Da
Chica da Silva carioca ao contrabando de camisinha
I
Não
é de hoje que a Igreja Católica condena o uso de preservativo e a prática do
sexo que não seja com o fim exclusivo de procriação. Uma luta que, se não se
pode chamar de vã, pelo menos se tem mostrado como praticamente impossível de
ser levada adiante, porque o homem luxurioso sempre se mostra disposto a apelar
a outros meios apenas para satisfazer os seus mais íntimos desejos.
Não
se sabe ao certo quando foi inventado o preservativo, mas é certo que no Egito
Antigo já eram usadas finas camisinhas de papiro, que evitavam a proliferação
de doenças venéreas e o nascimento de filhos indesejáveis. No Brasil, sabe-se
agora que há 207 anos já chegavam aqui tais saquinhos de peles finas que tinham
esse objetivo tão condenado pela moral religiosa. É o que mostra o pesquisador
Nireu Cavalcanti, doutor em História Social com ênfase em História Urbana pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em seu livro Histórias de conflitos no Rio de Janeiro colonial:
da carta de Caminha ao contrabando de camisinha (1500-1807), que reúne 26
crônicas que recolhem acontecimentos inusitados da cidade do Rio de Janeiro.
Em
uma dessas crônicas, o autor conta a descoberta que funcionários da Alfândega
carioca fizeram quando abriram dois caixões que traziam mercadoria nunca
reclamada por seus importadores: ali estavam “papéis figurados, escandalosas
estampas soltas, livros com estampas” e os tais saquinhos de peles finas, ou
seja, camisas de vênus ou as popularmente conhecidas camisinhas. Provavelmente,
algum contratempo tenha levado os interessados a desistir de fazer passar o
lote pela aduana com base em generosas gratificações aos fiscais.
Cavalcanti
recupera, inclusive, o relatório que o juiz da Alfândega, José Antônio Ribeiro
Freire, fez ao vice-rei, o conde dos Arcos, detalhando o material apreendido,
objetos e gravuras que teriam sido “inventados pela malícia humana e, capazes
de corromper os bons costumes, e que por escandalosos não devem aparecer em
público”. Confessou que a vontade que teve foi de os “queimar, em ato judicial
de consumo”, acrescenta o pesquisador.
II
Quem,
com certeza, não costumava recorrer ao uso de preservativo era o senhor de
engenho João Aires Aguirre, que era casado com uma senhora que não lhe daria
filhos. Em compensação, teria vários filhos com a mulata Páscoa Antunes
(1692-1779), analfabeta, que morava e trabalhava em sua casa. Para Cavalcanti,
Páscoa Antunes seria uma espécie de Chica da Silva carioca, pois acumulou
dinheiro suficiente para adquirir, em sociedade tripartite, um engenho.
É
de lembrar que, como mostrou em pesquisa histórica minuciosa Júnia Ferreira
Furtado, autora de Chica da Silva e o
contratador de diamantes: o outro lado do mito (São Paulo, Companhia das
Letras, 2003), a mineira Chica da Silva (1731/1735-1796) não foi a mulher de
vida extravagante retratada em romances e no cinema e na televisão, mas uma
mulata que nasceu escrava e teve uma vida próxima das mulheres brancas de sua
época, por sua relação de quinze anos com o contratador de diamantes João
Fernandes de Oliveira, no arraial do Tejuco, em Minas Gerais, tendo acumulado
pecúlio considerável, inclusive mais de cem escravos.
Já
a vida de Páscoa, diz Cavalcanti, constitui intrigante quebra-cabeças, que o
pesquisador ainda não conseguiu solucionar, à falta de outros papéis de
arquivo. Mas o que se supõe é que pelo menos quatro filhos de Páscoa seriam de
Aguirre, ainda que registrados como de pais desconhecidos ou “incógnitos”. Fica
evidente, diz Cavalcanti, que o pai deles não permitia enquanto era vivo que
usassem o seu sobrenome. Fosse como fosse, a família de Páscoa prosperou e
acumulou recursos para arrematar em hasta pública em 1756 um engenho na freguesia
de Santiago de Inhaúma. O imóvel seria arrematado em sociedade de igual cota
entre Páscoa, seu filho Custódio e o genro Inácio, de tradicional família, mas
igualmente bastardo, que era casado com uma filha da Chica da Silva carioca,
Florência de Menezes.
