Um
dos mais representativos e importantes romances do “jornalismo literário” no
País — premiado e com grande repercussão na época do lançamento, mas há anos esgotado
nas livrarias —, Os Vira-Latas da
Madrugada retorna em segunda edição com ilustrações e um belo acabamento
gráfico. E podemos constatar que,
infelizmente, essa lacuna de tempo não desatualizou o seu cenário e enredo: mais
de três décadas depois ainda deambulam pelas praças, ruas e cais das nossas
grandes metrópoles os mesmos vira-latas que Adelto Gonçalves, autor do livro,
com refinada sensibilidade e aguda observação, pinçou da realidade e os colocou
em movimento nas densas páginas que iriam emocionar toda uma geração.
Mas,
para que os leitores possam se situar e compreender o drama, é importante que
falemos um pouco sobre o seu contexto geográfico e social. E, naturalmente, sobre o seu autor, que viu
de perto e até podemos dizer que sentiu na pele tudo que narrou.
O
romance se desenrola no bairro Paquetá, mais precisamente no cais e nas zonas
de prostituição do Centro de Santos, onde hotéis, boates e cabarés exibem
pomposos nomes de cidades e países europeus, como Old Kopenhagen, Sweden e Oslo Bar, talvez para atrair os
marítimos estrangeiros aportados. Área pobre e decadente, habitada na sua
maioria por operários, comerciários e demais classes economicamente menos
favorecidas, e ainda atraindo todos os deserdados do entorno, “mendigos,
engraxates, prostitutas e jovens aprendizes de todo tipo de sobrevivência”, a
região portuária, palco de grandes embates sindicais, promovidas pelo deposto governo
Jango e, com o desfecho do golpe militar, seria, consequentemente, uma das regiões
mais visadas pelo novo regime, com a caça e prisões desses elementos. E muitos
comporiam o elenco do romance. Contudo, não se comprometeu. Seu compromisso não
é com partidos políticos ou com ideologias. Seu compromisso maior é com a
condição humana. E somente.
Através
dos dados bibliográficos, sabemos que Adelto bebeu direto da fonte, e não
através de relatos de terceiros. Ele não apenas ouviu falar ou leu sobre o que
narrou. Não, não foi um mero expectador dos acontecimentos: testemunhou tudo
“in loco”, entre o espanto e a indignação. Em artigo de jornal intitulado “O
golpe visto da janela da minha casa”, escrito décadas depois, ele contaria que,
com 12 anos de idade, presenciaria um dos episódios mais importantes e
dramáticos, pois morava de frente para o
prédio do Sindicato dos Operários Portuários de Santos. Menino, sem entender direito o que estava se
passando, ele assistiria, atônito, aos soldados de fardas azuis da Polícia
Marítima cercarem o sindicato, enquanto seus membros, acuados, apenas espiavam lá
de dentro, esperando uma contrarreação que nunca viria.
De
repente, muitos gritos e a fumaça — talvez de uma bomba incendiária jogada lá
dentro — subiu no ar. Minutos depois os soldados invadiriam o prédio, e os
líderes sindicais, rendidos, deixariam as instalações em fila indiana,
hostilizados por tapas e insultos de “comunistas de merda!”. E, aqueles homens que decidiam os rumos da
classe, tratados agora como meros bandidos, teriam que passar por um “corredor
polonês”, esbofeteados até entrarem nas viaturas que os levaria direto para o
navio-prisão atracado ali no estuário.
Revoltado
com o que via da janela, e, sobretudo, por conhecer alguns daqueles homens que
estavam sendo espancados — ele estudava em escola mantida pelo Sindicato dos
Operários Portuários de Santos —, como se não acreditasse no que estava vendo,
sairia de casa para conferir de perto. Talvez por isso, anos depois, narraria
esses episódios com tanta verve e propriedade, com cenas e imagens tão fortes
como essa que não resistimos em reproduzir: “No cais, os homens agora
trabalhavam em silêncio e ninguém mais levantava a voz para reclamar algo.
Aceitavam tudo passivamente: como uma forca no centro da praça principal de uma
pequena cidade, aquele navio estava ali no meio do estuário a lembrar aos mais
afoitos e aos incrédulos que os tempos haviam mudado”.
