Para
aqueles que hoje medem a importância de um homem pelo saldo de sua conta
bancária, decididamente, Fernando Pessoa não teria sido alguém que pudesse dar
lições de empreendedorismo
Em janeiro de 1926, aos 38
anos de idade, com alguma experiência no campo econômico e comercial, o poeta
Fernando Pessoa (1888-1935) entendeu que tinha conhecimentos suficientes para
editar uma publicação mensal ligada a esses dois setores, a “Revista de Comércio
e Contabilidade”, que fundou em Lisboa em parceria com seu cunhado Francisco
Caetano Dias. Mas, olhando sem “parti pris”, o currículo que o poeta carregava
era a de empreendedor desastrado e de empregado de escritório, um
guarda-livros, tal como o seu heterônimo Bernardo Soares, que, se experiência
tinha, seria só para ensinar a arte do trabalho contábil. Na verdade, Pessoa
ganhava a vida mais como tradutor de inglês para o português, o que lhe
permitia desempenhar a atividade para várias casas comerciais, aproveitando-se
da larga dependência de Portugal em relação a Inglaterra.
Como empreendedor, de fato,
nunca teve êxito: a própria publicação dedicada ao comércio e à contabilidade
teria vida efêmera, apenas seis números, assim como a editora e tipografia
Íbis, que, instalada em 1907 no bairro da Glória, mal chegou a funcionar. Em
1921, fundou a Editora Olisipo, de ruinosa carreira comercial. Nela publicou os
seus “English Poems I e II” e “English Poems III”, e “A Invenção do Dia Claro”,
de Almada Negreiros (1893-1970). Em 1923, a Olisipo lançou o folheto “Sodoma
Divinizada”, de Raul Leal (1886-1964), que foi alvo de um ataque moralizador da
Liga dos Estudantes de Lisboa e apreendido por ordem do governo, junto com as
“Canções”, de António Botto (1897-1959).
Pela Olisipo, Pessoa pretendia
lançar uma série de livros importantes — a maioria traduzida (ou com tradução
prevista) por ele mesmo, talvez para evitar maiores custos. Na acanhada Lisboa
de sua época, com meia dúzia de livrarias e editoras, esse também não seria um
ramo muito promissor para quem não dispunha de maiores recursos para
empreendimentos mais ousados num mercado restrito. E já ocupado por algumas
casas tradicionais, que se acotovelavam no Chiado e na Baixa.
Levando em conta, porém, a boa
formação que Pessoa recebera na África do Sul, de 1896 a 1905, seria de esperar
que tivesse tido uma carreira profissional de maior sucesso — “a vida que podia
ter sido, e que não foi”, como diria o poeta Manuel Bandeira (1886-1968) —, e
não a obscura vida de empregado de escritório, o que lhe permitiu apenas viver
em quartinhos em casas de familiares ou alugados na rua da Glória, no largo do
Carmo, nas ruas Passos Manuel, Pascoal de Melo, D. Estefania e Almirante
Barroso, entre outros locais, até que se transferiu de vez para a casa da
família na rua Coelho da Rocha, 16, onde viveu os últimos 15 anos de sua
vida e hoje está a fundação que leva o
seu nome.
Para aqueles que hoje medem a
importância de um homem pelo saldo de sua conta bancária, decididamente,
Fernando Pessoa não teria sido alguém que pudesse dar lições de empreendedorismo
ou organização comercial. Nem mesmo ânimo — ou, quem sabe, maiores recursos
financeiros — teve para estudar na Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa, quando retornou de sua temporada africana, como pretendia. Talvez
tivesse tido uma boa carreira como professor, se houvesse primeiro superado a
timidez, o que nunca fez.
Ao passar os anos de sua
formação em Durban, na África do Sul, à época colônia britânica, em companhia
da mãe e do padrasto, o jovem Pessoa teve a oportunidade de estudar na Convent
School, uma escola privada (liceu) e, depois, na Commercial Schoool, de 1902 a
1903, e na Durban High School, sob a orientação de Mr. W.H. Nicholas, homem de
personalidade notável que, possivelmente, serviu de modelo para o seu
heterônimo Ricardo Reis.
