I
Primeiro de uma série de
cinco volumes, Poesia - Obra Reunida
(Brasília: Universidade de Brasília/Thesaurus Editora, 2015), de Cassiano Nunes
(1921-2007), reúne livros esgotados e poemas inéditos do poeta, ensaísta,
conferencista e antigo professor de Literatura Brasileira da Universidade de
Brasília (UnB), à qual consagrou 25 anos (1966-1991) de dedicação e amor pelas
letras, formando gerações de mestres e doutores.
Sem herdeiros, o professor
doou à UnB não só a sua extensa biblioteca como muitos manuscritos que hoje
formam o acervo do Espaço Cassiano Nunes, que fica na Biblioteca Central no
Campus Universitário Darcy Ribeiro daquela instituição. Talvez os cinco volumes
previstos não sejam suficientes para abrigar uma vasta produção que inclui
muitas conferências em universidades do Brasil e da Europa e dos Estados Unidos
bem como uma obra que consta de mais de uma centena de títulos, muitos dos
quais aguardam reedição, além de textos inéditos.
Esse trabalho é fundamental
porque só assim a produção teórica, além da obra poética, ficaria ao alcance
não só do leitor comum como dos professores e pesquisadores que, com certeza,
haverão de incluí-la nos programas universitários. Dessa tarefa foi incumbida a
professora Maria de Jesus Evangelista, nomeada pelo reitor da UnB como curadora
do Espaço Cassiano Nunes e amiga de longa data do colega de trabalho, que neste
primeiro volume reuniu cinco livros já publicados – Prisioneiro do Arco-Íris (1962), Jornada (1972), Madrugada
(1975), Jornada Lírica (1984) e Poesia II (1998) –, além de peças inéditas
e reflexões breves chamadas pelo autor de “Grafitos nas Nuvens” (1995), que
foram publicadas no diário Correio
Braziliense.
O livro encerra-se com
“Poemas traduzidos” (1998) para o inglês, que trazem uma apresentação (“Seven Sides to Cassiano Nunes”) do
professor Danilo Lôbo, que, aliás, foi quem saudou o poeta por ocasião da
outorga do título de Doutor Honoris Causa
que lhe fez a UnB em 2002.
II
Como bem observa na
introdução que escreveu para este livro o poeta e ensaísta Anderson Braga
Horta, a poesia de Cassiano Nunes é despojada, com uma “linguagem bem cuidada,
mas nada de excessos de palavras, de preciosismos linguísticos, de complicações
formais, enfim”. Mais: “não metrificada, mas musical, com apurado senso de
ritmo”.
Além disso, é uma poesia
madura, sem arroubos juvenis, pois não se conhece até agora a produção do poeta
em seus verdes anos, que talvez ainda resida no acervo que legou à UnB. Até
porque o poeta demorou muito para mostrar os frutos do seu ofício: só com 41
anos idade publicou o seu primeiro livro de poemas, Prisioneiro do Arco-Íris. Desse livro, é “Canto do prisioneiro” em
que mostra a sua ligação à cidade de Santos, que seria uma marca de sua poesia:
“Felizes são os marinheiros/ que partem
sem dizer adeus, e em cada porto de escala/ renovam o mistério do amor/ (...)
Só eu não parto... Prisioneiro do arco-íris/ como quem num presídio abafa/ e
expressa a sua ânsia construindo/ um navio dentro de uma garrafa!”.
Do livro Madrugada, é o poema “Sou de Santos” em que faz uma referência a
outro poeta santista, Ribeiro Couto (1898-1963), de geração anterior: Nasci perto do mar/ como Ribeiro Couto./ Como
ele, cantei/ o cais do Paquetá,/ cheio de marinheiros,/ estrangeiros,/ aventureiros./
Apitos roucos de navios/ me atraíam para outras terras,/ propostas sedutoras./ Corri
mundo./ vim parar no Planalto Central/ onde, solitário, entre livros,/ contemplo
os últimos anos./ Às vezes, à noite,/me encaminho para o lado do Eixo/ e me
detenho ante os terrenos baldios/ (amplidão) da Asa Sul./ Ao longe,/ os
guindastes das construções/ sugerem um cenário de cais./ E o vento me traz com
o cheiro de sal/ o inútil apelo do mar.
Vivendo os 40 anos finais de
sua vida em Brasília, obviamente, a nova capital federal não deixaria de ficar marcada em sua poesia, pois,
andarilho, conhecia praticamente todos os seus meandros, de que é exemplo o
poema “Palavras à Cidade Livre hoje Núcleo Bandeirante”: “Há vinte anos, quando aqui cheguei/ no Planalto Central,/ em Brasília,
ainda encontrei/ intacta, na tua verdade pioneira,/ na tua realidade rude, mas
fecunda: áspera imagem, do “far west” brasileiro, e Cidade Livre!/ Livre!
Haverá adjetivo/ com mais oxigênio e glória? (...)
III
Filho de um português de escassas
letras, para quem “livros não davam dinheiro”, e nascido numa rua do
tradicional bairro da Vila Mathias, o futuro poeta e professor Cassiano Nunes
Botica, a princípio, não teve como não se vergar à imposição do pai: formou-se
técnico de Contabilidade pelo Colégio Santista, instituição católica dirigida
pelos Irmãos Maristas, a uma época em que a profissão de contador significava na
cidade pelo menos uma carreira na prefeitura local ou em alguma empresa de
despachos aduaneiros ou de corretagem de café. Àquela época, cursar o Colégio
Santista era privilégio reservado a famílias que tinham recursos financeiros, o
que indica que a de Cassiano não seria de modesta condição.
