Especialista
crê que ampliar diálogo fará deixar de existir a pergunta “existe cinema
africano?”, que ouviu durante a pesquisa
Entre o passado colonial e a
independência revolucionária, do começo de uma nova democracia até um presente
cheio de incertezas individuais, o cinema dos chamados Países Africanos de
Língua Oficial Portuguesa (Palop) retrata uma realidade conhecida por poucos.
Um estudo realizado na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP analisou uma
extensa lista de filmes produzidos nos países lusófonos da África. Para
aproximar os brasileiros das nações que compartilham o português como língua oficial,
a pesquisadora Marina Oliveira Félix de Mello Chaves catalogou um conjunto de
mais de 50 filmes que retratam passado e presente de países como Angola, Cabo
Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Ao analisar o mosaico de
histórias produzidas em filme, a pesquisadora traduziu elementos que considerou
significativos sobre a atual identidade destas nações.
Com a meta maior de construir
um acervo que pudesse ser facilmente acessado, Marina questiona a incredulidade
com a qual o tema de sua dissertação ainda é visto pelo público geral. Indagada
se “existe cinema africano” durante sua pesquisa, a especialista acredita que é
preciso ampliar o diálogo para que essa pergunta deixe de existir.
Para ela, é preciso que o
cinema produzido na África deixe de ser considerado um nicho. “Cinema africano
não tem que ser nomeado somente como africano, ele tem que ser considerado
cinema”, afirma ao reforçar que, na sua opinião, temos que inverter um pouco
essa relação de que o cinema africano foi resultado apenas de influências
externas. “Eles têm sua carga própria e uma força narrativa que pode enriquecer
muito os outros”, reforça, ao finalizar com a crença de que assistir mais
filmes como os que analisou pode nos ajudar “a mudar o nosso olhar”, reforçando
que, apesar de separados por um oceano, não estamos tão distantes.
Um
acervo de novos significados
De acordo com o trabalho, no
período colonial, o cinema representava um instrumento de propaganda do regime
português. Já durante a luta pela independência, o cinema foi usado como uma
arma dos movimentos nacionalistas. Nos anos iniciais das novas nações
independentes, as produções fortaleceram os interesses dos novos governos.
Depois da década de 1990, com a abertura política e o multipartidarismo,
começaram a se desenvolver diversos e variados tipos de cinema relacionados com
estes cinco países (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e
Príncipe), “alguns mais críticos, outros mais voltados ao entretenimento”,
destaca ela na dissertação.
Para adquirir os filmes,
Marina realizou um verdadeiro trabalho de investigação. Poucos puderam ser
comprados em sítios nacionais, alguns foram encontrados em lojas on-line fora do País, mas a grande
maioria precisou ser negociada com distribuidoras internacionais e com os
próprios realizadores.
Foi assistindo à extensa filmografia
que Marina começou a notar similaridades entre filmes portugueses e filmes
feitos em Moçambique, por exemplo. Tanto nas temáticas ou em relação às
escolhas estéticas, “de repente, eu encontrava conexões inesperadas”, salienta
Marina.
Além de enumerar e catalogar o
acervo, a pesquisadora tinha como objetivo saber quem era o público desses
filmes e como seria possível expandi-lo, até mesmo, por meio de sua própria
dissertação. “Eu pensei em formas de apresentar esse cinema como se fosse um
guia turístico, uma viagem rápida que pudesse mostrar alguns pontos”, esclarece
ela.
Entre as curiosidades do
trabalho, Marina se surpreendeu ao enxergar paralelos do cinema africano com
cineastas brasileiros como Glauber Rocha ou franceses como Jean-Luc Godard. Não
por acaso, revela ela, após a independência, Moçambique criou um instituto de
fomento conhecido como Instituto Nacional de Cinema. “Esse instituto reunia
todos os profissionais envolvidos na realização de filmes. Cineastas como o
próprio Godard e o diretor Rui Guerra foram chamados para dar treinamento aos
profissionais locais”, conta ela. “Depois, com o declínio desse projeto [de
governo], esse instituto foi cada vez mais abandonado”, conclui.
Percurso
Com formação em Publicidade e
Letras, Marina começou a se interessar pelo cinema realizado na África durante
a segunda graduação. Por meio de uma iniciação científica, orientada pela
professora Fabiana Buitor Carelli, especializada em Estudos Comparados de
Literaturas em Língua Portuguesa, Marina começou um catálogo de filmes produzidos
em língua portuguesa na África, que desembocou anos depois em um ambicioso
projeto de mestrado. A orientadora, que pesquisa o cinema africano há quase 10
anos, é a responsável pelo projeto de Marina. Um grupo de estudiosos sobre o
tema tem se formado ao redor da área.
“Parti da iniciação
científica, com todo aquele material que coletei, e percebi imediatamente a
dificuldade de como organizar e catalogar aqueles filmes para montar um
acervo”, relembra Marina. Nas últimas décadas, explica ela, os países africanos
passaram por transformações políticas bastante intensas, das quais o cinema foi
um importante participante.
“Meu intuito inicial foi
discutir sobre os critérios de inclusão ou exclusão de uma cinematografia. Isso
acarretaria uma discussão sobre a formação de um cânone [coletânea]”, revela
Marina, ao destacar que, aos poucos, percebeu que seria impossível estabelecer
critérios fechados antes de falar sobre os filmes propriamente ditos. No
decorrer da dissertação, a especialista notou que os elementos que gostaria de
pontuar precisavam ser pincelados em uma longa apresentação sobre os vários
filmes que reuniu, por meio de diversas fontes.
Um dos primeiros pontos que
deixou claros durante seu trabalho foi a necessidade de não segregar
geograficamente a produção cinematográfica de cada país. “Não existe apenas o
cinema de Angola, cinema de Moçambique, cinema de Cabo Verde”, ressalta ela.
“Deparei-me com um volume muito grande de filmes e tentei encaminhá-los para
subconjuntos”, conta a pesquisadora. Sua metodologia envolveu separar cada
capítulo, que conta com uma lista específica de filmes, em uma fase cronológica
comum a esses países. “O primeiro é voltado para filmes anteriores à
independência desses países; o segundo são os filmes revolucionários, que estão
no centro da luta pela independência; e o terceiro são os filmes que começam no
declínio desse projeto”, diz ela, esclarecendo que os filmes contemporâneos não
são mais financiados pelo Estado, e sim por patrocinadores, com apoio de países
estrangeiros em coproduções, o que permitiu, apenas para esse segmento da
dissertação, organizá-los por temática. Denis
Pacheco – Brasil in "Jornal da Universidade de
São Paulo"
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