I
Eduardo Lourenço (1923)
cumpre uma trajetória ímpar na história do pensamento português, sendo
considerado o grande pensador e ensaísta da Literatura Portuguesa. A vantagem
de se viver muito – bem haja – é que o homenageado pode desfrutar desse
reconhecimento. No caso de Lourenço, esse reconhecimento definitivo veio com a
publicação pela Fundação Calouste Gulbenkian, de Lisboa, de suas Obras Completas, de que saíram à luz
três extensos volumes.
Organizado em torno do livro
homônimo publicado em 1974 pela Editora Inova, do Porto, o terceiro volume (Tempo e Poesia), além de reunir extenso
número de textos dispersos dedicados à poesia e a quase todos os nomes mais
relevantes da poesia portuguesa do século XX, traz um conjunto considerável de
inéditos, todos revistos e em alguns casos, concluídos com exclusividade para
esta edição. São textos que Lourenço escreveu entre as décadas de 1950 e 1970, muitas
vezes a pedido de editores e autores.
Assim, o leitor encontrará
ensaios inéditos sobre a poesia de Eugénio de Castro (1869-1944), Adolfo Casais
Monteiro (1908-1972), Raul de Carvalho (1920-1984), Maria Teresa Horta (1937) e
Salette Tavares (1922-1994). Aqui aparecem também reunidos todos os estudos que
o ensaísta dedicou à poesia de nomes indiscutíveis como Teixeira de Pascoaes
(1877-1952), José Régio (1901-1969), Miguel Torga (1907-1995), Jorge de Sena
(1919-1978), Sophia de Mello Breyner (1919-2004) e António Ramos Rosa
(1924-2013), entre outros.
O primeiro volume das Obras Completas, de 2011, tem por título
Heterodoxias e retoma textos já
incluídos nas versões anteriores, além de recolher inéditos. O segundo volume, Forma da Poesia Neo-realista e outros ensaios,
de 2014, reúne tudo o que o autor escreveu sobre o neorrealismo. Além do livro Sentido e Forma da Poesia Neo-realista, escrito
em 1959/1960 e só publicado em 1968, o tomo reúne uma massa enorme de textos
dispersos, alguns deles não apenas estritamente sobre autores e obras do neorrealismo
literário.
Embora os três volumes tenham
igual importância como receptáculo de quase tudo o que saiu da pena do
professor e filósofo Eduardo Lourenço, sem dúvida, o terceiro é o que reúne o
que há de mais fino e precioso de sua vastíssima produção, constituindo a mais
importante obra sobre poesia alguma vez editada em Portugal, como afirmou Carlos
Mendes de Sousa na extensa e elucidativa introdução que escreveu para esta edição
que contou com a sua coordenação.
II
Como bem observou Mendes de
Sousa, o que se destaca nos ensaios de Lourenço é a sua heterodoxa maneira de
ler o mundo que não leva em conta visões ideológicas e esquematicamente
condicionadoras nem os modelos ditados pelo marxismo nem pelo catolicismo
tradicional, o que era comum à época, ainda que em seus primeiros estudos sejam
frequentes as alusões a episódios, locais e personagens bíblicos. A rigor,
influenciado pelo filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), o crítico nunca
se limitou a escrever meras recensões ou resenhas de livros, mas, mesmo quando
escreveu textos mais leves e de poucas linhas, produziu alentados ensaios que
chamam a atenção do leitor por suas imagens e ideias insólitas.
De fato, o pensamento do
professor Lourenço, ao longo de uma carreira acadêmica invejável, voou tão
longe e alcançou tantos ângulos que hoje é impossível imaginar um ensaio sobre
poesia portuguesa sem levar em conta o que ele já escreveu. Nos ensaios do
volume III, por exemplo, há frases lapidares que atravessaram o século.
É o caso das duas frases que
encerram o ensaio “Orfeu ou a poesia
como realidade” em que Lourenço define o papel dos dois corifeus do modernismo
português, Fernando Pessoa (1888-1935) e Mário de Sá-Carneiro (1890-1916),
ícones da revista Orpheu, da qual só
saíram dois números em 1915, mas que exerceu notável e duradoura influência por
seu vanguardismo: “A importância extrema de Sá-Carneiro e Pessoa na nossa
Poesia é precisamente a de terem chegado no fim desse movimento doloroso e
exaltante e terem tido olhos, imagens e vida para tomar parte num confronto
decisivo para o esclarecimento dos limites e poderes da alma humana. Um perdeu
aí a vida que tinha, o outro a que poderia ter tido. Assim ganharam a que
finalmente haviam de ter”. (pp. 87-88).
Mas não só. Antes, no mesmo
ensaio, pode-se ler: “Naquele tempo eles eram apenas jovens à volta dos vinte
anos decididos a ser fiéis às suas necessárias, libertadoras e estranhas
experiências. O pouco que se conhece da sua biografia nesse tempo mostra-os
cheios de perplexidade. A dialética incomum de Pessoa revela-o oscilante e
confundido ante a necessidade de testemunhar por ideias e formas que de todos
os lados requeriam lugar e voz. Divide-se, multiplica-se, duvida dos seus
panfletos de gênio, abandona os amigos, incapaz de distinguir neles e talvez em
si mesmo a loucura e o exibicionismo das suas atitudes; mas finalmente, quando
chega a hora, ele está presente, é a grande, visível e invisível presença desse
Orpheu, onde se apresentará já, “tal
como a Eternidade enfim o mudará”, jogando o seu duplo jogo de seriedade formal
de Fernando Pessoa e o da fantasia absoluta de Álvaro de Campos. Ele bem
pressentia que Orpheu era a ponte por
onde a sua Alma passaria para o Futuro”. (pp.81-82).
