelidados pelo
tráfico de minas ou jejes, e os iorubás da Nigéria e do Reino de Queto (Ketu),
estes últimos na vizinha República do Benim, onde são chamados de nagôs.
No entanto, apesar dessa notável diversidade
de línguas, todas elas têm uma origem comum. Pertencem a uma só grande família
lingüística Níger-Congo (Greenberg 1966). Logo, são todas línguas aparentadas.
Fatos relevantes
Explicar a participação de línguas africanas
na construção da língua portuguesa no Brasil é ter em conta a atuação do
negro-africano como personagem falante no desenrolar dos acontecimentos e
procurar entender os fatos relevantes de ordem sócio-econômica e de natureza
lingüística que favoreceram o avanço consecutivo do componente africano nesse
processo.
Inicialmente, o contingente de negros e
afro-descendentes era superior ao número de portugueses e outros europeus,
durante três séculos consecutivos, num contexto social e territorial cujo
isolamento em que foi mantida a colônia pelo monopólio do comércio externo
brasileiro feito por Portugal até 1808 condicionou um ambiente de vida de
aspecto conservador e de tendência niveladora, mais aberto à aceitação de
aportes culturais mútuos e de interesses comuns. Aqui, merecem destaque a
atuação socializadora da mulher negra na função de mãe-preta no seio da família
colonial, e o processo de socialização lingüística exercido pelos negros
ladinos, aqueles que, aprendendo rudimentos de português, podiam falar a um
número maior de ouvintes, e influenciá-los, resultando daí por adaptarem uma
língua a outra e estimularem a difusão de certos fenômenos lingüísticos entre
os não bilíngües.(Ver Pessoa de Castro 1990).
No século XIX, o processo de urbanização que
se iniciava no Brasil a partir da instalação da família real portuguesa no Rio
de Janeiro e a abertura dos portos em 1808, exigiram a fixação nas cidades da
mão-de-obra escrava recém-trazida da África, numa época em que a maioria da
população brasileira era constituída de mestiços e crioulos. Esses, já nascidos
no Brasil, falando português como primeira língua, por conseguinte, mais
desligados de sentimentos nativistas em relação à África e susceptíveis à
adoção e aceitação de padrões europeus então vigentes.
Finalmente, com a extinção do tráfico transatlântico
para o Brasil em 1856 até a abolição oficial da escravatura no país em 1888, o
tráfico interno foi intensificado. Negros escravizados nas plantações do
nordeste foram levados para outras nas regiões do sul e sudeste (depois
ocupadas por europeus e asiáticos) e, em direção oposta, do centro-oeste para
explorar a floresta amazônica onde os povos indígenas são preponderantes. Em
conseqüência, portanto, da amplitude geográfica alcançada por essa distribuição
humana, o elemento negro foi uma presença constante em todas as regiões do
território brasileiro sob regime colonial e escravista.
No entanto, nesse contexto sócio-histórico,
cada língua ou grupo de línguas teve sua influência própria.
Os bantos
A influência banto é muito mais profunda em
razão da antiguidade do povo banto no Brasil, da densidade demográfica e
amplitude geográfica alcançada pela sua distribuição humana em território
brasileiro.
A sua presença foi tão marcante no Brasil no
século XVII que, em 1697, é publicada, em Lisboa, A arte da língua de Angola,
do padre Pedro Dias, a mais antiga gramática de uma língua banto, escrita na
Bahia para uso dos jesuítas, com o objetivo de facilitar a doutrinação dos
25.000 negros angolanos, segundo Antônio Vieira, que se encontravam na cidade
do Salvador sem falar português (Cf. Silva Neto 1963:82).
Os aportes bantos ou bantuismos, ou seja,
palavras africanas que entraram para a língua portuguesa no Brasil, estão
associados ao regime da escravidão (senzala, mucama, bangüê, quilombo),
enquanto a maioria deles está completamente integrada ao sistema lingüístico do
português, formando derivados portugueses a partir de uma mesma raiz banto
(esmolambado, dengoso, sambista, xingamento, mangação, molequeira, caçulinha,
quilombola), o que já demonstra uma antiguidade maior. Em alguns casos, a
palavra banto chega a substituir a palavra de sentido equivalente em português:
caçula por benjamim, corcunda por giba, moringa por bilha, molambo por trapo,
xingar por insultar, cochilar por dormitar, dendê por óleo-de-palma, bunda por
nádegas, marimbondo por vespa, carimbo por sinete, cachaça por aguardente.
Alguns já estão documentados na literatura brasileira do século XVII, a exemplo
dos que se encontram na poesia satírica de Gregório de Matos e Guerra.
(1633-1696).
Os oeste-africanos
Ao encontro dessa gente banto já estabelecida
nos núcleos coloniais em desenvolvimento, é registrada a presença de povos
ewe-fon, cujo contingente foi aumentado em conseqüência da demanda crescente de
mão-de-obra escravizada nas minas de ouro e diamantes, então descobertas em
Minas Gerais, Goiás e Bahia, simultaneamente com a produção de tabaco na região
do Recôncavo baiano.
