“Entre
os cidadãos comuns a CPLP, honestamente, não existe”
Escreveu o primeiro romance da
história da ainda incipiente literatura da Guiné Bissau e é dele também a
primeira obra de teatro alguma vez impressa no país. Apesar de ter desbravado
caminhos, recusa o epíteto de instaurador da literatura guineense, até porque o
sonho de uma Guiné Bissau próspera, pacífica e justa tarda a concretizar-se. Engenheiro
electrotécnico de formação, escritor por vocação, Abdulai Silá sustenta que os
guineenses têm um Estado, mas não têm ainda uma nação, mas mostra-se convicto
de que a literatura pode ter o condão de criar uma identidade nacional forte
num país feito de povos. Pelo meio, o também presidente da Associação de
Escritores da Guiné Bissau não esconde a desilusão com Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa, a comunidade de afectos que nunca o foi.
PONTO
FINAL: É um pioneiro e um homem de primazias. O primeiro romance guineense tem
a sua assinatura, a primeira obra de teatro também. É um desbravador de
caminhos?
Abdulai
Silá:
É. Tenho tido esse privilégio. É um facto que me alegra e ao mesmo tempo me
entristece. Não é desejável que um país fique tanto tempo sem ter o seu próprio
corpo literário. Desse ponto de vista isso não é uma situação agradável. Eu
quando me lancei nessa frente literária, eu tinha tudo em mente menos isso. A
minha única ambição foi, de facto, praticar um exercício que me dava muito
prazer. Aconteceu que, no caso, do teatro foi a primeira peça escrita. Há
teatro, as pessoas escreviam, mas não publicavam. As peças eram pensadas,
sobretudo, por encenadores que acabavam por levar a peça ao palco sem se
preocupar com a sua divulgação em forma de livro. Importa explicar que a única
coisa que fiz foi, não sendo encenador, produzir alguma coisa para os
encenadores.
O
que fez, então, foi deixar uma base sólida para que, um dia mais tarde, o
teatro se possa manifestar de uma outra forma….
A.S: Sim.
É isso mesmo. Um dia mais tarde, mas também talvez de imediato. Nós temos de,
de certa forma, pensar em atribuir uma maior dinâmica ao teatro e isto não é
apenas uma tarefa dos encenadores dos grupos de teatro. É para todos quantos se
interessam pelo teatro, que tenham algum interesse por isso e que se sintam, de
certa forma, na obrigação de contribuir para algo de que se gosta de facto.
Há
pouco dizia que, de certa forma, foi um desbravador de caminhos e a verdade é
que as sementes que deitou à terra acabaram por produzir algo de visível, porque
já há mais gente a escrever e já há mais livros publicados na Guiné Bissau …
A.S: Sim.
Isso é um facto e é um facto do qual muito me alegro, porque eu faço parte da
geração da independência, uma geração que sonhou muito, que semeou muito e que
tem estado a ver muito pouco concretizado desse sonho. Esta geração chegou ao
ponto de se questionar, mas a validade deste sonho não é questionável, porque
este sonho é a nossa própria existência. Quando se deu a independência do meu
país, tinha eu 16 anos. Eu sou, de certa forma, co-obreiro do meu país. Neste
processo em que estamos envolvidos, de criação da nação – nós temos um Estado,
mas ainda não temos uma nação – há todo um trabalho que tem que ser feito a
partir do nada para se atingir esse objectivo sublime. Isso é tarefa de toda a
gente. Eu faço a minha parte. Procuro fazer o melhor que posso, explorando as
capacidades, os interesses e eventualmente os talentos que eu tenho, numa área
específica. Há outros que fazem este trabalho, talvez melhor, noutras áreas.
Tudo isto está enquadrado dentro de um processo de um país novo, que está a
procurar criar os alicerces de uma nação que se pretende próspera e pacífica.
