O estudo da história pátria é
válido, entre outras razões, pelas implícitas no imperativo do oráculo, que o
vai buscar nas palavras do sábio: Nosce
te ipsum. Encarar nossas mazelas, mergulhar em suas origens, traçar o seu
perfil diacrônico – eis o caminho ideal para compreendê-las, lutar contra elas,
transcendê-las.
Na trilha de investigações
como as de Stuart B.Schwartz relativas à Bahia dos séculos XVII e XVIII,
António Manuel Hespanha (Portugal dos seiscentos), Arno e Maria José Wehling
(Rio de Janeiro, de 1751 a 1808), entre outras, Adelto Gonçalves lança uma obra
de importância no campo dos estudos histórico-jurídicos entre nós: Direito e Justiça em Terras d’El-Rei na São
Paulo Colonial - 1709-1822 (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015),
que enfoca especialmente “as atribuições e funções dos juízes ordinários, vereadores,
juízes de fora, provedores, corregedores e ouvidores no período .... por meio
da descrição dos casos mais significativos ocorridos à época, contribuindo
assim para um diagnóstico (ainda que incompleto) da estrutura judiciária”.
O livro é fruto de pesquisas
nos manuscritos da capitania de São Paulo, do Arquivo Histórico Ultramarino, de
Lisboa, via microfilmes depositados no Arquivo do Estado, a par de outros
documentos, como as Atas da Câmara
Municipal de São Paulo. Mas o tema já pertencia ao âmbito de interesse do
autor, que também o é do premiado Gonzaga,
um Poeta do Iluminismo (lembremos que o cantor de Marília era ouvidor em Vila Rica), bem como de Bocage: o Perfil Perdido (o pai do poeta foi juiz de fora e depois
ouvidor na Metrópole).
Era frequente, na época
estudada, o capitão-mor donatário, por falta de juízes, fazer a vez deles. A
moderna separação dos poderes nem era ainda um sonho, para nós, embora
Montesquieu publicasse o seu célebre L’Espritdes
Lois nos meados do século XVIII.
A nomeação de ouvidores pelo
donatário recaía preferentemente em pessoas sem conhecimento do Direito. Assim,
enquanto em Lisboa, no Tribunal Superior, “um magistrado altamente treinado e
experiente julgava apenas alguns casos, no Brasil um analfabeto distribuía numerosas
sentenças em total desacordo com os princípios legais". Mas, ainda quando
o juiz fosse letrado, e justo, não era raro ocorrer o que Adelto relata, por
intermédio de palavras de Critilo, criptônimo do autor das Cartas Chilenas (pág. 313):
Os
zelosos juízes punir querem
A
injúria da justiça: formam autos,
Procedem
às devassas, pronunciam,
E
mandam que estes nomes se descrevam
Nos
róis dos mais culpados. Mas, amigo,
De
que serve fazer-se o que as leis mandam
Na
terra, que governa um bruto chefe,
Que
não tem outra lei mais que a vontade?
A propósito, lembremos também
que a biografia do árcade Dirceu foi a tese de doutorado do Professor Gonçalves
em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo. Assim, é com a
autoridade do conhecimento que pode afirmar ser o teatro de Gil Vicente mais
revelador quanto às magistraturas portuguesas que “a literatura jurídica sua
contemporânea”, e que no Brasil a leitura dos Sermões, de Vieira, das Cartas
Chilenas, das Memórias de um Sargento
de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, “pode revelar com maior nitidez
a corrupção e a face conservadora dos magistrados e seus subordinados do que os
papéis dos arquivos” (pág. 312).
Adelto Gonçalves |
Além desse conhecimento
literário, que, de resto, fundamenta a sua abundante crítica de livros, Adelto
é narrador experimentado, seja como contista (Mariela Morta, de 1977), seja como romancista (Os Vira-Latas da Madrugada, cuja segunda edição, de 2015, tive o
prazer de comentar), do que se vale, competentemente, em pequenos relatos sobre
a atuação de ouvidores “ao tempo das capitanias de São Vicente e de São Paulo e
Minas do Ouro” e da ulterior capitania de São Paulo”. Desse modo, sua prosa
dribla a monotonia que sói embotar trabalhos de pesquisa, fazendo-se, ao
contrário, vívida e fluente.
O estudo faz-nos ver que
muitos de nossos males atuais vêm desses períodos inicial e medial de nossa
formação, nos quais era comum a combinação de enfeixamento de poderes numa só
mão e ignorância da autoridade judiciária, e rotineira a confusão entre
patrimônio público e interesse privado dos donos do poder. Em suas conclusões,
afirma que esse “modelo weberiano de patrimonialismo, que ainda sobrevive não
só nas regiões mais arcaicas do Brasil de hoje, é apenas uma continuação de um
sistema social que veio de Portugal à época da colônia e que define a
organização do Estado como se fosse propriedade familiar de uma casta ou de uma
oligarquia”. Afirmação que se desdobra, contundentemente, no seguinte período:
Como
se sabe, numa sociedade patrimonialista, o caminho mais fácil para se chegar à
riqueza é atuar sob a sombra do Estado: ministros viram banqueiros ou grandes
“consultores”; filhos de ministros transformam-se em potentados da noite para o
dia e profissionais obscuros revelam-se grandes empreendedores depois de uma
rápida passagem pelo governo — o que une todos são os favores obtidos em troca
do chamado tráfico de influência, que inclui o comércio de informações
privilegiadas para empresas ou grupos econômicos.
Felizmente, o mesmo estudo
revela, dialeticamente, a outra face da moeda, isto é, algo das lutas que se
travaram, e se travam, contra esse estado de coisas — talvez conveniente dizer
esse estado de espírito — e a favor da prevalência, nos negócios
governamentais, do interesse público, da população, ante os obscenos interesses
pessoais dos titulares de altos cargos.
É uma luta que ainda não
chegou a bom termo, mas pelo menos prossegue, com progressos visíveis; se bem
que, em momentos de crise, como o atual, obumbrados por tantos retrocessos
igualmente patentes até ao olhar menos pessimista.
A pertinácia dos lutadores da
facção esclarecida, em que brilham nomes como o de Adelto Gonçalves, e em que
cintila, principalmente, a consciência anônima que se acende no espírito dos
cidadãos, nos ajuda a crer que a guerra será por eles vencida. Braga Horta – Brasil
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Anderson
Braga Horta, mineiro de Carangola, poeta, ensaísta e
crítico literário, formado em Direito pela Universidade do Brasil-RJ, vive em
Brasília desde 1960. Foi diretor legislativo da Câmara dos Deputados e
co-fundador da Associação Nacional de Escritores (ANE). É membro da Academia
Brasiliense de Letras e da Academia de Letras do Brasil. Já conquistou 15
prêmios literários. É autor de Proclamações
(Brasília, Editora Thesaurus, 2013), entre outros livros de uma vasta obra.
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