I
Adelto Gonçalves |
A rigor, foi o historiador português António
Manuel Hespanha, com o livro As Vésperas do Leviathan: instituições e poder
político – Portugal – sec. XVII (Coimbra, Almedina, 1994), quem abriu a porta
para uma nova modalidade de se escrever a História, ao fazer a arqueologia do
poder concelhio em Portugal, apontando temas voltados à administração e ao
Estado. Tantos anos passados, a porta aberta por Hespanha não só permitiu a
outros historiadores portugueses que vislumbrassem essa nova maneira de se
re(escrever) a História como atraiu uma grande parte dos estudiosos brasileiros
do período colonial – exatamente aqueles mais talentosos e da geração que teve
como orientadora a professora Laura de Mello e Souza, da Universidade de São
Paulo.
O resultado dessa forma nova de se encarar a
História pode ser constatado em O governo dos povos, de Laura de Mello e Souza,
Junia Ferreira Furtado e Maria Fernanda Bicalho, orgs. (São Paulo: Alameda
Editorial, 2009), que reúne trabalhos apresentados e discutidos por estudiosos
de universidades brasileiras e portuguesas nos últimos dias de agosto e
primeiros dias de setembro de 2005, em Parati-RJ, durante o seminário denominado
“Governo dos Povos”.
Desses 28 estudos, dois serão destacados aqui
não porque sejam superiores em qualidade aos demais, mas exatamente porque se
referem a temas ainda pouco estudados, aos quais este investigador também se
dedica nestes dias, ou seja, o funcionamento da câmara municipal de São Paulo e
de outras câmaras ao tempo da capitania de São Paulo e do Brasil colonial:
“Camaristas, provedores e confrades: os agentes comerciais nos órgãos do poder
(São Paulo, século XVIII)”, de Maria Aparecida de Menezes Borrego, e “O
município no Brasil colonial e a configuração do poder econômico”, de Vera
Lucia Amaral Ferlini.
As articulações entre o poder central – ou
seja, os altos representantes da Coroa (governador e capitão-general e ouvidor)
e as câmaras municipais constituem um tema clássico na historiografia, mas que
hoje deve ser visto por novos olhares, já que as últimas investigações têm
deixado clara a necessidade de reformular certas interpretações cristalizadas
que não convencem ante a evidência de novos fatos.
Uma dessas revisões que se deve fazer, como
alerta Vera Ferlini, é que já não se pode aceitar pacificamente a afirmação de
que as câmaras tenham sido reduto de oligarquias autônomas, ou seja, de
senhores de terras, grandes proprietários rurais. Já na década de 1720, com o
fim da capitania de São Paulo e Minas do Ouro e a separação de Minas Gerais, a
presença de comerciantes na Câmara da cidade de São Paulo é uma evidência de
que aquela idéia não é tão pacífica assim. Ao contrário do que aprendemos com
Caio Prado Júnior, a nossa elite colonial não foi constituída apenas por
proprietários rurais.
É verdade que, no Brasil colonial, dependendo
das circunstâncias, ainda seriam válidos certos princípios – impedimento a quem
descendesse de “nação infecta” ou ganhasse a vida com trabalhos manuais – que
se aplicavam no Reino, mas por aqui essas exigências já começavam a se tornar
mais fluidas. Afinal, seriam poucos, mesmo aqueles que se apresentavam como a
elite agrária paulista, que podiam se assumir como “brancos”. Dificilmente,
algum daqueles pró-homens, que haviam ascendido a potentados e que geralmente
andavam à frente de batalhões de escravos índios (ou carijós) e negros, não
teria tido entre seus ascendentes indígenas ou negros ou miscigenados.
II
Há um documento (AHU, Conselho Ultramarino,
capitania de São Paulo, caixa 6, doc. 650, 26/10/1728) – citado aqui à guisa de
explicação porque não consta de nenhum dos textos reunidos no livro resenhado –
em que os camaristas da vila de Santana do Parnaíba, que à época seria um
povoado pouco menor que o de São Paulo, cidade desde 1711, mostram-se
indignados e ressentidos com a perseguição que o governador e capitão-general
Antônio da Silva Caldeira Pimentel lhes movia, “inferiorizando-os perante os
visitantes e os do Reino”.
É de especular que uma das razões para isso
seria a maneira rude de se comportar desses camaristas, que levariam o
governador e os visitantes e os reinóis a deles escarnecer. Outra talvez fosse
a cor da pele. Quem sabe tivessem feições indígenas. Ou traços africanos. Foram
desses homens que saíram aqueles que se embrenharam na mata para descobrir ouro
e pedras preciosas em Goiás e Cuiabá.
