Em 13 de Junho de 2014, um juiz do Paraná
desmarcou uma audiência porque um trabalhador rural compareceu ao fórum de
chinelos, conduta considerada "incompatível com a dignidade do Poder
Judiciário". Não muito antes, policiais do Distrito Federal fizeram
requerimento para que fossem tratados por "Excelência", tal qual
promotores e juízes.
Há alguns meses, foi noticiado que outro
juiz, este do Rio de Janeiro, entrou com uma ação judicial para obrigar o
porteiro de seu condomínio residencial a tratar-lhe por "doutor".
Tais fatos poderiam apenas soar como anedotas
ridículas da necessidade humana de criar (e pertencer a) castas privilegiadas.
No entanto, os palácios de mármore e vidro da Justiça, os altares erguidos nas
salas de audiência para juízes e promotores e o tratamento
"Excelentíssimo" dispensado às altas autoridades são resquícios
diretos da mal resolvida proclamação da República brasileira, que manteve
privilégios monárquicos aos detentores do poder.
Com efeito, os nobres do Império compravam
títulos nobiliárquicos a peso de ouro para que, na qualidade de barões e
duques, pudessem se aproximar da majestade imperial e divina da família real.
Com a extinção da monarquia, a tradição foi
mantida por lei, impondo-se diferenciado tratamento aos "escolhidos",
como se a respeitabilidade dos cargos públicos pudesse, numa república, ser
medida pela "excelência" do pronome de tratamento.
Os demais, que deveriam só ser cidadãos,
mantiveram a única qualidade que sempre lhes coube: a de súditos (não poderia
ser diferente, já que a proclamação não passou de um movimento da elite, sem
nenhuma influência ou participação popular). Por isso, muitas Excelências
exigem tratamento diferenciado também em sua vida privada, no estilo das
famosas "carteiradas", sempre precedidas da intimidatória pergunta:
"Você sabe com quem está falando?".
É fato que a arrogância humana não seduz
apenas os mandarins estatais.
A seleta casta universitária e religiosa
mantém igualmente a tradição monárquica das magnificências, santidades,
eminências e reverências. Tem até o "Vossa Excelência Reverendíssima"
(esse é o cara!). Somos, assim, uma República com espírito monárquico.
As Excelências, para se diferenciarem dos
mortais, ornam-se com imponentes becas e togas, cujo figurino é baseado nas
majestáticas vestimentas reais do passado. Para comparecer à sua presença, o
súdito deve se vestir convenientemente. Se não tiver dinheiro para isso, que
coma brioches, como sugeriu a rainha Maria Antonieta aos esfomeados que não
podiam comprar pão na França do século 18.
Enquanto isso, barões sangram os cofres
públicos impunemente. Caso flagrados, por acaso ou por alguma investigação
corajosa, trata a Justiça de soltá-los imediatamente, pois pertencem ao mesmo
clã nobre (não raro, magistrados da alta cúpula judiciária são nomeados pelo
baronato).
Os sapatos caros dos corruptos têm livre
trânsito nos palácios judiciais, com seus advogados persuasivos (muitos deles
são filhos dos próprios julgadores, garantindo-lhes uma promiscuidade
hereditária), enquanto os chinelos dos trabalhadores honestos são barrados.
Eles, os chinelos, são apenas súditos. O único estabelecimento estatal digno
deles é a prisão, local em que proliferam.
A tradição monárquica ainda está longe de
sucumbir, pois é respaldada pelo estilo contemporâneo do liberal-consumismo,
que valoriza as pessoas pelo que têm, e não pelo que são.
Por isso, após quase 120 anos da proclamação
da República, ainda é tão difícil perceber que o respeito devido às autoridades
devia ser apenas conseqüência do equilíbrio e bom senso dos que exercem o
poder; que as honrarias oficiais só servem para esconder os ineptos; que,
quanto mais incompetente, mais se busca reconhecimentos artificiais etc.
Numa verdadeira República, que o Brasil ainda
há de um dia fundar, o único tratamento formal possível, desde o presidente da
nação ao mais humilde trabalhador (ou desempregado), será o de
"senhor", da nossa tradição popular.
Os detentores do poder, em vez de ostentar
títulos ridículos, terão o tratamento respeitoso de servidor público, que o
são. E que sejam exonerados se não forem excelentes!
Seus verdadeiros chefes, cidadãos com ou sem
chinelos, legítimos financiadores de seus salários, terão a dignidade promovida
com respeito e reverência, como determina o contrato firmado pela sociedade na
Constituição da República.
Abaixo as Excelências! Rodrigues de Lima – Brasil in “Folha S. Paulo”
Fausto
Rodrigues de Lima – Promotor de Justiça do Distrito Federal
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