Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

segunda-feira, 28 de março de 2016

Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena - A outra face do homem

São cartas de amor que não entram na intimidade do casal, mas entram no coração do homem. A filha chama-lhes “cartas com amor”, mais do que “cartas de amor”. Um livro para conhecer melhor o mito em que se tornou o homem Amílcar Cabral.



Ele de pasta de couro na mão, fato e gravata, uma gabardine branca debaixo do braço. Ela de saia comprida preta, um casaco da mesma cor e um ramo de flores. Os dois sorriem, como em algumas das (poucas) fotografias do casal que aparecem em Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena / A Outra Face do Homem – organizado pela filha e historiadora Iva Cabral, e pelos também editores da Rosa de Porcelana, Márcia Souto e Filinto Elísio.

Porque este livro de capa dura e maior do que o habitual tem mais reprodução de cartas do que imagens do homem que marcou a História de libertação nacional da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, do homem que foi e continua a ser um dos grandes ícones da luta contra o colonialismo português. São cartas de amor que não entram na intimidade do casal, mas entram no coração do homem. A filha chama-lhes “cartas com amor”, mais do que “cartas de amor”.

Amílcar Cabral pode dizer a Helena que tem saudades da amada, mas usa a escrita sobretudo como um contador de histórias do seu quotidiano. Por isso às vezes parece que estamos a ler diários, onde descreve a vida da Lisboa daquele tempo, ou o impacto que uma cidade como Luanda teve em si.

São, é verdade, cartas que revelam as diversas fases da vida do casal que se conheceu no Instituto Superior de Agronomia. Entre o namoro, que começou em 1946, e o casamento que durou até meados dos anos 1960 (a própria filha não se lembra exactamente da data da separação): os dois estiveram juntos uns 20 anos. O Cabral que primeiro aparece é o jovem de 22 anos, nascido na Guiné-Bissau mas criado em Cabo Verde, ainda estudante em Lisboa, a escrever a uma Maria Helena, portuguesa, natural de Chaves.

Em Outubro de 1946 começa por tratar “Maria Helena” por você. Eram então colegas no curso de Agronomia em Lisboa. Deseja-lhe boa sorte para os exames. Fala-lhe em saudades uns meses depois. E em Março de 1948 confessa-lhe, a partir da Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, e já depois de passar em revista o seu dia: “Sabes que já não sei estudar sozinho? Sabes que eu já não sei estar sem a tua presença? Vem depressa Lena, que te espera ansiosamente o muito dedicado, Amílcar”. E assim sucessivamente, com cartas diárias e longas, enviadas de Lisboa mas também de Angola (Luanda e Benguela) ou de Paris, até ao dia em que planearam a fuga de Helena e a filha Iva para França em 1960.






















Cabral era poeta que escrevia sonetos de amor: “Quero cantar teus olhos, teu falar, / Teus gestos, teus suspiros de Mulher…/Num verso só quero consumar /Toda a expressão imensa, do teu ser”. Era o escritor que pedia o julgamento crítico à sua “Lena querida”: depois de lhe dizer que tinha escrito um conto, e que este já estava dactilografado, informa-a: isso “não implica que não me possas indicar as deficiências que notares”. 

A correspondência está dividida em duas décadas, 1946-1950 e 1950-1960. Assim se vai revelando a personalidade amorosa e intelectual do Cabral fundador do Partido Africano para a Independência de Cabo Verde e Guiné-Bissau (PAIGC, em 1959), do guerrilheiro contra o exército português (assassinado, porém, em Conacri por membros do PAIGC, em 1973), do herói de muitos hoje pela ideologia anti-racista que proclamou, pelo ícone da negritude em que se tornou.

Porque nem só de amor e do quotidiano fala a Helena, portuguesa, branca – descreve a segregação racial na África do Sul (29/08/48) onde “aos brancos (…) não lhes convém que estes [negros] se tornem seus concorrentes, que os filhos dos negros, evoluídos, instruídos, façam concorrência aos seus filhos na luta pela vida”. Há uma mistura entre o quotidiano, em que conta o que andou a ler, transcreve passagens de autores proibidos como Jorge Amado, e o político, em que tece críticas ao “demasiadamente burguês”, “ar que se respira” na Avenida Casal Ribeiro, para onde foi viver (23/08/50).

