I
É como se Machado de Assis
(1839-1908) tivesse vivido mais meio século e tido a oportunidade de passar os
seus derradeiros anos no tradicional bairro de São Cristóvão, no Rio de Janeiro
da década de 1950, recolhendo material e passando para o papel o que vira e
sentira em meio aos seus moradores. É assim que se haverá de sentir o leitor ao
acabar de ler o romance Ladeira do
Tempo-Foi (Rio de Janeiro, Synergia Editora, 2017), do arquiteto e professor
Helio Brasil, sua segunda experiência no gênero.
Obviamente, este já é outro
Rio de Janeiro que se percebe neste livro, se comparado aos romances machadianos,
mas a alma das ruas é a mesma, bem como os seus logradouros, praças, calçadas, ladeiras,
portões, sobradões, janelas, esquinas, quartéis, mercearias, armarinhos,
botequins, igrejas e escolas. Até porque quem o descreve é um carioca de quatro
costados, nascido e vivido em São Cristóvão, autor de outro livro que
igualmente resgata o bairro, São
Cristóvão - memória e esperança (Rio de Janeiro, Prefeitura do Rio de
Janeiro/Editora Relume Dumará, 2004), que viria a ser reeditado em 2016 pela
Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado do Rio de Janeiro (Faperj) na obra
coletiva Cantos do Rio – imagens literárias de bairros e
localidades cariocas, volume que reúne 13 textos.
E que, em sua primeira
experiência no romance, A última
adolescência (Rio de Janeiro, Editora Bom Texto, 2004), já havia explorado
a mesma paisagem de São Cristóvão, a exemplo do que faria em vários contos. Para
ele, São Cristóvão é metaforicamente um território pessoal de vivências ou “uma
bela e colorida amostragem do brasileirismo e do carioquismo”, como diz na
dedicatória. Em outras palavras: Ladeira
do Tempo-Foi constitui uma bem sucedida, onírica e proustiana busca de um
tempo perdido na memória do autor.
Sem contar que o seu saboroso
estilo é indisfarçavelmente inspirado no texto machadiano, ainda que adaptado
aos nossos dias. Enfim, trata-se de “uma viagem ao mundo carioca e brasileiro
dos meados do século XX, conduzida com vigor narrativo neste romance que
surpreende a cada passo”, como bem observa Gustavo Barbosa, escritor,
professor, consultor editorial, consultor de comunicação, editor e produtor de
conteúdo multimídia, no texto de apresentação que escreveu para este livro.
II
Num cenário que lhe é
extremamente familiar, o romancista cria (ou transporta personagens reais para
a ficção?) uma ampla galeria de personagens – imigrantes portugueses e
espanhóis, professores, comerciantes, senhorios, burocratas, donas de casa,
prostitutas, policiais, malandros, boêmios, pobres, ricos e remediados, brancos,
gringos e portugas, pretos e mulatos, trabalhadores braçais, funcionários e
doutores e outros tipos típicos das ruas cariocas daquele tempo, por onde ainda
se podia andar sem medo de ser surpreendido por uma bala perdida.
É nesse ambiente que o leitor
vai acompanhar a vida do professor Carlos Jordão, morador na Ladeira do
Tempo-Foi, ao pé do morro, leitor assíduo de estudiosos como Anísio Teixeira
(1900-1971) e Gilberto Freyre (1900-1987), casado com Leonor, de família
açoriana chegada havia pouco ao Brasil, mãe de seu filho recém-nascido Felipe e
moça “esculpida pela educação camponesa, mas não rústica”. Viviam num sobrado,
vizinhos de outras famílias, mas alimentavam o sonho de abrir uma conta na
caixa econômica para fazer um pé-de-meia e comprar uma casa, para escapar
daquela vizinhança de gente pobre.
A vida familiar vai bem até
que, um dia, chegam num caminhão de mudanças os rústicos e poucos móveis de uma
vizinha, Idália, jovem pobre, ex-operária da fábrica de tecidos de Bangu, que
traz apenas o seu filho, Lula, menino doente, deficiente mental. E vai morar no
porão do velho sobrado. Acontece que a morena Idália é também uma mulher de
formas exuberantes, que atrai o olhar dos homens nas ruas por onde passa. E o seu
cheiro feminino começa a inebriar também o jovem professor.
Nasce, então, um romance às
escondidas entre o professor e a morena, que não é interrompido nem mesmo
quando a mulher é despejada do porão do sobrado por falta de pagamento do
aluguel. Sem alternativa, ela vai viver num sobrado da Rua Riachuelo, perto da
Lapa, que fora transformado em rendez-vous.