A
responsabilidade de construir esta nação é primeiramente dos guineenses, mas um
país como Portugal – que foi a antiga entidade colonizadora – ou instituições
como a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa devem ou não contribuir para
a edificação de uma Guiné Bissau forte, de uma Guiné Bissau pacífica e
próspera, como referia?
A.S: Como
disse e bem, a tarefa é dos guineenses em primeiro lugar. Mas é evidente que
qualquer apoio que venha, dentro dos limites do respeito pela soberania e pela
dignidade das pessoas, é bem-vindo. Hoje estamos numa situação em que uma acção
que decorre num país pode ter efeitos noutros países. Eu acho que é do
interesse de todos que haja um maior entendimento por esse mundo fora,
independentemente das necessidades da Guiné Bissau. A Guiné Bissau beneficia
bastante se houver progressos em Timor-Leste, por exemplo. Se houver paz, como
agora há em Angola, porque enquanto houvesse guerra todos nós estaríamos
mergulhados nesse dilema. Se a Guiné Bissau se encontra numa posição em que
tenha necessidade – digamos, necessidades adicionais – é óbvio que qualquer
apoio que venha dentro dos limites do quadro que eu defini anteriormente, do
respeito pela identidade e pela soberania do país, é bem-vindo…
Esta
minha questão vai ao encontro de uma denúncia que fez durante este Festival
Literário de Macau, a de que o português enquanto língua está a sofrer uma
enorme erosão na Guiné Bissau. Uma organização como a Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa, que tem sobretudo a questão linguística como elo, deve ou
não contribuir para que o nível de que lecciona em português seja mais elevado.
A CPLP deve dar este contributo ou não?
A.S: A
CPLP pode, mas não é um dever. Eu acho que aí é que está a grande diferença.
Diz-se que a CPLP é uma comunidade de afectos, mas o que acontece, de facto, é
que talvez seja afectos entre os políticos. Entre os cidadãos comuns a CPLP,
honestamente, não existe. Eu digo isto de uma forma clara, franca, sem nenhumas
segundas intenções. Porquê? Porque uma comunidade não pode existir na base de
encontros e cimeiras anuais dos presidentes, primeiros-ministros e chefes de
Governo. O que é que há de concreto? Muito pouco. Eu acho que esta é a opinião
unânime de toda a gente. Com isto não quero imputar nenhuma responsabilidade à
CPLP, nem fazer nenhum julgamento de valor. Estou a considerar aquilo que é a
minha opinião e, na verdade, a opinião de muita gente. Nós tivemos a ocasião
de, no ano passado, sermos uma entidade associada, enquanto Associação de
Escritores, dos festejos dos 20 anos da CPLP em Bissau e tivemos algumas
conversas entre amigos. Conversas francas. Tivemos de chamar as coisas pelos
nomes. Houve muita gente que não gostou, mas o verdadeiro amigo é aquele que
lhe diz a verdade. Poderia ter feito um discurso a elogiar a Comunidade dos
Países de Língua Portuguesa e fazer como fazem os políticos: dizer somente
aquilo que é politicamente correcto. Para que serviria isso? Manter essa ilusão
e essa nulidade? Não. Eu acho que, mesmo sem exigir à CPLP nada … A Comunidade
dos Países de Língua Portuguesa é uma organização de todos os países e ninguém
tem responsabilidades extra. Se é uma comunidade, toda a gente tem que estar lá
em pé de igualdade e cada um deve poder fazer conforme as suas possibilidades.