III
Outro ensaio que se destaca,
entre tantos textos fulgurantes, é o que leva por título “Situação de Régio”.
Aqui o ensaísta, depois de reconhecer que o mito-Pessoa começa a se extenuar
pelo excesso do seu culto, observa que a voz de Régio “emerge de sua sombra e
da sua falsa morte”. E acrescenta: ‘José Régio é um dos poucos autores
portugueses de quem, com verdade, se pode realmente dizer que têm um mundo. E isto conta ou deve
contar quando se mede a obra de um homem pelo raio da ambição que nele encarna
e não apenas pela fulgurância sem espessura de um acerto sem raízes nem
alcance”. (p.380).
Em “Evocação espectral”, o
ensaísta recorda a Coimbra de seus vinte anos, de quando conheceu o médico
Adolfo Rocha, então já conhecido literariamente como o poeta e contista Miguel
Torga, no auge de sua fama como autor de Bichos
e Contos da Montanha. Mais jovem 15 anos, Lourenço diz que, a essa
época, não seria a pessoa mais indicada para se ocupar da obra de Torga “com
objetividade e justiça”, apesar da amizade que mantiveram e que continuaram
epistolarmente depois que o “aprendiz de filósofo” se foi para Hamburgo.
Outro texto de poucas, mas
densas, linhas é o que leva por título “Jorge de Sena” e que evoca este poeta,
romancista, critico literário, ensaísta, dramaturgo, erudito e tradutor, um dos
autores mais marcantes do século XX português. Dele diz: “Herdeiro do
modernismo tanto como do movimento Presença,
foi não menos sensível ao questionamento da cultura e da literatura, levada a
cabo pelo surrealismo. Vendo bem, sua obra é inclassificável”. (p. 461). Acrescente-se aqui que o seu modernismo vinha
de sua ligação com o movimento deflagrado a partir da revista Presença (1927-1940), fundada por José
Régio, Branquinho da Fonseca (1905-1974) e João Gaspar Simões (1903-1987).
Para Lourenço, na poesia
portuguesa, de tradição quase só lírica, a obra de Jorge de Sena “é quase uma
exceção, pelo seu gosto descritivo, discursivo e, sobretudo, pela sua vontade
de se oferecer um inimigo “objetivo” opondo-se ao intimismo confessional”. Diz
mais: “O paradigma poético de Jorge de Sena é o de Camões, a quem não só
consagrou estudos que fizeram – e fazem – data, mas a quem se assimilou
simbolicamente, vendo nele o poeta perseguido pela mediocridade da sua época e
pela mentira do mundo”. (p. 461).
IV
Eduardo Lourenço, nascido em
São Pedro do Rio Seco, concelho de Almeida, distrito da Guarda, província da
Beira Alta, concluiu a Licenciatura na Faculdade de Letras de Lisboa em 1946,
assumindo em seguida as funções de professor assistente, cargo que desempenhou
até 1953. Desse ano até 1958, exerceu as funções de leitor de Língua e Cultura
Portuguesa nas universidades de Hamburgo, Heidelberg e Montpellier.
No período de 1958-1959, atuou
como professor convidado na Universidade Federal da Bahia. Foi ainda leitor nas
universidades de Grenoble e Nice, na França. Nesta última universidade, foi maitre-assistant, cargo que manteve até
a sua jubilação em 1989. Na França, terra natal de sua esposa, Annie Salomon
(1928-2013), viveu por seis décadas. Pela editora Gallimard, de Paris, lançou Une Vie Écrite.
Seu primeiro livro, Heterodoxia I, é de 1949. Com mais de 40
livros publicados, é autor de O Desespero
Humanista na Obra de Miguel Torga (1955), Heterodoxia II (1967), Sentido
e Forma da Poesia Neo-realista (1968), Fernando
Pessoa Revisitado – leitura estruturante do Drama em Gente, (1973), O Labirinto da Saudade – psicanálise mítica
do destino português (1978), Fernando,
rei da nossa Baviera (1986), Nós e a
Europa ou as duas razões (1988), A
Europa Desencantada – para uma mitologia europeia (1994), O Esplendor do Caos (1998), Portugal como Destino seguido de Mitologia da
Saudade (1999), A Nau de Ícaro
seguido de Imagem e Miragem da Lusofonia (1999), As Saias de Elvira e outros ensaios (2006) e Paraíso sem Mediação (breves ensaios sobre Eugénio de Andrade
(2007), entre outros.
No Brasil, a presença de seus
livros é ainda restrita, embora tenha conquistado o Prêmio Camões em 1996. Na
sequência, a Companhia das Letras, de São Paulo, publicou Mitologia da Saudade (1997) e A
Nau de Ícaro (2001). Em 2015, a editora portuguesa Gradiva reuniu seus
principais ensaios de temática brasileira no volume Do Brasil: Fascínio e Miragem.
Acumulou mais de 20 prêmios.
Em 2016, ganhou a Prêmio Vasco Graça Moura – Cidadania Cultural. É Doutor Honoris Causa pelas universidades
do Rio de Janeiro (1995), de Coimbra (1996), Nova de Lisboa (1998) e de Bolonha
(2006). De 2002 a 2012, exerceu as funções de administrador não executivo da
Fundação Calouste Gulbenkian. Foi ainda adido cultural na Embaixada de Portugal
em Roma. Adelto Gonçalves - Brasil
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Obras Completas de
Eduardo Lourenço III - Tempo e Poesia, com coordenação e
introdução de Carlos Mendes de Sousa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 816
págs., 2016, 25 euros.
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo (USP), é autor de Os vira-latas da
madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra
Selvagem, 2015), Gonzaga, um poeta do
Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo,
Publisher Brasil, 2002), Bocage – o
perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás
Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado
de São Paulo, 2012), e Direito e Justiça
em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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