A construção democrática de
qualquer estado-nação é um processo complexo, onde vários projetos políticos se
confrontam. Independente desde 1975, a história recente de Moçambique é marcada
por múltiplos episódios de violência: a guerra de libertação nacional/colonial,
o conflito com a Rodésia e com a África do Sul do apartheid. Mas foi a guerra
civil que mais marcou (e marca) o tecido social moçambicano. Iniciada pouco
tempo após a independência, as razões deste conflito continuam por apaziguar. E
apesar de um acordo de paz ter sido firmado em 1992, este acordo não trouxe a
tão desejada paz, apenas tréguas e negociações que se arrastam até hoje.
A guerra maltrata corpos e
sentimentos; a guerra destrói as sociedades, física, emocionalmente e
mentalmente. Os conflitos violentos que têm abalado o país têm tido efeitos
devastadores no tecido social, na economia e nas propostas de democratização de
Moçambique. De uma história assumida de luta contra o colonialismo português, o
atual processo de construção nacional, num contexto de grande diversidade
étnico-cultural, tem conhecido (re)visões históricas conflituantes,
potencialmente disruptivas do projeto político nacional.
A história busca dar sentido
às ações humanas. Mas qualquer narrativa histórica gera representações
ambíguas, produzindo violência histórica. No caso moçambicano, embora as
diferenças políticas e económicas subjacentes aos projetos das forças
beligerantes estivessem longe de ser intransponíveis, como os recentes avanços
negociais sugerem, a animosidade e amargura que permeiam a leitura deste
conflito pelos cidadãos ilustra a dificuldade de se alcançar uma solução
política que garanta efetivamente a chegada da paz.
Num outro patamar, uma análise
mais minuciosa destas negociações deixa entrever, nas narrativas dominantes o
controlo masculino na busca de uma solução para o conflito. Um rápido
inventário das caracterizações dos líderes políticos envolvidos nas negociações
apresenta-nos o ‘pai da independência’, o ‘pai da paz’, o ‘pai da democracia’.
A ausência do feminino nos discursos políticos exige de nós uma reflexão sobre
a participação efetiva das mulheres na busca da paz.
Os muitos estudos feitos sobre
o passado recente mostram como a violência colonial e patriarcal andam de mãos
dadas; em Moçambique, na guerra de libertação, as mulheres combatentes foram
construídas como as que ‘alimentam, produzem e mobilizam’ os combatentes. Essa
construção de género da moçambicana em função da maternidade reforçou a visão
patriarcal da nação. E assim as vozes das mulheres sobre a sua experiência de
opressão, violência e resistência permanecem enterradas sob camadas de
silenciamento.
Uma leitura atenta da guerra
civil que marcou Moçambique releva o peso brutal que esta guerra representou
para as mulheres: garantir o sustento da família, suturar laços familiares
estraçalhados, ser o pilar de segurança da família. Em suma, garantir a vida,
mediar a paz nos gestos e ações quotidianas. Mas esta presença gritante parece
desvanecer-se quando chegam as negociações ‘oficiais’ para a paz. Esta
realidade está ligada aos debates sobre a objetividade histórica no Moçambique
contemporâneo. As várias alianças entre perspetivas masculinas e libertadoras
sobre os sentidos das guerras têm gerado narrativa políticas legitimadoras das
lideranças política em conflito, tornando-as categóricas. Esta estratégia está
intimamente associada à glorificação, principalmente dos guerrilheiros homens,
e ao silenciamento da presença de milhares de mulheres que participaram
ativamente destas lutas. Num contexto em que os projetos políticos são
moldados, também, por opções políticas sexistas e geracionais (especialmente as
gerações dos ‘libertadores da pátria’ e dos ‘libertadores da democracia’) as
propostas de uma paz partilhada por todas e todos não se afiguram fáceis.
Mas as histórias silenciadas,
protegidas por memórias subalternas continuam presentes, lembrando que a
narrativa sobre a transição política não foi linear, e não é um património
monolítico, protagonizado por uma só voz política. A história da participação
política de mulheres nas lutas nacionalistas no contexto moçambicano é extensa.
Como também é extensa a lista das personagens que se procurou remover da
história, sem grande sucesso.
A história de Moçambique
integra múltiplas narrativas contraditórias sobre processos políticos e
identitários. As narrativas de luta das mulheres expõem raptos, violações,
ultrajes à dignidade humana, abusos dos direitos humanos cometidos por forças
militares e de segurança. Mas é também uma história de negociações, redes de
solidariedade e de múltiplos episódios de resistência. Estas narrativas revelam
uma variedade de tensões e antagonismos que permearam (e ainda permeiam) a
sociedade moçambicana. Descartar estas memórias é uma forma de manter
silenciamentos. É, sobretudo, insistir numa visão abissal monocórdica e sexista
sobre os factos e acontecimentos, sobre experiências de resistências, sobre
múltiplas racionalidades políticas que compõem o mapa das memórias do que é
Moçambique.
A ausência de uma presença
ativa política das mulheres na busca de uma solução digna que promova a
liberdade e a dignidade evidencia a herança de um conflito mais amplo que ainda
precisa de ser tratado em toda a sua complexidade. Esta realidade ajuda a
explicar porque juntas, mulheres jovens e não tão jovens insistem que a luta
continua, um sinal claro de que a libertação e a dignidade não foram ainda
plenamente alcançadas pelas mulheres de Moçambique. Paula Meneses – Portugal in "Público"
Maria
Paula Meneses - Investigadora coordenadora do Centro de Estudos
Sociais da Universidade de Coimbra
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