Insiste igualmente nas questões raciais, falando dos problemas que existem no Brasil, aproveitando para criticar Portugal onde “o negro é afastado do exército, da marinha, da Magistratura, etc” (28/08/50). Cinco anos depois, mostra-se chocado com o que vê em Luanda, “das coisas mais miseráveis que imaginar se pode em matéria de ambiente colonial”. De alguma maneira falava, nas entrelinhas, da discriminação racial que os dois viveram na Lisboa da época onde um casal misto não era bem aceite. E antevia o que viria mais tarde a escrever no panfleto The Facts about Portugal’s African Colonies.

Na última carta que se publica aqui nesta edição, datada de 30 de Abril de 1960, elenca por items as “decisões fundamentais para o nosso futuro, para a vida” e organiza metodicamente a partida dela para Paris. São gestos corajosos de alguém que podia ser apanhado pela PIDE a qualquer momento.

“Não foi só rebelde”

O leitor encontrará apenas um lado da história que é a descrita por Cabral mas ouvirá também a voz de Helena. Quando decidiu publicar as cartas do pai, e as entregou à editora, Iva Cabral não sabia que, mais tarde, haveria também de se deparar com as da mãe. Mas quis manter o projecto assim, até porque se nota que “há um diálogo”, diz ao Ípsilon: “O meu pai está sempre a escrever o que pensa para ter o eco da minha mãe, é uma dupla que se constrói conjuntamente”, sublinha. A publicação das cartas foi também uma forma de honrar a mãe, “uma mulher extraordinária”.












































Estas não são as únicas cartas que Amílcar Cabral escreveu a Helena – há mais, até depois de 1960, que a filha decidiu não publicar. “Escolhi as cartas até antes do início da luta (de libertação nacional). A última é onde combina com a minha mãe como fugir de Portugal. Diz à minha mãe: ‘larga tudo’. Eu e a minha mãe saímos de Portugal logo depois dessa carta”, lembra. “Fomos de comboio através de Espanha para Paris.”

Quis mostrar a época em que ainda era estudante, engenheiro ligado a Portugal, trabalhando na Guiné-Bissau ou em Angola quando ainda não tinha tomado “a decisão de ir para a luta”. Entre a primeira e última carta, a historiadora nota que houve uma grande evolução: primeiro Cabral quer ir para África, mas depois quer ir para fazer algo, a luta de libertação.

A historiadora Iva Cabral releu as cartas para as organizar em livro e, como filha, garantiu que não ia “revelar intimidades”.

Apesar de conhecer muito bem o pai - o humor, o romantismo – uma coisa surpreendeu-a: a escrita. “Ele era poeta, disse-me que deixou de ser poeta quando leu Neruda”. Mas não pensava que pudesse ser tão bom na prosa. “Não tenho só a visão de filha, mas também de historiadora. Acho que as cartas só o dignificam mais pelo humanismo que demonstram. Não é qualquer jovem que tem essa capacidade de escrever e pensar tão bem aos 22 anos. E dignificam também a minha mãe, porque ele precisava dela para dar o passo. Há uma frase que gosto muito em que ele lhe diz: ‘a única certeza que tenho é que quero ir para a África. A outra é que ‘te amo’.

Estas cartas revelam o amor entre os pais, sim. Porém, uma das grandes preocupações da historiadora foi mostrar aos jovens que “um líder se constrói a si mesmo: estudando, namorando, tendo amizades, amando a cidade em que vive. Ninguém nasce líder”. Quis revelar a outra face do mito, do herói. “Há muita juventude que o conhece só como o rebelde. Queria que conhecessem o humano, a pessoa que ama e que diz ‘vamos estudar’, que ama os amigos, que tem objectivos na vida. Há muito jovem que é cabralista e tem que saber que ser cabralista não é só ser rebelde. Tem que haver ética, moral.” Joana Henriques – Portugal in Jornal "Público"



Joana Gorjão Henriques - Entrei para o PÚBLICO, no final de 1999, para estagiar na Cultura, onde fiquei durante dez anos, cobrindo um pouco de tudo e muito de teatro. Nessa altura, as vozes de contestação às medidas dos ministros eram diárias e a cobertura da política cultural intensa. Ao mesmo tempo, sempre escrevi sobre outras áreas. Em 2007 participei no lançamento do novo Ípsilon, onde estive como editora adjunta até 2009. A seguir fiz uma pausa na profissão e no país. Primeiro, ganhei a bolsa de um ano da Nieman Foundation for Journalism na Universidade de Harvard, EUA; depois, fui estudar Sociologia na London School of Economics, em Londres, e nesses dois anos foi quase como aprender tudo de novo. Desde o meu regresso em Julho de 2011 que escrevo sobre várias áreas, cá dentro e lá fora. jgh@publico.pt

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