Descansa em paz meu amigo
Welema!
Por norma, quando alguém
morre, nota-se-lhe apenas os aspectos positivos, desvalorizando-se a outra face
da moeda, aquilo que de negativa carregava no seu curriculum de vida.
Compreendo e aceito esta regra quase universal. E faço-o sem esforço, sem
receio de desvirtuar valores e princípios morais e éticos. Muito menos sem
menosprezar os meandros da política – quando da morte de um político se trata.
O meu Amigo Agostinho André
Mendes de Carvalho era para a generalidade das pessoas um político. Para
muitos, era também um escritor, um exímio contador de histórias. Para mim, ele
era tudo isso e, também, talvez sobretudo, um Velho e Bom Amigo, um Companheiro
com quem tive o prazer de cruzar a vida, já lá vão 44 anos.
Eu e o Mendes de Carvalho
encontrámo-nos, por força das circunstâncias da Luta de Libertação Nacional, no
Campo do Tarrafal, em Cabo Verde, na condição de prisioneiros do regime
colonial. Ele com maduros 46 anos e eu com tenros 22 anos.
Depois de cumprido o período
de cadeia na Prisão de São Paulo, em Luanda, fui para o Tarrafal, com mais 13
companheiros do meu processo político, e lá estava, já há muitos anos, o Mendes
de Carvalho – catedrático de uma vida política cheia de meandros e esperanças,
por vezes entrecortadas por desencantos.
Juntámo-nos – sem nos
juntarmos fisicamente – porque o regime prisional de então confinava-nos a
casernas diferentes, sem a aparente hipótese de nos contactarmos. O Mendes, o
António Jacinto, o Luandino, o Noé Saúde, o Armindo Fortes, o Armando Ferreira
da Conceição, o Pacavira e outros companheiros com menor visibilidade mediática
repartiam a Caserna 1. Nós, inicialmente, partilhávamos a Caserna 2 com algumas
dezenas de prisioneiros vinculados à UNITA. Até que fomos isolados na Caserna
3, de castigo por insubordinação prisional.
O Mendes de Carvalho
procurou, de imediato, estabelecer contacto connosco – os jovens presos que
haviam chegado e que eram a evidência de que a Luta por eles iniciada tinha
continuadores, o que lhes renovava a esperança. A nossa presença na cadeia não
representava uma derrota – antes pelo contrário, significava que a semente por
eles lançada à terra tinha germinado, dando origem a frutos novos, de gerações
dispostas a continuar a sua gesta gloriosa.
O Mendes de Carvalho
engendrou um mecanismo de correio entre nós e ele, socorrendo-se de um buraco
aberto no chão da retrete pública do Campo (uma retrete que os presos usavam
quando estivessem a gozar da meia “hora de sol” a que tinham direito
diariamente). Era nesse buraco que ele colocava discretamente as suas mensagens
para nós e nós respondíamos.
Por via do buraco da
retrete, informávamos sobre os desenvolvimentos da nossa Luta (pelo tempo
passado, já estávamos também um pouco desfasados) e ele nos informava das
relações que tinha tido com os nossos progenitores e familiares mais próximos.
Foi assim que soubemos que ele conhecera o nosso pai, por exemplo. O Mendes de
Carvalho conhecera os pais de quase todos nós.
Nos seus bilhetes, ele
assinava WELEMA. Se ele se veio a consagrar como Uanhenga Xitu, o escritor,
para mim ele será sempre o WELEMA, meu companheiro do Tarrafal.
Passados alguns meses, o
WELEMA saiu da cadeia, gastos que foram muitos dos seus anos de vida por detrás
das grades. E escreveu o seu último bilhete para mim e para o meu irmão
Vicente, não só informando da sua eminente saída mas, sobretudo, da necessidade
que tinha de ser reintroduzido na actividade política clandestina, quando
estivesse em Angola.
O meu irmão Vicente preparou
com todo o cuidado a “encomenda” que o WELEMA deveria levar, sem ser apanhado
pelas autoridades: um bilhete que deveria ser entregue à “Camarada Lemba” (a
Delfina, na altura namorada do Vicente, e activista muito empenhada na nossa
Luta). Entre outras questões, recomendava a actualização do WELEMA sobre os
recentes meandros da Luta e fazer proselitismo em favor do MPLA, uma vez que,
quando ele fora preso, ainda só havia dispersos grupos que depois se vieram a
transformar no MPLA.
A “encomenda” com que o
WELEMA saiu do Tarrafal foi devidamente embrulhada na prata de um maço de
cigarros e escondida num tubo de pasta de dentes, antecipadamente aberta por
detrás. Era a forma mais eficaz de o preso (então liberto) passar sem ser
molestado pela rigorosa revista que se fazia à saída.
Faz-me já falta o Mendes de
Carvalho que, depois, se notabilizou na nossa sociedade e que ficará para a
nossa história. Mas faz-me também muita falta o WELEMA, de quem me fiz Amigo,
quando ele já tinha 46 anos e eu acabara de entrar na década dos 20. Daí que eu
nunca o tenha conseguido tratar de um modo formal, tratando-o sempre por “Tu”,
em homenagem à partilha de uma parte da história das nossas vidas – uma parte
que é comum a todos quantos sonharam connosco o sonho da Independência.
Descansa em Paz, meu Amigo! Pinto de
Andrade – Angola
Uanhenga
Xitu
- nome Kimbundu de Agostinho André Mendes de Carvalho (Ícolo e Bengo, Angola,
29 de Agosto de 1924 - Luanda, Angola, 13 de Fevereiro de 2014); lutador pela
independência de Angola foi preso pela PIDE e enviado para o Tarrafal. Ministro
da Saúde, comissário provincial de Luanda, Embaixador na Alemanha, Deputado à
Assembleia Nacional pelo MPLA. Em 2006 recebeu o Prémio de Cultura e Artes pelo
conjunto das suas obras literárias.
Sem comentários:
Enviar um comentário