I
No prólogo que escreveu para O jardim dos caminhos que se bifurcam
(1941), Jorge Luis Borges (1899-1986) refere-se à “escrita de notas sobre
livros imaginários”, a uma época em que já havia publicado o conto “A
aproximação a Almotásim” (1935), que constitui um pseudo-ensaio ou uma resenha
ou recensão de um suposto livro publicado em Bombaim três anos antes. Para
“enganar” seus leitores e futuros estudiosos de sua obra, dotara o livro
imaginário de um editor real e um prefácio que teria sido escrito por um
escritor real, mas tanto o autor como o livro, seu enredo e detalhes de alguns
capítulos eram de sua inteira invenção.
Mais de 70 anos depois, o
professor Francisco Maciel Silveira, se não foi tão longe, lançou um livro, Exercícios de caligrafia literária: Saramago
Quase (Curitiba, Editora CRV, 2012), que segue nessas pegadas, pelo menos em
parte, ao reunir ensaios que parecem ficções e que seriam de diferentes autores,
todos preocupados em desvendar a obra ficcional e o teatro da primeira fase de
José Saramago (1922-2010) como autor. Em outras palavras: o ensaísta recorre ao
conceito de polifonia utilizado por Mikhail Bakhtin (1895-1975) no estudo da
obra de Fiodor Dostoievski (1821-1881) para reunir vozes e pontos de vistas
conflitantes a respeito da obra saramaguiana.
São ensaios que analisam o
universo ficcional de Saramago em seu período de formação (1947-1980), até aqui
bem pouco estudado, que vai de Terra do
pecado, romance publicado em 1947, a Que
farei com este livro?, peça de teatro, e Levantado do chão, romance, ambos publicados em 1980. Nesse
período, como se sabe, o autor publicou ainda O ano de 1993, prosa poética, de 1975, Manual de pintura e caligrafia, romance, de 1977, Objecto Quase, contos, de 1978, e A noite, peça de teatro, de 1979.
Para tanto, Maciel imaginou
ensaístas fictícios para que cada um se ocupasse de um determinado livro
saramaguiano daquele período. Por exemplo, Manuel Pelourinho, diplomata, faz a
crítica de Terra do Pecado, título que
por sugestão do editor substituiria o anterior, A viúva, dado originalmente pelo autor, utilizando uma linguagem
polida, sempre preocupada em não ferir susceptibilidades, como um bom
profissional da área de Relações Exteriores, “de punho de rendas e luvas de
pelica”, como disse o próprio Maciel em entrevista a Daniela Guedes, publicada
no site www.artedeescrever.com.br.
O
ano de 1993
é discutido por Apolo Constantinos Jr., que seria astrônomo e antropólogo,
enquanto F. Kohm, microempresário e latinista ocupa-se de Manual de pintura e caligrafia. Já José Roberto Jauss Iser,
jornalista enófilo e gourmet,
interpreta Objecto Quase, enquanto Ângelo
Ruzzante de Pádua, encenador e crítico teatral, discorre sobre A noite, peça teatral, e Legenda Vaz Est
e Samir Savon, doutores em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), estudam
a fundo Que farei com este livro?,
destacando o diálogo intertextual de Saramago com suas fontes. Por fim, Romeu
Raneman da Silva, médico homeopata, analisa o hermético romance Levantado do chão.
Como pode perceber o leitor,
há aqui, para além dos nomes dos ensaístas fictícios, uma explícita ironia com
suas profissões e modo de ver o mundo (e não só o mundo saramaguiano) e tentar
reproduzi-lo em palavras. O sobrenome Jauss Iser, logo se percebe, trata-se de
uma homenagem à famosa Estética da Recepção ou Teoria da Recepção, que propõe
uma reformulação da historiografia literária e da interpretação textual. Como
se sabe, o alemão Wolfgang Iser (1926-2007), professor de Literatura Comparada
na Universidade de Konstanz, na Alemanha, e seu colega Hans Robert Jauss
(1921-1997), igualmente alemão e professor na Universidade de Heidelberg, são os
maiores expoentes da Teoria da Recepção, que fundamenta suas bases na própria
crítica literária alemã.