Para
ver o quanto Páscoa prosperou, mesmo sendo mãe solteira, o pesquisador cita
que, ao final da vida, em testamento, ela dizia que o genro Inácio lhe devia
250 mil-réis e que estava com dois escravos que seriam dela. Já o filho
Custódio deveria prestar conta de dois escravos (um deles já falecido) que ela
dera para servi-lo. Todos esses bens deveriam ser cobrados para o monte do espólio,
diz Cavalcanti.
Ainda
com base em suas pesquisas nos papéis avulsos do Rio de Janeiro, do Arquivo
Histórico Ultramarino, de Lisboa, Cavalcanti observa que todos os ricos do Rio
de Janeiro no século XVIII possuíam no mínimo três residências: uma casa na
cidade, geralmente um sobrado na área central; uma casa de campo numa chácara
no arrabalde ou subúrbio; e a casa rural, sede da fazenda. “O percurso que cada
uma fazia da chácara para a cidade, por exemplo, era a oportunidade de mostrar
riqueza e comportamento nobre, através da qualidade do veículo, dos animais,
dos arreios e do séquito de escravos, além de pajens bem-vestidos e numerosos”,
conta.
Capa: Luiz Nascimento |
III
Resultado
de projeto que apresentou em 1999 ao extinto Jornal do Brasil para a publicação semanal de crônicas sobre o
período colonial, este livro vem se juntar a Crônicas históricas do Rio colonial, publicado em 2004 pela mesma
Civilização Brasileira com o apoio da Fundação de Apoio à Pesquisa no Estado do
Rio de Janeiro (Faperj), reunindo 69 crônicas, muitas delas inéditas.
A
experiência do arquiteto-historiador no jornalismo impresso diário durou apenas
seis meses, de 2 de agosto de 1999 a 7 de fevereiro de 2000, mas serviu para que
o autor sentisse o gosto da popularidade, ao se perceber lido por um público
muito mais amplo e sem as exigências acadêmicas de praxe, porém igualmente
interessado em nossa história colonial. Se a experiência não demorou muito,
culpa cabe à insensibilidade da direção do JB, que optou pela interrupção da
publicação das crônicas, talvez para economizar alguns tostões, a uma época em
que o tradicional periódico já mostrava que caminhava célere rumo ao seu
desaparecimento das bancas.
Neste
novo livro, Cavalcanti, infatigável pesquisador de arquivos brasileiros e
portugueses, resgata detalhes de casamentos conflituosos, processos familiares
e acontecimentos do dia a dia da cidade do Rio de Janeiro. “Através dessas
histórias, contadas com precisão e graça pela pena de Nireu, nos aproximamos do
modo de vida dos habitantes cariocas e fluminenses do Brasil colônia”, observa
a jornalista e escritora Regina Zappa, responsável pelo texto de apresentação
publicado nas orelhas do livro.
IV
Alagoano
de Olivença, Nireu Cavalcanti (1944) reside desde os 17 anos no Rio de Janeiro,
onde se formou arquiteto e urbanista pela Universidade do Brasil, atual UFRJ.
Professor de pós-graduação da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade
Federal Fluminense (UFF), é ainda autor de Arquitetos
e engenheiros: sonho de entidade desde 1798 (Rio de Janeiro, Crea-RJ,
2007), e O Rio de Janeiro setecentista: a
vida e a construção da cidade da invasão francesa até a chegada da Corte
(Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2004), que teve como ponto de partida sua
tese de doutoramento “A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro: as muralhas,
sua gente, os construtores (1710-1810)”, apresentada em outubro de 1997 no
Programa de Pós-Graduação em História Social do Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais da UFRJ. Adelto Gonçalves -
Brasil
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HISTÓRIAS DE CONFLITOS NO RIO DE JANEIRO COLONIAL: DA
CARTA DE CAMINHA AO CONTRABANDO DE CAMISINHA (1500-1807), de
Nireu Cavalcanti. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 352 págs., 2013, R$
50,00. E-mail: mdireto@record.com.br
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Adelto Gonçalves é
doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo (USP) e autor de Os Vira-latas da
Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981), Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona
Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002), Bocage - o Perfil Perdido
(Lisboa, Caminho, 2003) e Tomás Antônio
Gonzaga (Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 2012), entre
outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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