Na
esteira de grandes autores humanistas, via Vitor Hugo, Dostoievsky, Dickens e—
por que não? — o próprio Jorge Amado, como eles Adelto deixa vazar em cada
página sua grande compaixão pelos excluídos, esses seres em carne e osso, dores
e dúvidas, que arrastam suas misérias e paixões pelas ruas, beco e puteiros, sempre
em busca de uma resposta para suas dores físicas e espirituais. A cada página é
como se o autor suasse, sofresse e chorasse junto, acompanhando as desditas de
cada um dos seus personagens. Como se arrancasse o asséptico leitor da sua
cômoda cadeira e o arrastasse até o sujo — de lodo, fumaça e óleo — cais, e o fizesse sentir no lombo a brisa
gélida do mar, o cheiro da maresia, o suor, a inhaca de cada personagem —
estivadores, sindicalista, cafetinas, putas ou meros vagabundos —, toda essa gama dos malditos viradores de
madrugadas.
No
meio da arraia-miúda, no entanto, um vulto se destaca pela sua coragem e
lucidez: é Marambaia, um marítimo que, sempre reivindicando direitos e melhores
condições de trabalho, liderou no seu passado heróico doze motins, e agora,
aposentado, ainda frequenta o Sindicato dos Portuários. E mesmo como contraventor (apontador de jogo
do bicho) é admirado e respeitado por colegas e vizinhos, tornando-se uma
espécie de conselheiro na região. Contudo, numa roda de amigos, ao comentarem o
destino dessa última geração, constatavam que todos viviam de subempregos,
quando não, resvalando para a contravenção.
Só Cariri, que virou jogador de futebol profissional, conseguira vencer.
Então, entre a galhofa e a indignação, Marambaia desabafa: “Êta país de merda!
Pobre pra subir na vida só sendo jogador de futebol...” Poderíamos hoje
acrescentar que, com a inversão de valores da mídia mistificadora, alguns
falsos artistas e cantores sertanejos também aí poderiam ser incluídos como
vitoriosos. O que, claro, em nada contribuiria para a melhoria dos nossos dias.
UM
PRECUSOR NA DENÚNCIA AO REGIME MILITAR
Senão
por tantas outras virtudes, o livro já teria o seu lugar ao sol pelo simples
fato de ter sido, talvez, o primeiro romance-denúncia contra a ditadura
militar, numa época em que todos nós ainda guardávamos, cuidadosos, certo
distanciamento crítico, para abordar tão polémico tema. Adelto, estudante de
vinte e poucos anos, não deu bolas para a voz da prudência e, tocado pela
indignação e a intrepidez da juventude — talvez duas das maiores virtudes dessa
bela fase da vida —, saiu na frente! Mas não fez panfletagem, como se poderia
perfeitamente esperar de um jovem açodado e inexperiente. Esqueceu a pouca
idade e fez romance de gente grande.
Tomou,
sim, o lado dos mais fracos, os deserdados, segundo as suas convicções, mas sem
pregação político-partidária. O que, contudo, não evitou que alguém o taxasse
de maniqueísta: colocando sempre os oprimidos como bons e os opressores como
maus. Amado, Dostoievski e Zola também receberam tal pecha e isso em nada
diminuiu o valor das suas obras. Homem de origem humilde (filho de pequeno
comerciante), é perfeitamente natural, a nosso ver, a sua simpatia pelos
“humilhados e ofendidos”, para usar uma expressão do grande mestre russo já
citado a cima.
Ainda
que não se pretenda um romance histórico — não se prende a datas nem fatos
sequenciais —, de certa forma, não deixa de sê-lo, na medida em que retrata
episódios reais da História recente do País e, enlouquecendo a cronologia, nos
remete a um passado remoto, como as andanças da lendária Coluna Prestes, na
qual Marambaia, que podemos considerar o protagonista do romance, teria
militado; atravessa o governo Vargas, com as perseguições políticas do Estado
Novo, onde o protagonista também amargaria detenções; passando pelo governo de
João Goulart, e entrando pelos primeiros anos da ditadura militar de 64.
MAS NEM TUDO SÃO FLORES
Para
não dizer que tudo são flores, faremos aqui duas restrições. A primeira diz
respeito aos parágrafos iniciais da segunda parte do livro, denominada “Segunda
confissão”. O autor tenta fazer um levantamento histórico sobre a origem do
nome Paquetá. E esse relato frio e pedagógico, tão fracionado, diferente do
clima denso e fluido do livro, soa como um apêndice. Podia ser perfeitamente
evitado. Felizmente, ele pouco se
estende, reconhecendo que é tarefa para um historiador, e não para um
romancista. E o romance retoma seu inquieto e intenso fluxo.