Foi difícil, mas Cassiano
conseguiu escapar do futuro discreto e obscuro que o pai autoritário, como deixou
explícito em alguns de seus versos, insistia em lhe apontar, não sem antes
passar três anos como datilógrafo de um instituto de aposentadoria para os
estivadores, até conseguir um emprego no Office
for Inter-American Affairs, ainda em sua cidade natal.
Mas, por conta própria, começou
a ler muito, até que se integrou aos meios intelectuais da cidade nos anos de
1940. Foi, então, que encontrou guarida em A
Tribuna, principal diário da cidade, onde começou a publicar resenhas e
críticas de livros. Nessa década, com os poetas Roldão Mendes Rosa (1924-1988)
e Narciso de Andrade (1925-2007), participaria do movimento literário
denominado Pesquisista, que reuniria também, entre outros nomes, Miroel
Silveira (1914-1988), Cid Silveira (1910-?), Nair Lacerda (1903-1996) e
Leonardo Arroyo (1918-1985).
Foi secretário-executivo da
Câmara Brasileira do Livro a partir de 1947, quando a entidade iniciava suas
atividades em prol da difusão do livro no país. Em São Paulo, vivendo sozinho,
muitas vezes em modestos hotéis, conseguiu o título de bacharel e licenciado em
Letras Anglo-Germânicas pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade
de São Paulo (USP), em 1954 e 1955, respectivamente.
Numa época em que quase não
havia no Brasil universidades que oferecessem estudos de pós-graduação, ele
obteve bolsa para estudar na Miami University, onde se especializou em
Literatura Norte-Americana. Estudou Literatura Norte-Americana também na
Universidade de Ohio. Depois, novamente com bolsa de estudos, rumou para a
Alemanha, onde na Universidade de Heidelberg se aperfeiçoou em Literatura
Alemã. Lá deu aulas de Literatura Brasileira.
Ao retornar para o Brasil com
tamanha bagagem, tornou-se orientador cultural na Editora Saraiva, de São
Paulo. Foi ainda fundador da Biblioteca Pública de São Vicente. Por fim, em
1966, por sugestão do poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), seu amigo,
foi para Brasília, onde ajudou na instalação da UnB. Antes disso, ajudou os
professores Antônio Soares Amora (1917-1999) e Antônio Cândido (1918-2017) a
fundar a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, no Estado de São
Paulo, em 1958, e foi ainda professor-visitante na Universidade de Nova York.
Entre os muitos livros que
publicou estão O Lusitanismo de Eça de Queiroz
(1947); A Evolução da Literatura dos
Estados Unidos (1953); Modernidade de
Chaucer (1954); Prisioneiro do Arco-Íris
(1962); A Experiência Brasileira (1964);
Sedução da Europa (1968); Norte-americanos (1970); Retrato no Espelho (1971); O Sonho Brasileiro de Monteiro Lobato (1979);
A Felicidade pela Literatura (1983); A Atualidade de Monteiro Lobato (1984); Jornada Lírica (1984); Poesia – II (1998); e Literatura e Vida (2004), entre outros.
Participou de antologias como
Poemas do Amor Maldito (1969), com
organização de Gasparino Damata e Walmir Ayala; Antologia dos Poetas de Brasília (1971); Brasília na Poesia Brasileira (1982), com organização de Joanyr de
Oliveira; Poetas de Santos (1977), com
organização de João Christiano Maldonado; Nem
madeira nem ferro podem fazer cativo quem na aventura vive (1986); Caliandra – Poesia em Brasília (1995); Cronistas de Brasília, (1996, v.2), com
organização de Aglaia Souza; Poesia de
Brasília (1998); e Poemas para
Brasília (2004), com organização de Joanyr de Oliveira, entre outras.
IV
Maria de Jesus Evangelista,
professora de Letras da Universidade de Brasília, nascida no Piauí, é bacharel
em Letras Neoclássicas pela Universidade Federal do Maranhão e doutora pela
Université de Toulouse, França. Com estudos comparativos em Portugal, foi
professora catedrática na Universidade de Coimbra, onde dirigiu o Centro de
Estudos Brasileiros. Tem publicado ensaios em revistas especializadas no Brasil
e no exterior. Recentemente, publicou pela Editora da UnB o livro Cassiano Nunes - Poesia e Arte. Adelto Gonçalves - Brasil
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Poesia - Obra Reunida, v.1, de
Cassiano Nunes, organizada por Maria de Jesus Evangelista, com introdução
Anderson Braga Horta. Brasília: Thesaurus Editora/Espaço Cassiano
Nunes/Biblioteca Central/Universidade de Brasília, 270 págs., 2015. E-mail:
maju.curadora@bce.unb.br
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo (USP), é autor de Os Vira-latas da
Madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra
Selvagem, 2015), Gonzaga, um Poeta do
Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo,
Publisher Brasil, 2002), Bocage – o
Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás
Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado
de São Paulo, 2012) e Direito e Justiça
em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2015), entre outros. E-mail:
marilizadelto@uol.com.br
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