Na Durban High School, fez um
curso de contabilidade e comércio, depois de ter sido um aluno brilhante no
liceu nas disciplinas de Humanidades, como se pode constatar no livro “Fernando
Pessoa na África do Sul: a Formação Inglesa de Fernando Pessoa”, de Alexandre
E. Severino (Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1983). Se a sua educação havia
sido essencialmente humanista até àquela altura, o que o teria levado à mudança
tão brusca? Provavelmente, porque sua família entendia que um curso comercial
lhe daria conhecimentos mais práticos para ganhar a vida. Até porque na colônia
britânica não havia, àquela altura, escolas superiores, o que se deu só a
partir de 1918. Se quisesse (e pudesse), teria de fazer o curso superior em
Londres.
Fosse como fosse, foi em seu
arsenal de conhecimentos comerciais que Fernando Pessoa se baseou quando
decidiu escrever textos para a “Revista de Comércio e Contabilidade”. São
textos um tanto ingênuos, do ponto de vista comercial, que incluem uma visão do
mundo da publicidade, mas que trazem a marca inconfundível do literato que os
produziu. Tanto que levou o ficcionista, poeta e jornalista português António
Mega Ferreira, ex-editor do “Jornal de Letras”, a recolhê-los em “Fernando
Pessoa. O Comércio e a Publicidade” (Lisboa, Cinevoz/Lusomedia, 1986).
São estes textos que agora
ganham versão em italiano em “Fernando Pessoa: Economia & Commercio:
Impresa, Monopólio, Libertà” (Perugia, Edizioni dell´Urogallo, 2011),
traduzidos pelo professor Brunello De Cusatis, da Faculdade de Letras e
Filosofia da Universidade de Perugia,
autor de uma esclarecedora introdução. O volume inclui ainda o iluminado
ensaio-posfácio “O Evolucionismo Comercial de Fernando Pessoa”, do poeta, tradutor
e ensaísta Alfredo Margarido (1928-2010), recentemente falecido, a cuja memória
o livro é dedicado.
Tudo o que se disse linhas
acima se pode constatar neste trecho: “Um comerciante, qualquer que seja, não é
mais do que um servidor do público, ou de um público; e recebe uma paga, a que
chama o seu “lucro”, pela prestação desse serviço. Ora toda gente que serve
deve, parece-nos, buscar a agradar a quem serve. Para isso é preciso estudar a
quem se serve (...); partindo não do princípio de que os outros pensam como
nós, ou devem pensar como nós (...), mas do princípio de que, se queremos
servir os outros (para lucrar com isso ou não), nós é que devemos pensar como
eles” (FERREIRA, 1986, p. 46).
Pode-se a partir deste texto
concluir que Pessoa pensava um pouco longe para o seu tempo. Afinal, naqueles
anos em que a publicidade ainda começava a se impor, poucos fabricantes levavam
em conta pesquisa de mercado antes de lançar qualquer produto. Funcionavam como
senhores todo-poderosos que seguiam só a própria intuição e gosto - o público
que tratasse de consumir o que ofereciam. Até porque a concorrência era mínima.
E Pessoa já advogava que se devia consultar o gosto do consumidor antes de
colocar qualquer novidade no mercado. Era um pensamento revolucionário.
Foi a partir de 1925 que
Pessoa passou a trabalhar também na área de publicidade e propaganda, ao
conhecer Manuel Martins da Hora, que seria o fundador da Empresa Nacional de
Publicidade, a primeira agência de publicidade de Portugal. Mas a experiência
não foi bem sucedida, como lembra De Cusatis na introdução. Foi por volta de
1926-1927 que o poeta imaginou um slogan para a Coca-Cola, que então estava
sendo lançada em Portugal, representada pela firma Moitinho d´Almeida Lda.,
empresa para a qual o poeta prestou serviços como profissional autônomo.