Idália vira prostituta, mas
continua a receber entre os seus clientes o jovem professor, embora fosse perseguida
por seu antigo amante, o rufião Ranulfo. A vida familiar do professor é, então,
abalada por uma denúncia anônima que vem num papel mal escrito e faz a açoriana
largar a casa, levando consigo o filho Felipe. O lar burguês só seria refeito
quando ocorre a tragédia que marca o romance: Idália e o filho doente, um dia,
seriam mortos a facadas pelo malandro Ranulfo.
III
Se o Rio de Janeiro – e, por
extensão, o Brasil – e o contexto em que se passa o romance já não são aqueles
das obras de Machado de Assis, ainda havia na sociedade brasileira da década de
1950 os sinais do clientelismo e do patriarcalismo que, ao lado da escravidão,
constituíam as formas sociais que dominavam o País à época machadiana. Os
conflitos de classe seriam, praticamente, os mesmos e o professor Jordão, ainda
que não fosse alguém que pudesse ser visto como uma pessoa bem posta na vida,
não poderia assumir publicamente o seu relacionamento com a lasciva mulata
Idália.
Outro personagem que parece
saído de um romance machadiano – mas, quem sabe, seja antes o protótipo do
brasileiro médio – é o professor José Lírio, colega de Jordão na escola
municipal do bairro, o Ginásio Santa Cordélia, onze anos mais velho, casado,
mas que mantém um romance igualmente clandestino com uma aluna, Ana Luíza, 17
anos declarados, mas que, na verdade, seria uma adolescente de apenas 15 anos.
Empregado também num
ministério da República, Lírio transitava com certa facilidade nos corredores
da política no Distrito Federal. E, com o retorno de Getúlio Vargas (1882-1954)
ao poder, agora por meio de eleições livres, e a entrada no Ministério da
Educação de Simões Filho (1886-1957), respeitado intelectual, via a
oportunidade de cavar para si e para o colega de trabalho no Santa Cordélia uma
colocação no grupo que haveria de preparar um livro encomiástico sobre a
trajetória de Vargas. Um seria assessor do outro.
Como se vê, a exemplo de
Machado de Assis, a visão que Helio Brasil tem de seus personagens não é
sentimental, mas realista. Ao mesmo tempo, não se pode deixar de reconhecer no
autor um tom saudosista do tempo que ele mesmo viveu no bairro de São
Cristóvão. Tudo isso faz deste livro um dos lançamentos mais auspiciosos da
Literatura Brasileira neste começo de século XXI.
IV
Helio Brasil (1931), nascido no
bairro de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, é formado em 1955 pela Faculdade
Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). Foi funcionário do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico (BNDE, hoje BNDES), entre 1955 e 1984, tendo realizado projetos para
as instalações da instituição. Projetou edifícios comerciais, industriais e
residenciais no Rio de Janeiro e em outros Estados. Foi professor da disciplina
Projeto de Arquitetura, durante vinte anos, na Universidade Santa Úrsula, na
UFRJ e na Universidade Federal Fluminense (UFF).
É autor de São Cristóvão – memória e esperança; O anjo de bronze e outros contos (Rio de Janeiro, Oficina do Livro, 1994); A última adolescência; Tempos de Nassau: um príncipe em Pernambuco,
ficções, com vários autores (Rio de Janeiro, Bom Texto, 2004); Cadernos (quase) esquecidos (crônicas
autobiográficas, edição de autor) e Pentagrama
acidental (novelas, Editora Ponteio, 2014). É co-autor com Nireu Cavalcanti
de O Tesouro – O Palácio da Fazenda, da Era
Vargas aos 450 anos do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, Pébola Casa
Editorial, 2015) e com José Rezende Reis de O
Solar da Fazenda do Rochedo e Cataguases (memórias, Synergia Editora,
2016), em segunda edição. Participou ainda de coletâneas de contos das editoras
Uapê, Bom Texto e 7Letras. Adelto Gonçalves
– Brasil
__________________________________
Ladeira do Tempo-Foi, de Helio
Brasil, com texto de apresentação de Gustavo Barbosa. Rio de Janeiro: Synergia
Editora, 220 págs., R$ 40,00, 2017. Site: www.synergiaeditora.com.br
E-mail: synergia@synergiaeditora.com.br
_____________________________________________
Adelto Gonçalves é mestre em Língua e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Literatura Portuguesa
pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora,
1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga,
um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova
Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Academia
Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), e Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São
Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), entre
outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
Sem comentários:
Enviar um comentário