Segunda
restrição. Pareceu-nos que, vez por outra, o autor põe na boca e na mente dos
seus personagens palavras e reflexões não totalmente condizentes com, digamos,
seu nível cultural. Como seria o caso do personagem Quirino, meio vagabundo,
meio cafetão, às vezes travestido de sindicalista. Preso em flagrante numa operação em que
transportava armas clandestinas, em seu interrogatório, desabafa aos
inquisidores: “Nunca acreditei na
espécie. É o homem que não presta. Ideologia nenhuma vai mudar isso. Seria
preciso começar tudo de novo”.
Para
completar, poderíamos ainda citar suas filosóficas reflexões de delatar em
relação ao amigo delatado: “(...) o velho tinha um passado de revolucionário,
mas, agora, com mais de sessenta anos, não queria saber de mais nada — nem
podia. Era bicheiro, contraventor, explorava a esperança do povo — que fim mais
triste poderia ter um revolucionário? Para Quirino, já bastava a pena de vê-lo
torturado por sua consciência”.
Reflexões de cunho existencialista como essas não seriam estranhas ao delatado, o velho Marambaia, pensador que, nas horas vagas, é dado a
anotações e discursos que deixaria para a posteridade. Mas não para o
oportunista Quirino, homem prático e rústico, boa vida, preocupado apenas com a
sobrevivência imediata.
Fechado
o livro, o sentimento primeiro que nos vem é de alívio: não teremos mais
qualquer responsabilidade sobre os caminhos e descaminhos dessa gente
desamparada. Mas logo, como um remorso,
nos bate a frustração: não poderemos mais acompanhar o velho João de Angola a
se arrastar pelas ruas do Paquetá, carregando sua sacola cheia de esculturas
entalhadas em madeira; não mais poderemos conferir a aparição da bela
prostituta Sula a exibir sua lascívia e inocência entre homens famélicos e
frustrados; não mais ouviremos as predições do velho Marambaia, visionário anarquista que já visitou portos em
Stalingrado, na Rússia, ou em Hamburgo, na Alemanha, e agora se esconde num canto
do Estrela da Manhã, apontando para o
jogo do bicho; Peremateu, o mágico argentino, alquimista e charlatão, que,
para seduzir mocinhas indefesas e trapacear homens poderosos, desfia toda a sua
gama de astúcia; Plínio, o eterno vagabundo — uma espécie de Carlitos patropi —
e sua companheira Rosa, a mudinha angustiada que suspira pelo filho perdido
para o mar; os três moleques — Pingola, Cariri e Gabriel — que, enquanto jogam
porrinha na praça, tramam o assalto ao bazar da esquina; Teodorico, o velho
profeta desvairado que carrega sempre um caixote debaixo do braço e,
encontrando o primeiro ajuntamento de trabalhadores, já sobe no caixote para
proferir seu intermináveis discursos...
Bom,
meus amigos: bem ou mal, o recado está dado. Se você quer um livro forte e
comovente, por vezes terno, mas por vezes amargo, desses que uma vez lidos
nunca mais será esquecido — vá até a livraria mais próxima, adquira ou
encomende este romance. Agora, se você quer apenas um ligeiro entretenimento,
uma coisa mais doce — e não pode tomar um copo de água com açúcar porque é
diabético —, então compre qualquer um desses tons mais ou menos desbotados que
andam aí pelas bancas... Wil Prado -
Brasil
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Os Vira-Latas da Madrugada, de Adelto Gonçalves, com prefácio de Marcos Faerman,
apresentação de Ademir Demarchi, posfácio de Maria Angélica Guimarães Lopes e
ilustrações e capa de Enio Squeff. Taubaté-SP: Associação Cultural Letra
Selvagem, 216 págs., 2015, R$ 35,00.
E-mail: letraselvagem@letraselvagem.com.br Site: www.letraselvagem.com.br
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Wil
Prado, jornalista, romancista, contista e crítico
literário, é autor do romance Sob as
Sombras da Agonia (Lisboa, Chiado Editora, 2016).
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