O slogan dizia: “Primeiro
estranha-se. Depois entranha-se”. Há um jogo de palavras que se pode chamar de
inventivo ou genial, mas, por trás, havia certa sugestão que hoje nem mesmo um
publicitário muito ousado seria capaz de formular, ainda mais pensando nas
conveniências de seu cliente. Em outras palavras: o que se queria dizer com
aquilo é que, primeiro, a bebida teria um gosto um tanto estranho para a época,
mas que, depois, com a continuidade, poderia oferecer certo êxtase, obviamente
em função de sua toxicidade.
O resultado foi óbvio: não
durou muito para que a autoridade sanitária de Lisboa proibisse a distribuição
do produto e determinasse o seu sequestro. Convenhamos: do ponto de vista
comercial, foi um desastre. A tal ponto aquilo ficou marcado que a Coca-Cola só
haveria de voltar ao mercado português quase meio século depois, ao final da
ditadura fascista (1928-1974), cujo grande ícone foi o professor António de
Oliveira Salazar (1889-1970). Olhando com olhos comerciais, o slogan só poderia
ter saído da cabeça de um inconsequente. Só mesmo um nefelibata seria capaz de
imaginar que aquilo não poderia trazer consequências funestas para seu cliente,
ainda mais na sociedade portuguesa de então em que as forças do fascismo
começavam a cobrir a nação com suas asas funéreas. Isso não significa dizer que
o slogan não tenha qualidades.
Pelo contrário. Preenche todos
os requisitos modernos que se exigem de um bom slogan publicitário. Tanto que,
recentemente, em Portugal, por ocasião do lançamento do “Frize”, uma água
limão-cola, o slogan foi recriado para: “Primeiro prova-se; depois aprova-se”,
como observou Andréia Galhardo, da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da
Universidade Fernando Pessoa (UFP), do Porto, no artigo “Sobre as práticas e
reflexões publicitárias de Fernando Pessoa” (http://bit.ly/hStOCn).
É claro que, ao que se saiba,
até hoje, ninguém escreveu isto com todas as letras, até porque Pessoa foi
canonizado e entronizado no altar dos pais da pátria portuguesa, ainda que, em
vida, nunca ninguém lhe tenha dado muita importância. Até para publicar seus
versos sempre encontrou dificuldades, o que o levou a acumular seus escritos
numa arca, que foi o inestimável espólio que legou à Literatura Portuguesa.
Mas, seja como for, Pessoa não
pode ser tomado como gênio das finanças ou da publicidade — até porque, nestes
dois campos de negócios, a genialidade está diretamente ligada à capacidade de
fazer os clientes obterem lucros e, obviamente, também lucrar muito com eles.
Nem por isso se pode deixar de reconhecer em Pessoa, depois da leitura destes
textos didáticos, um funcionário de boa formação comercial e econômica, mas daí
a imaginá-lo um mago das finanças ou do mercado é ir além da conta.
Não se pode deixar de
assinalar também que Pessoa sempre foi um antidemocrata pagão, antiliberal e
anticatólico, mais propenso a aceitar as ideias da maçonaria, o que fez no
artigo “As Associações Secretas: análise serena e minuciosa a um projeto de lei
apresentado ao Parlamento”, publicado em 1935 no “Diário de Lisboa”, e de certo
esoterismo, características que De Cusatis ressaltou com sagacidade em
“Esoterismo, Mitogenia e Realismo Político em Fernando Pessoa. Uma Visão de
Conjunto” (Porto, Edições Caixotim, 2005).
Era um homem um tanto
contraditório, uma alma angustiada, o que, provavelmente, o levou à dependência
alcoólica. Mas era, sobretudo, um excepcional poeta. Educado em escolas que
seguiam as mais puras tradições britânicas, se tivesse ido para Londres, em
1905, em vez de Lisboa, como era de sua pretensão, para tornar-se um poeta
inglês, é de imaginar que teria tido melhor sorte na vida, mas aqui de novo
adentramos o perigoso terreno do imponderável: “a vida que podia ter sido, e
que não foi...” Adelto Gonçalves –
Brasil in “Jornal Opção”
Adelto Gonçalves é doutor
em Literatura
Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de
Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona
brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002), Bocage – o perfil perdido
(Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio
Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2012), e Direito e Justiça em
Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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