Para intensificar o conflito,
Maciel ainda tratou de inventar, ao final de cada ensaio, a seção “Cartas à
redação: foro e desaforo do leitor” em que leitores igualmente imaginários
interagem e discutem as formulações críticas aventadas pelos ensaístas
fictícios.
II
Dos relatos de Objecto Quase, Jauss Iser diz apreciar,
sobretudo, “Cadeira”, que conta o trabalho de conspiração de um voraz e subversivo
caruncho a roer o madeirame da cadeira em que diariamente assentava-se o
ditador António de Oliveira Salazar (1889-1968), antigo professor na
Universidade de Coimbra, que exerceu o mando com mão de ferro em Portugal por
quase meio século.
Obviamente, trata-se de uma
alegoria, que procura reconstituir os últimos anos do patriarca celibatário
(porque casado com a pátria, como dizia o discurso fascista da época) até a sua
derrubada, que antecede em seis anos o fim da ditadura que leva o seu nome. Para
o fictício Jauss Iser, o conto pode ser definido como “autópsia de uma queda”
(ou de uma época?), ao registrar a causa
mortis do salazarismo, ou seja, o acidente vascular-cerebral que levou o
ditador para a cova e colocou o seu regime diante de um corredor que só
chegaria mesmo ao fim a 25 de abril de 1974 com a chamada “Revolução dos
Cravos”.
Por aqui, o leitor já pode
ter uma ideia do que encontrará neste livro. Recomenda-se apenas que esteja bem
preparado e solidamente estruturado quanto aos conceitos literários, além de
conhecer com alguma profundidade boa parte da obra saramaguiana porque, muitas
vezes, não saberá se o que lê é do original saramaguiano ou inventado pelo estudioso
de sua obra, tal a presença de fenômenos de intertextualidade. Com certeza, o
Prêmio Nobel de 1998, o único da Literatura Portuguesa, não terá tido até agora
um especialista tão conhecedor dos meandros, às vezes até enigmáticos, de sua
obra.
III
Francisco Maciel Silveira |
Professor titular de
Literatura Portuguesa na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)
da USP, onde obteve os títulos de mestre, doutor e livre-docente, com trabalhos
em torno da oratória sagrada dos padres António Vieira (1608-1697) e Manuel
Bernardes (1644-1710) e da comediografia de António José da Silva (1705-1739), o
Judeu, Francisco Maciel Silveira é crítico literário, com ensaios e resenhas publicados
em periódicos do Brasil e do exterior. Poeta, ficcionista, dramaturgo e
ensaísta com mais de duas dezenas de prêmios, atua na docência, pesquisa e orientação
com ênfase no Classicismo, no Barroco, no Realismo e no Teatro Português.
É autor dos livros de contos Esfinges (1978) e A caixa de Pandora: aquela que nos coube (1996) e de poemas Macho e fêmea os criou, segundo a paixão...
(1983), além de outros ainda na gaveta. Nas áreas didática e ensaística,
publicou ainda Português para o segundo
grau (1979; 5ª ed. 1988); Aprenda a
escrever (1985; 2ª ed. 1989); Padre
Manuel Bernardes – Textos doutrinais (1981); Poesia clássica (1988); Literatura
barroca (1987); Concerto barroco às
óperas do Judeu (1992); Palimpsestos
– uma história intertextual da Literatura Portuguesa (1997; 2ª ed., 2008); Fernando Pessoa(s) de um drama (1999); Ó Luís, vais de Camões? (2001; 2ª ed,.
2008); Saramago – eu-próprio o outro?
(2007); Eça de Queiroz: O mandarim do
Realismo português (2010); e Canteiro
de obras (2011). É responsável pelo site Pinceladas em que discorre sobre a pintura alheia: http://www.pinceladas-fms.com.br. Adelto Gonçalves – Brasil
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Exercícios de caligrafia
literária: Saramago Quase, de Francisco Maciel Silveira. Curitiba: Editora
CRV, 174 págs., 2012, R$ 42,87. Site: www.editoracrv.com.br E-mail: sac@edirtoracrv.com.br. Apresentação do
livro em video pelo autor aqui.
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Adelto Gonçalves é doutor
em Literatura
Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de
Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona
brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002), Bocage – o perfil perdido
(Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio
Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2012), e Direito e Justiça em
Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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