É de supor ainda que esses potentados fossem
analfabetos ou que talvez manejassem mal o idioma português, acostumados que
estariam ao linguajar indígena de seus empregados ou escravos. Mas aqui também
é preciso cautela nas conclusões porque não se sabe se os níveis de
analfabetismo seriam assim tão elevados, embora Hespanha em As Vésperas do
Leviathan diga isso em relação às câmaras do Reino. E se o analfabetismo mesmo
entre os camaristas nas vilas do Reino era acintoso, é de imaginar que na
colônia seria maior. Até porque os índices de analfabetismo em Portugal e no
Brasil continuariam altos até o século XX.
No entanto, há outro documento dessa época
(AHU, Conselho Ultramarino, capitania de São Paulo, caixa 5, doc.615,
11/11/1727) que se refere a uma festa denominada das Onze Mil Virgens, que era
celebrada ao som de tambores havia muitos anos, desde a época em que São Paulo
era vila, que tinha como principais entusiastas os estudantes, que costumavam
se mascarar nesse dia. Para organizá-la, os estudantes pediam licença ao
governador na sede da capitania e aos capitães-mor nas vilas, embora em
determinadas ocasiões os ouvidores também tenham assumido a responsabilidade
pela autorização para que saíssem às ruas. Se havia tantos estudantes assim,
tanto na cidade ou na antiga vila de São Paulo como nas demais vilas da
capitania, dispostos a organizar uma festa pública tida como tradicional, é
porque o contingente de alfabetizados não seria tão irrisório como imaginamos.
Também é de supor que as características
físicas do homem paulista tenham- se alterado a partir do final da primeira
metade do século XVIII, com o retorno daqueles que haviam ido se aventurar em
Goiás e Cuiabá, diante do esgotamento das minas, com o afluxo de reinóis –
especialmente da região do Minho –, com a presença cada vez maior dos escravos
africanos e de pessoas enriquecidas com o trato mercantil. Tudo isso se
refletiu na estrutura da família patriarcal, mas necessariamente não quer dizer
que a pele dos oligarcas paulistas tenha-se embranquecido. A não ser que
confundamos “embranquecimento” com ascensão social, ou seja, enriquecimento
material.
Muitos destes homens enriquecidos com o
comércio – que desempenhavam funções mecânicas tidas como abjetas, pois
manuseavam valores e manipulavam mercadorias – casaram com filhas de antigos
oligarcas, assumindo seus negócios com o tempo. Não se pode esquecer também que
esses oligarcas tinham muitas concubinas negras, indígenas e miscigenadas,
acumulando filhos fora do casamento que acabavam integrados ao seio da família
patriarcal.
Maria Aparecida de Menezes Borrego diz que os
homens de negócios casavam seus filhos varões com filhas da elite agrária
(p.333) ou os encaminhavam para a carreira eclesiástica, mas suas filhas
desposavam outros comerciantes. É provável que a continuação dos negócios da
família da elite agrária fosse entregue aos genros, que já vinham de famílias
de comerciantes. Em função disso, logo estes recém-admitidos na família
patriarcal começaram também a galgar posições nas estruturas das câmaras, da
Santa Casa de Misericórdia e das irmandades religiosas, que eram os veículos
que possibilitavam a “nobilitação” dos candidatos a homens bons. É de assinalar
também que muitos que haviam retornado enriquecidos das minas apresentavam-se como
pretendentes no mercado matrimonial.
III
Vera Ferlini observa, em seu estudo, que ao
longo do período colonial, as câmaras foram dominadas pela presença de grupos
familiares e tradicionais que constituíram oligarquias, que, obviamente, nem
sempre conviveram pacificamente. Em São Paulo, é conhecida a solução encontrada
pela Coroa em 1655 para apaziguar as lutas entre as famílias Pires e Camargo,
permitindo que apenas oriundos desses clãs ocupassem os principais lugares na
instituição. Isto porque, diante do seu poder reduzido, a Coroa não tinha outra
saída a não ser contemporizar e aceitar certas exigências das oligarquias
locais, provavelmente com receio de que pudessem flertar com a idéia de passar
para o lado dos espanhóis.
Fosse como fosse, os estudos apontam para uma
via de mão de dupla na atuação das câmaras: por um lado, defendiam os
interesses locais, ou seja, dos manda-chuvas da ocasião, mas de outro, também
resguardavam as políticas e as determinações de metrópole, tratando-se de compor
com os interesses do governador e capitão-general.
O Governos dos Povos, de Laura de Mello e
Souza, Junia Ferreira Furtado e Maria Fernanda Bicalho (orgs). São Paulo:
Alameda Editorial, 560 págs. Adelto
Gonçalves – Brasil in “As Artes Entre as Letras”
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