Se não se fizer, não se fez. Mas, que não se iluda as pessoas. Aquilo que eu
digo é que tem que existir uma certa franqueza. Eu sei que há pessoas que podem
achar isto muito utópico, porque acreditam que se deve dizer apenas aquilo que
é politicamente correcto, mas eu não sou político. Portanto, não me vejo na
obrigação de dizer coisas com o objectivo de iludir as pessoas. Resumindo tudo
isto, eu acho que a CPLP, ao fim de vinte anos, devia ter mais ambição: há uma
comunidade de cidadãos que estão ansiosos por actos concretos, por coisas que
toquem as pessoas. Se não há comunicação, se não há espaço para as pessoas se
conhecerem, o que é que vem a ser a CPLP? Um corpo, mais uma vez para os
políticos. Ora, eu não acredito que a função da Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa seja sobretudo uma função política. Aliás, como eles mesmo dizem, é
uma comunidade de afectos. Onde estão os afectos? Há uma distância que impede
que os povos estabeleçam um nível de comunicação mais efectivo que permita que,
de facto, esses afectos se manifestem, se consolidem, se desenvolvam …
E
se transformem em algo mais … Como é que alguém que estuda engenharia
electrotécnica, que se movimento na área das tecnologias acaba a escrever e a
escrever de forma tão vigorosa?
A.S: Eu
acho que há vários motivos. Um deles, e que está na base de tudo, tem a ver com
uma coisa que eu aprendi com o meu pai desde muito cedo e que marcou a minha
maneira de ser, a minha personalidade e a minha maneira de estar na vida. O meu
pai dizia que a vida em muitas cores e é preciso procurar descobri-las. O
problema é que há pessoas que só se concentram numa cor e muitas vezes nem
sequer é aquilo para as quais têm maior vocação. A vida dele foi um exemplo
disso. Foi um indivíduo que viveu a sua época de uma forma extraordinária,
procurando manter aquilo que ele considerava intocável. A questão da dignidade,
da procura da dignidade para ele era uma coisa que era sagrada. O respeito, a
busca por descobrir aquilo que a vida tem de mais lindo, fantástico, atraente.
A partir daí, eu acho que isso marcou a minha maneira de ver as coisas. Nunca
fui um indivíduo rígido, daqueles que dizem “é isto e mais nada”. Não. Eu sabia
aquilo que eu queria, mas procurava também olhar à volta, sempre na perspectiva
de alargar horizontes e ter uma visão mais ampla. A minha formação de base é
electrotecnia, mas eu nunca pratiquei muito electrotecnia. Depois enveredei por
outras áreas e fui evoluindo, sem nunca me sentir agarrado a uma coisa
persistente. Andei sempre à procura de alguma coisa útil. Foi assim que eu fui
parar naquilo que a partir de determinado momento achei que era mais atraente
para mim e fui procurando descobrir cada vez coisas mais novas e coisas mais
interessantes.
É a pele em que sente mais
confortável, a pele de escritor?
Eu acho que a função do
escritor é uma coisa nobre e ao mesmo tempo linda que permite ao cidadão
assumir certas responsabilidades que de outra forma não consegue, digamos,
cumprir da forma mais eficiente. Repare que no meu país – e de uma maneira
geral em África – estamos a viver um momento de interrogação. Nós passamos por
vários períodos, continuamos, em relação aos povos de outros continentes,
tecnologicamente atrasados, continuamos a ter mais conflitos, mais dificuldades
e menos progresso. Em que é que se baseia isso? Quais são os motivos? Bom, dito
de uma forma mais positiva, o que é que deve ser feito para que esta situação
seja mudada. Nós não somos menos inteligentes, não somos mais preguiçosos.
Então, o que é que impede a concretização do sonho de qualquer povo, de ter as
suas necessidades básicas satisfeitas, de ter bem-estar como se sabe que existe
noutras partes do mundo. A questão de fundo com que nós somos confrontados,
para além daquelas que são, digamos, temporárias. Eu assumo como temporárias certas
barbaridades que acontecem e que, do meu ponto de vista, não são mais do que
uma manifestação de certas questões de fundo. Nós temos muita corrupção,
pessoas que alienam aquilo que é de todos. Há muita negligência, muita falta de
sentido de solidariedade em relação ao outro. Nós temos, por exemplo,
governantes extremamente ricos e ao lado temos comunidades extremamente pobres.