Sua concentração, no século XVIII foi de tal
ordem em Vila Rica que chegou a ser corrente entre a escravaria local um falar
de base ewe-fon, registrado em 1731/41 por Antônio da Costa Peixoto em A obra
nova da língua geral de mina, só publicada em 1945, em Lisboa. Também Nina
Rodrigues, ao findar do século XIX, teve oportunidade de registrar um pequeno
vocabulário jeje-mace (fon) de que ainda se lembravam alguns dos seus falantes
na cidade do Salvador, assim como de outras quatro línguas oeste-africanas
(acossa, tapa, Gramsci, flane). (Ver Pessoa de Castro 2002).
Ao findar do século XVIII, a cidade do
Salvador começa a receber, em levas numerosas e sucessivas, um contingente de
povos procedentes da Nigéria atual, em conseqüência das guerras interétnicas
que ocorriam na região. Entre eles, a presença nagô-iorubá foi tão
significativa que o termo nagô na Bahia começou a ser usado indiscriminadamente
para designar qualquer indivíduo ou língua de origem africana no Brasil. Nina
Rodrigues mesmo dá notícia de um "dialeto nagô", que era falado pela
população negra e mestiça da cidade do Salvador naquele momento e que ele não
documentou, mas definiu como "uma espécie de patois abastardado do
português e de várias línguas africanas" (cf. Rodrigues 1942::261). Logo,
não se tratava da língua iorubá, como muitos ainda se deixam confundir.
Devido a uma introdução tardia e à numerosa
concentração dos seus falantes na cidade do Salvador, os aportes do iorubá são
mais aparentes, especialmente porque são facilmente identificados pelos
aspectos religiosos de sua cultura e pela popularidade dos seus orixás no
Brasil (Iemanjá, Xangô, Oxum, Oxossi, etc.).
O português do Brasil
Depois de quatro séculos de contato direto e
permanente de falantes africanos com a língua portuguesa no Brasil, esse
processo de interação lingüística, apoiada por fatores favoráveis de ordem
sócio-histórica e cultural, foi provavelmente facilitado pela proximidade
relativa da estrutura lingüística do português europeu antigo e regional com as
línguas negro-africanas que o mestiçaram. Entre essas semelhanças, o sistema de
sete vogais orais (a, e, ê, i, o ê, u) e a estrutura silábica ideal (CV.CV)
(consoante vogal.consoante vogal), onde se observa a conservação do centro
vocálico de cada sílaba e não há sílabas terminadas em consoante. Essa
semelhança estrutural provavelmente precipitou o desenvolvimento interno da língua
portuguesa e possibilitou a continuidade da pronúncia vocalizada do português
antigo na modalidade brasileira (onde as vogais átonas também são
pronunciadas), afastando-a, portanto, do português de Portugal, de pronúncia
muito consonantal, o que dificulta o seu entendimento por parte do ouvinte
brasileiro, fazendo-lhe parecer tratar-se de outra língua que não a portuguesa
(Cf. a pronúncia brasileira *pi.neu, *a.di.vo.ga.do, *su.bi.ma.ri.no em lugar
de pneu, a(d).v(o).ga.do, su(b).m(a).ri.no) (V. Pessoa de Castro 2005) Nesse
processo, o negro banto, pela antiguidade, volume populacional e amplitude
territorial alcançada pela sua presença humana no Brasil colônia, ele, como os
outros, adquiriu o português como segunda língua, tornando-se o principal agente
transformador da língua portuguesa em sua modalidade brasileira e seu difusor
pelo território brasileiro sob regime colonial e escravista. Ainda hoje,
inúmeros dialetos de base banto são falados como línguas especiais por
comunidades negras da zona rural, provavelmente remanescentes de antigos
quilombos em diversas regiões brasileiras (V. Queiroz 1998, Vogt e Fry 1996).
Ao encontro dessa matriz já estabelecida assentaram-se os aportes do ewe-fon e
do iorubá, menos extensos e mais localizados, embora igualmente significativos
para o processo de síntese pluricultural brasileira, sobretudo no domínio da
religião.
Diante dessas evidências, chegamos
necessariamente a uma conclusão compatível com as circunstâncias
extralingüísticas que foram favoráveis a esse processo: o português do Brasil,
naquilo em que ele se afastou do português de Portugal, é, historicamente, o
resultado de um movimento implícito de africanização do português e, em sentido
inverso, de aportuguesamento do africano sobre uma matriz indígena
pré-existente e mais localizada no Brasil. Assim sendo, o português brasileiro
descende de três famílias lingüísticas: a família Indo-Européia que teve origem
entre a Europa e a Ásia, da qual faz parte a língua portuguesa; a família Tupi,
de línguas faladas pelo indígenas brasileiros e que se espalha pela América do
Sul; e, por fim, a família Níger-Congo que teve origem na África subsaariana e
se expandiu por grande parte desse continente. Conseqüentemente, povos
indígenas e povos negros, ambos marcaram profundamente a cultura do colonizador
português que se estabeleceu no Brasil, dando origem à uma nova variação da
língua portuguesa – mestiça, brasileira.
Regiões de concentração do tráfico para o
Brasil
Oeste-africanos:
Ewe-fon (mina-jeje)
1.Gana 2. Togo 3. Benim
Nagô-Iorubá
3. Reino de Queto ( Benim) e 4. Nigéria
Bantos
5. Gabão 6. Congo 7. Congo-Kinshasa 8.Angola
9. Moçambique
Yeda de
Castro – Brasil in “Labjor Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo”
Para aceder ao documento com a bibligrafia clique aqui
Sem comentários:
Enviar um comentário