O budismo hinayanna continua a ser a religião dominante no
Camboja, apesar de todos os vendavais políticos. Nos anos de terror e
genocídio, a maioria dos monges budistas foi assassinada pelos Khmeres
Vermelhos, que praticamente destruíram os três mil mosteiros e templos existentes
no país. Só em 1980 o budismo seria reinstalado como religião oficial do
regime, e, desde o início da década de 1990, assistiu-se a uma sistemática
restauração desses edifícios religiosos.
O dominicano Frei Gaspar da Cruz, um dos
primeiros portugueses a visitar a região, no início do século XVI, descrevia
“estes sacerdotes de seus ídolos” como alguém que vestia “panos amarelos
cingidos como a demais gente e uma maneira de estolas também amarelas com
certas dobras e costuras em que têm suas superstições”. Mas apesar deste olhar
preconceituoso, nem Cruz nem os outros religiosos que ali foram predicar
tiveram quaisquer razões de queixa. Como escrevia na sua Ethiopia Oriental Frei João dos Santos, “o rei da terra
os recebeu benignamente e os favoreceu muito” dando-lhes até lugar para que
pudessem “construir as suas igrejas e fazer os seus baptismos”.
Na peugada dos missionários foram
chegando mercadores, quantos deles originários da recém-fundada Cidade do Santo
Nome de Deus de Macau. Para a história ficou o “lançado” Diogo Veloso, natural
de Amarante, que chegou a ser governador da província de Baphnom, senhor da
Ilha do Choro (no meio do Mekong) e marido de uma das primas do soberano khmer,
Prah Alamika (ou Satha). A sua memória perdura hoje num monumento mandado
erigir em 1934 pelo governador-geral na povoação de Neak Luong, com a seguinte
inscrição, em francês: “Diogo Veloso. Né à Amarante, Portugal. Au service du Roi do
Cambodje Prah Alamkara, épousa sa cousine, aide à reconquerir son royaume sur
un usurpateur. Reçu en recompense la province de Ba Phnom. Mourut en combat en
1599”.
Diogo Veloso veio a ser um dos
estrangeiros favoritos na corte do monarca khmer, que, a partir daí, jamais
prescindiria dos serviços militares prestados pelos portugueses (e espanhóis
também), fundamentais para que lograsse pacificar o país e evitar invasões
pelos reinos vizinhos. E foi-o a tal ponto, que a tradição se manteve até à
actualidade, pois entre as figuras públicas do Camboja recente, houve, pelo
menos, um destacado general de apelido Fernandes e um político com apelido
Monteiro.
Dessa comunidade, maioritariamente
constituída por comerciantes oriundos de Macau, ou com negócios nessa cidade, e
enraizada ao longo dos séculos através de casamentos de interesse e endogénicos,
saliente-se então o abastado comerciante Col de Monteiro (1839-1908), que
depressa ganharia os favores de Norodom Sihanouk, pai do actual monarca, que o
faria seu conselheiro real. E a tradição foi-se perpetuando na família, sendo
confiado ao seu filho, Pitou de Monteiro, o conselho dos ministros da Justiça e
da Educação, e a um neto seu, Kenthao de Monteiro, a vice-presidência da
Assembleia Nacional, o ministério da Educação, tendo-lhe sido atribuído ainda
funções diplomáticas na Jugoslávia, Taiwan e no Egipto. Educado em França,
Kenthao de Monteiro receberia das mãos de De Gaulle, aquando da sua visita
oficial ao Camboja, a mais alta condecoração do estado francês, o Cavaleiro da
Legião de Honra, e acabaria por falecer nos EUA, já com provecta idade, em
2006.
Vários membros da família Monteiro
fixaram-se na Austrália após a tomada do poder pelos Khmeres Vermelhos,
escapando assim a uma morte certa.
Até ao dealbar do protectorado francês,
em 1863, os luso-descendentes viveram sempre nas proximidades da corte real,
primeiro em Lovek, depois Oudong e, finalmente, em Phnom Pehn. E o resultado
deste profícuo intercâmbio luso-khmer está bem patente nos muitos Sousa,
Rosário, Noronha, Rodrigues, Almeida e Lopes com que deparamos ao folhear a
lista telefónica da capital cambojana, onde existiu outrora um bairro designado
“Campo Português”, de que nos deram conhecimento viajantes de meados do século
XIX, como o francês Henri Mahout ou o alemão Adolf Bastian, e, mais tarde, já
na década de 30 do século XX, o nosso cardeal José da Costa Nunes, que, nalguns
dos seus escritos, prestou especial atenção ao kampong cristão centrado na figura do padre e
da catedral, e cujos habitantes exerciam funções de carácter militar,
administrativo e liberal, ora como simples soldados ou guardas do palácio real,
ora como intérpretes, escrivães ou até reputados médicos e mediadores nas
relações comerciais de carácter regional ou internacional. O bispo açoriano
salienta, nas páginas do seu diário, a existência ainda de um crioulo muito próprio,
e um grande apego às tradições e cerimónias cristãs, cujos ritos se tinham
vindo a transmitir de geração em geração, desde o século XVI. Magalhães de Castro – Macau in “Ponto Final”
Joaquim Magalhães de Castro, Natural das Caldas de
S. Jorge (Santa Maria da Feira), é jornalista freelancer, fotógrafo e
investigador da História da Expansão Portuguesa. Colabora na imprensa em Macau,
onde habitualmente reside, e em Portugal, sendo presença regular nas revistas UP, Tempo Livre, Notícias Sábado e Volta ao Mundo. É autor dos livros Os Bayingyis do Vale do Mu - Luso Descendentes
na Birmânia (2001) e A Maravilha do Outro - No Rasto de Fernão
Mendes Pinto (2004), e dos documentários televisivos A Outra Face da Birmânia (2001) e Dund - Viagem à Mongólia (2004).
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