Há uma série de questões que nos interpelam e em relação às quais temos de
encontrar uma resposta na perspectiva de enfrentar o problema de fundo. O papel
do escritor permite isso, mais do que qualquer outra actividade. Isso é o que
torna esta a função e esta actividade de escritor como uma coisa relevante, não
só para a geração actual, mas também para as gerações vindouras. A questão de
fundo, mais uma vez, é convencer as pessoas de que somos todos iguais, que
podemos e devemos todos juntos, de braços dados, construir aquilo que é de
todos nós. Esta é a questão de fundo. É agir de forma a criar bem-estar, a
criar harmonia e fazer com que a vida seja cada vez melhor, tanto para a
geração actual, como para a geração vindoura.
A
literatura, nesse sentido, pode abrir caminhos? Como é que se constrói a
identidade nacional, num país que apesar de ser pequeno, como é a Guiné Bissau,
é um país constituído por uma primavera de povos. Tivemos um exemplo talvez de
uma mostra dessa unidade nacional no início deste ano, com a participação da
selecção de futebol da Guiné Bissau na fase final do Campeonato Africano das
Nações. A literatura pode ter o mesmo dom? Pode ter o mesmo poder?
Como eu disse há um bocado,
mais do que qualquer outra actividade, a literatura tem esse poder. Dizia há um
bocado que a Guiné Bissau é um país de vários povos. Existem, de facto, várias
identidades. Existem identidades linguísticas – nós temos na Guiné Bissau pelo
menos sete ou oito línguas que são faladas por uma parte da população, para
além do crioulo que é a língua franca – e existem ainda identidades religiosas.
Uma parte da população é muçulmana, outra é cristã e outra é animista. Ou seja,
nós temos várias identidades, mas, ao lado destas identidades – eu diria mesmo que acima destas identidades –
há a questão da identidade nacional e a identidade nacional deve incluir todas
estas outras identidades e fazer com que os guineenses se sintam, sendo membros
de diferentes identidades, por exemplo, religiosas ou étnicas, também e sobretudo
como guineenses e filhos da Guiné. Como é que se pode fazer isto? É evidente
que há várias formas, mas aquela que eu acho que é uma das mais eficientes é
através da narrativa. O mito é uma forma de construção da identidade através da
narrativa. Quando nós partilhamos os mesmos sentimentos, quando nos partilhamos
a mesma forma de ver as coisas, quando partilhamos os mesmos sonhos sentimo-nos
parte de alguma coisa. É isto que é a identidade nacional. É o impulso que nos
junta e nos distingue dos outros. A narrativa, então, permite que haja uma
espécie de memória colectiva comum. Como dizia um conhecido filósofo francês,
Roland Barthés, o mito faz com que as coisas se pareçam a elas mesmas. Se nós
conseguirmos, através da literatura, fazer com que a nossa percepção do
presente e do futuro seja uma coisa partilhada. Quanto mais partilharmos essa
concepção e essas ideias, mais estaremos a construir os alicerces daquilo que
nos identifica, que nos junta e que nos une. É nisso que a literatura pode,
muito particularmente, contribuir. A nossa educação, por exemplo, tem uma
componente muito forte que é a literatura oral, que está, de certo modo,
condenada a desaparecer porque já não há mais tempo para ouvir os contos
tradicionais porque a televisão tomou esse espaço. As pessoas já não se sentam
para ouvir histórias que têm uma componente pedagógica muito forte e, portanto,
é preciso encontrar outras formas alternativas que nos façam sentir que, de
facto, há coisas que partilhamos – e que mesmo não sendo reais – dão um
contributo importante para que seja construída essa memória colectiva.
Uma
última questão: o que podemos esperar de Abdulai Silá nos próximos tempos? Há
alguma obra que esteja na forja? Algum projecto que tenha em mãos?
Sim, eu sempre tive vários
projectos em mãos. Agora vou publicar um romance e depois uma peça de teatro.
Tenho também contos. Actualmente é a minha ocupação predilecta. Eu sinto que a
literatura pode fazer tanto que me empenho cada vez mais. Marco Carvalho – Macau in “Ponto Final”
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